separador
Atualizado:
Reportagem do portal UOL, publicada em 18/02/2021
"Se alguém dissesse para a sociedade: 'criei um novo invento, ele vai permitir que as pessoas andem mais rápido, se desloquem com conforto e tenham uma autonomia grande, mas vai gerar um milhão de mortes por acidentes e sete milhões de mortes por poluição do ar anualmente', esse invento seria aceito?", pondera o urbanista e professor da UFMG Roberto Andrés.
Diante de uma lista de benefícios individuais e prejuízos coletivos tão desequilibrada, a resposta, acredita Andrés, certamente seria negativa. Mas o invento em questão já existe e é a máquina que moldou cidades mundo afora ao longo do século 20: o automóvel.
A pergunta de Andrés escancara o que para ele é uma "aberração naturalizada" — o fato do carro ter sido adotado em massa no século passado, incentivado por governos e pelo planejamento urbano, e de que os danos gerados por esse uso ainda sejam empurrados para baixo do tapete.
A lista de problemas é longa e bem documentada. Carros movidos a combustíveis fósseis pioram a qualidade do ar e geram emissões que têm um papel significativo no aquecimento do planeta. Também são responsáveis por mortes de pessoas e gastos com sistema de saúde.
Em torno desses objetos de desejo foram construídas cidades inseguras para pedestres, com o solo altamente impermeabilizado (o que ajuda a explicar as inundações frequentes) e sobre o qual a população perde horas diárias.
A saída? Governos de vários países têm adotado nos últimos anos medidas de desestímulo ao uso do carro e prometeram banir os que utilizem combustíveis fósseis nas próximas décadas. No lugar, são incentivados transporte coletivo, bicicletas e os carros "verdes".
Correndo atrás do mundo
O cenário de pandemia intensificou a crise do setor automobilístico no Brasil — a queda nas vendas de veículos novos no país foi a maior em cinco anos. Já a produção do setor em 2020 foi a menor em 17 anos, segundo a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores).
Logo na primeira quinzena de 2021, a Ford anunciou o fechamento das três plantas que mantinha no Brasil e o encerramento de suas atividades fabris no país. "A saída da Ford traz um sinal de alerta para toda a cadeia produtiva automotiva nacional: nem os programas de proteção governamentais foram o suficiente para manter a operação", disse a Ecoa o engenheiro e professor do Instituto Federal de São Paulo Felipe Ferreira de Lara.
A própria Ford anunciou ontem (17) que pretende até 2030 mudar toda a sua linha de produção para vender exclusivamente veículos elétricos na Europa. Já o governo da Califórnia, estado mais populoso, com a maior frota de carros dos EUA e conhecido pela poluição do ar, pretende que todos os carros vendidos por lá sejam verdes até 2035. Várias cidades pelo mundo, como Madri, Londres, Oslo e Paris, iniciaram ou estão estudando projetos que preveem banir a circulação de carros de seus centros.
Em contraponto aos países que estão investindo nessa descarbonização, a transição da indústria automobilística no Brasil caminha a passos lentos. "O Brasil ainda não desenvolveu uma política para a transição da mobilidade movida a combustíveis fósseis para a elétrica, potencialmente perdendo espaço no mercado internacional para exportar os veículos produzidos aqui", afirmou Cristina Albuquerque, gerente de mobilidade urbana do instituto de pesquisa World Resources Institute Brasil.
Um projeto de lei do Senado propõe a proibição da venda de carros a gasolina e diesel no país a partir de 2030 e sua circulação a partir de 2040. Apesar de ter sido aprovado na CCJ do Senado, não há previsão para votação do projeto no Congresso.
Um modelo de mais de um século
O automóvel nasceu no fim do século 19 como um bem de luxo. Ele oferecia duas vantagens principais para seus endinheirados compradores — distinção e rapidez ao se deslocar. Com o tempo, o produto se popularizou, e os atrativos originais sumiram. Criou-se uma multidão de pessoas motorizadas presas em engarrafamentos.
"Muita gente fala que a responsável por isso foi a publicidade, mas ela só acrescentou uma camada", afirma o professor da UFMG Roberto Andrés. "O que tornou o carro uma necessidade foi o urbanismo rodoviarista, que foi convertendo as cidades em adequadas pro deslocamento em carro e inadequadas para o deslocamento de outras maneiras."
A indústria automobilística vem sendo beneficiada por políticas de incentivo fiscal no Brasil desde o governo de Juscelino Kubitschek, na década de 1950. O mais recente, Rota 2030, foi anunciado pelo governo federal em 2018, tem duração de 15 anos e prevê, entre outros pontos, a redução de IPI (imposto sobre produtos industrializados) sobre veículos híbridos e elétricos. Esta medida ainda não entrou em vigor por falta de regulamentação.
