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População doente de um planeta doente?

A ligação entre as epidemias de obesidade, má nutrição e as mudanças climáticas

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Época

Atualizado: 

02/09/2019
População doente de um planeta doente?
População doente de um planeta doente?

Imagem: iStock 

 

População doente de um planeta doente, ou planeta doente de uma população doente?

Publicado por Época - Texto de César Baima

 

Quando eu era criança, uma marca de biscoitos ficou famosa com uma esperta campanha publicitária baseada no falso paradoxo que perguntava se seus produtos vendiam mais porque estavam sempre fresquinhos ou estavam sempre fresquinhos porque vendiam mais. A resposta? Na verdade nenhuma das opções. Basicamente água, farinha e sal, estes biscoitos vendiam – e ainda vendem muito – por serem baratos e encherem a barriga, sem nenhum grande valor nutricional além das eventuais vitaminas e minerais adicionados à farinha.

Uso este exemplo associado à indústria alimentícia justamente para ilustrar outro aspecto a ela relacionado que também constitui um paradoxo, este bem real, e que afeta boa parte da população mundial atualmente: a obesidade mal nutrida. Sim, porque é cada vez mais possível, e observável, ser gordo e estar longe de obter os nutrientes necessários para o bom sustento do organismo humano, por mais - e bota mais nisso - que se coma.

Isso acontece porque comemos mal, e bota mal nisso, supridos por um sistema alimentar cujo foco é muitas vezes, como e com o biscoito barato, encher a barriga e gerar lucro, e não nutrir. E, neste processo, também estamos deixando doente o planeta, desmatando e destruindo amplas áreas de florestas na Amazônia e outros biomas, como o Cerrado e Pantanal , para, por exemplo, plantar grãos como milho e soja, ou criar bois que terão nestes milho e soja a base de sua ração, trazendo como consequência o aquecimento global e as mudanças climáticas.

Esta associação entre o sistema alimentar, obesidade, má nutrição e mudanças climáticas não é minha. Ela é a conclusão de relatório baseado em um amplo estudo realizado por um painel internacional de especialistas publicado este ano na prestigiada revista médica Lancet , no que classificaram como uma sinergia de epidemias, ou sindemia, global. Intitulado Comissão EAT (“comer” em inglês), o painel tem como objetivo buscar um consenso científico para a formulação de diretrizes de uma dieta saudável e produção sustentável de comida no mundo de forma a alimentar uma população mundial prevista para alcançar 10 bilhões de pessoas em 2050.

Um dos líderes da comissão, Boyd Swinburn , professor da Universidade de Auckland , na Nova Zelândia, esteve no Brasil na semana para o lançamento da versão em português do relatório , em evento promovido pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor(Idec). Em entrevista à coluna, Swinburn destacou as oportunidades e riscos para o mundo, e o Brasil, se não houver uma mudança fundamental no atual sistema alimentar global. Confira a seguir os principais trechos da conversa.

A versão em português do estudo traz alguma atualização de seus dados e conclusões?

O conceito da sindemia global é o mesmo, mas estamos olhando e destacando as evidências para cada país. NO caso do Brasil, vemos que mais de 20% das doenças são causadas pela má nutrição de todas as formas, incluindo a obesidade e a desnutrição. Ambas são diferentes manifestações de um sistema alimentar que não fornece uma dieta saudável para a população.

E como as mudanças climáticas entram nesta equação?

Isso acontece porque este sistema alimentar também não é saudável para o planeta. Basta ver que mais de 50% das emissões de gases do efeito estufa são provenientes dele, seja na agricultura, pecuária, produção de insumos, escoamento da produção e mudanças no uso da terra, com o desmatamento e queimadas. Temos então um sistema alimentar fundamentalmente quebrado, que não serve nem para as pessoas nem para o ambiente, não é sustentável e precisa ser redesenhado, para o bem do mundo e das atuais e futuras gerações.

Temos então uma população doente em um mundo doente, ou um planeta doente de uma população doente?

Os dois na verdade. A saúde do planeta e das pessoas andam lado a lado. Sim, hoje as pessoas estão vivendo mais porque comem mais e melhor do que há 50 anos, por exemplo, mas agora estamos vendo uma piora da dieta tanto em termos alimentares como ambientais. Temos uma dieta com cada vez mais alimentos que geram obesidade, doenças do coração, câncer e diabetes e que ao mesmo tempo está acabando com as florestas e a biodiversidade.

E o que está levando a esta piora na dieta que também é pior para o planeta?

Justamente o sistema alimentar atual, criado em torno dos alimentos errados com estratégias erradas. Vejamos uma coisa que este sistema produz, e muito, no caso do Brasil, que é uma quantidade enorme de gado. Para alimentar este gado, temos grandes monoculturas de grãos como milho e soja, o que é prejudicial para a biodiversidade. Assim, a carne bovina é muito ineficiente como alimento e ao mesmo tempo demanda grandes emissões e consumo de água para sua produção. Outros exemplos são açúcar e outros grãos que acabam formando a base de alimentos superprocessados, muito prejudiciais à saúde. E todo este sistema ainda é muitas vezes subsidiado pelos governos, estimulando os produtores para que migrem para estes alimentos e formas de produção enquanto os pequenos agricultores ficam sem apoio.

Como podemos quebrar este ciclo?

O primeiro passo é fazer as pessoas verem e entenderem que tudo isto está conectado e, portanto, as questões da obesidade, desnutrição e mudanças climáticas devem ser abordadas de forma fundamental e conjunta. Depois e a instituição de leis, políticas e regulamentações que levem a mudanças no cenário, como taxar bebidas açucaradas para levantar recursos para financiar e subsidiar a produção de alimentos mais saudáveis. Neste ponto, o Brasil tem alguns ótimos exemplos para o mundo, como obrigar que ao menos 30% da merenda escolar seja comprada de fazendas familiares. É o tipo de regulamentação muito valiosa e de grandes impactos social, para o meio ambiente e a nutrição das crianças.

Mas o que dizer, por exemplo, para quem não podia comer carne em razão do alto custo e agora tem mais acesso a ela para não fazer isso porque não é bom para sua saúde ou do planeta?

Creio que as pessoas são muito responsivas ao seu ambiente alimentar. Elas compram o que é oferecido, o que está disponível e é acessível tanto do ponto de vista físico quanto econômico. Neste sentido, podemos usar a questão financeira, com impostos e taxas sobre produtos superprocessados e pouco saudáveis, para sinalizar e guiá-las a escolhas mais saudáveis. A rotulagem é outra coisa que pode servir de guia, indo além dos números das diretrizes dietárias e também trazendo a pegada ambiental dos alimentos, de forma que quando a pessoa pegar um produto na gôndola do supermercado saiba não só o quão bom, ou mau, ele é para sua saúde como para a saúde do planeta.

Um mundo em chamas

Para quem aguentou o “textão” da coluna até aqui, peço desculpas por outro “textão” na seção multimídia desta semana. Pretendia trazer um trabalho sensacional de uma cientista gringa com o qual estou me divertindo, e encantando, nos últimos meses, mas não dá para ignorar o tema das queimadas na Amazônia, então fica para outra semana.

A princípio, tinha separado algumas imagens da Nasa dos incêndios lá, mas a esta altura boa parte dos leitores já deve ter visto elas. Só que então lembrei de outra foto da Nasa que cruzei recentemente e havia me alertado para sua profunda ligação com as mudanças climáticas, um dos pilares do texto principal da coluna.

Nos últimos 500 milhões de anos, a Terra já foi atingida por cinco extinções em massa , nas quais até 96% de todas espécies de animais e plantas vivas desapareceram para sempre. Seus fatores desencadeadores variaram, mas todas têm em comum uma coisa: ao fim e ao cabo, foram resultado de radicais mudanças climáticas e ambientais desencadeadas por estes eventos, seja o impacto de um grande asteroide na área do que é hoje a Península de Yucatán há cerca de 65 milhões que levou à extinção dos dinossauros ou as longas e gigantescas erupções vulcânicas na região do que hoje é a Sibéria da “Grande Morte” do fim do Permiano, há 250 milhões de anos e a maior destas extinções em massa.

Pois bem, é esta mesma Sibéria que é palco desde junho de imensos incêndios florestais, como os que atingem a Amazônia. Lá como cá, grande parte dos incêndios foi provocada pela ação humana, e as queimadas estão sendo agravadas por uma seca incomum. Secas estas que podem ser creditadas às mudanças climáticas, num ciclo que se retroalimenta como a população doente em um mundo doente.

E também lá como cá, os incêndios estão liberando para a atmosfera carbono estocado no solo por milhares, quiçá milhões, de anos, seja na forma da tundra congelada lá, ou do piso úmido da floresta equatorial aqui. Carbono que vai entrar no ciclo das mudanças climáticas, piorando um cenário já em franca deterioração. Só em junho, o fogo na Sibéria lançou mais de 50 milhões de CO2 na atmosrfera, mais do que as emissões anuais da Suécia.

Assim, vamos caminhando céleres rumo à sexta extinção em massa , desta fez tendo como fator desencadeador a ação humana. Para evitar isso, é preciso lembrar e sempre ter em mente que quando se defende o meio ambiente não se está falando em “salvar o planeta”, e sim ‘salve a Humanidade”. A Terra viveu por milhões de anos sem nenhum ser humano, e continuará a viver muito bem por outros bilhões de anos depois que o último de nós morrer.

A imagem, obtida pelo satélite Suomi NPP em 24 de julho, mostra a fumaça dos incêndios na Sibéria chegando a formar "redemoinhos" no alto da atmosfera.

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