O setor consta entre os maiores gastos tributários do governo federal, tendo sido beneficiado por incentivos que totalizaram R$ 69 bilhões entre 2000 e 2021.
"O carro é subsidiado também na construção de viadutos, de pontes, de vias expressas e de asfaltamento. Tudo isso não é cobrado do usuário do carro, é cobrado da sociedade. O governo subsidia as montadoras, estacionamento gratuito em via pública. Sem falar na taxa ambiental que deveria ser cobrada pela poluição. Se tudo isso fosse cobrado, seria insustentável ter carro, né?", disse Rafael Calabria, coordenador de mobilidade urbana do Idec
A hora da virada
"É o fim da era do carro?" foi uma das perguntas lançadas aos especialistas ouvidos por Ecoa neste especial.
"No mundo todo, essa indústria está se reinventando, se repensando a partir do carro elétrico, mas a gente não tem ainda o desenho de como a próxima era virá", falou o urbanista Andrés.
"Cidades que estão buscando um futuro mais sustentável tratam de desincentivar o transporte individual, promovendo alternativas como transporte coletivo, bicicleta, caminhada, investindo em infraestrutura segura e, em paralelo, colocam um prazo para o fim da circulação de carros a combustão", disse a gerente de mobilidade urbana do WRI Brasil, Cristina Albuquerque.
A urbanista e cientista política Carolina Guimarães, que coordena a Rede Nossa São Paulo e coautora da coluna Primeira Infância em Ecoa, defende a transição entre modelos de cidade, mas entende que o carro continuará a existir.
"A cidade do futuro traz muitas opções [de mobilidade] de qualidade e acessíveis para as pessoas. Claro que o carro pode ser uma delas, mas ele tem que ser um meio de transporte tão bom quanto os outros", diz Carolina Guimarães, do Instituto Cidades Sustentáveis.
O primeiro passo, para Guimarães é definir um plano de mobilidade urbana, como previsto no Estatuto das Cidades, colocando o pedestre no topo da lista de prioridade, seguido por bicicleta e transporte coletivo, e, então, o carro.
"É preciso que as pessoas que desejam usar os automóveis em determinadas regiões das cidades contribuam financeiramente para a promoção dos modos sustentáveis de transporte", disse Cristina Albuquerque, gerente de mobilidade urbana do WRI Brasil.
Do ponto de vista de entidades que representam a indústria, o que falta para a transição ser feita é incentivo governamental. Segundo o diretor técnico da Anfavea, assim que houver uma política pública clara de incentivo a veículos elétricos, o parque produtivo deve se adaptar à nova demanda.
"As montadoras instaladas no Brasil estão desenvolvendo essas tecnologias em outros mercados. Quando for tomada a decisão de produzir em maior escala, esse know-how será trazido imediatamente", afirmou.
Mesmo sem incentivos maciços, as vendas de veículos elétricos têm apresentado crescimento consistente e responderam pela primeira vez por 1% do mercado em 2020, quando houve aumento recorde de 66,5% (de 11.858 para 19.745 unidades) nos emplacamentos em relação ao ano anterior.
"O Brasil tem muito a se beneficiar com a venda de veículos eletrificados. Nós temos um parque produtivo robusto, temos reservas estratégicas de lítio, de todos os minerais de eletrônica de potência para criar os controladores de bateria, os inversores, os motores elétricos", disse a Ecoa o presidente da ABVE, Adalberto Maluf.
O incentivo à eletrificação também pode absorver pelo menos parte dos trabalhadores que perderam seus empregos com o fechamento das fábricas da Ford e de outras montadoras.
Outra via apresentada para a descarbonização são os biocombustíveis, em especial o etanol. A aposta na indústria de biocombustíveis, porém, preocupa a comunidade científica e ativistas pelo meio ambiente.
No início de 2020, os biólogos Lucas Ferrante e Philip Fearnside publicaram na revista "Nature" uma carta na qual alertavam que o plano de ampliar a produção de biocombustíveis (à base de milho e cana) faria avançar o desmatamento na Amazônia.
Para essa encruzilhada, confluem o futuro das cidades, do planeta, da mobilidade e do automóvel. "Os impactos da crise climática que já estamos vivendo vão crescer muito se não mudarmos o modo de produção baseado no petróleo. Só é possível rever esse modelo atual revendo o nosso modo de mobilidade. Me parece muito evidente que o futuro da espécie humana depende de uma série de mudanças de hábitos e de formas de organizar a vida, e uma delas passa por ter outros carros", afirmou o urbanista e professor da UFMG Roberto Andrés.