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Reportagem do jornal Folha de S. Paulo, publicada em 29/08/2020
A pandemia do novo coronavírus tem atingido famílias, redes de saúde, empregos e, como consequência, quem contava com planos de saúde como garantia extra para atendimento no meio da crise sanitária.
De março a julho, o setor contabilizou a queda de 327 mil usuários. Os dados são da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que regula o mercado. Para especialistas, a situação está ligada ao aumento do desemprego e perda de renda da população.
Atualmente, o país soma 46.758.762 usuários de planos de saúde, o que representa 22% dos brasileiros. Em março, esse número era de 47.085.717. Apesar de variações serem frequentes, uma redução nesse patamar em um período curto não era registrada desde janeiro de 2017.
Segundo os dados da ANS, a queda foi maior nos meses de abril e maio —só neste último, foram 226 mil usuários a menos. Em seguida, houve nova queda em junho, embora em menor ritmo, e leve aumento em julho, insuficiente para recuperar a perda.
Para o IESS (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar), a variação registrada em julho sinaliza uma possível estabilidade. O grupo, porém, alerta que ainda é cedo para fazer uma análise definitiva.
Entre os motivos, estão a incerteza da epidemia, com risco de “novas ondas” da Covid-19 e reversão da retomada de atividades, além de um possível efeito tardio de demissões (parte das pessoas demitidas mantém o plano por alguns meses).
“Se considerarmos que 1,2 milhão de pessoas foram demitidas, esse impacto pode ser ainda maior”, diz Marcos Novais, superintendente da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde).
Para Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP, a queda no número de usuários de planos de saúde já era esperada. “Em outros momentos históricos, essa retração ocorreu. Ela é acentuada, mas os planos têm esse perfil: sempre que há desemprego e recessão econômica, que são dois efeitos adversos da pandemia, há queda de clientes.”
Segundo a ANS, planos coletivos ligados a empresas puxaram a queda: foram, ao todo, 311 mil usuários a menos nessa categoria desde março.
A perda de renda, no entanto, também pode ter se refletido nos planos individuais ou familiares, contratados pelo próprio usuário, cuja queda foi de 49,3 mil clientes.
Na contramão, planos coletivos por adesão, que representam associações e sindicatos de categorias, tiveram aumento de 35,3 mil usuários desde março. Em geral, essas modalidades têm preços mais baratos do que os individuais, embora estejam sujeitos a reajustes mais altos.
Ana Carolina Navarrete, coordenadora de saúde do Idec (Instituto de Direito do Consumidor), aponta para dois culpados por parte da queda: as próprias operadoras e uma omissão da ANS. “Enviamos um ofício no início da pandemia dizendo que precisaríamos de medidas que mitigassem a saída do mercado, o que a agência não tomou.”
Entre essas medidas, diz, estavam prazos maiores de tolerância para inadimplência, recusados pela maioria das operadoras, e suspensão dos reajustes de mensalidade —o que só foi determinado agora, em agosto, com validade para setembro e dezembro.
A medida, porém, deixou de fora planos empresariais com mais de 30 usuários. Com o atraso, alguns usuários também já tinham sofrido reajustes desde março.
Foi o que ocorreu com José Napolitano, 77, que teve reajuste na mensalidade há três meses. “Minha mensalidade era de R$ 3.500, e consegui reduzir na Justiça para R$ 2.500. Mas foi uma alegria que durou pouco, porque veio aumento de 16% e hoje pago quase R$ 3.000”, afirma.
O valor, diz, ficou ainda mais pesado em tempos de pandemia. Aposentado, ele tinha em atividades extras como corretor de imóveis uma forma de complementar a renda. Mas, por estar no grupo de risco para o coronavírus, parou.
Para a advogada Renata Vilhena Silva, especializada em direito à saúde, a suspensão aplicada pela ANS —que agora vale também para parte dos já reajustados, sem recuperar valores já pagos— representa apenas um fôlego temporário, já que há risco de um aumento ainda maior em 2021.
“A pior coisa é o usuário ter que pagar mais no futuro”, diz Navarrete, do Idec, para quem o cenário pode fazer usuários terem de abrir mão do plano.
A queda de usuários e as divergências sobre reajustes, no entanto, não foram a única marca da pandemia de Covid-19 no setor, que teve queda histórica de atendimentos —o que ajudou a reduzir custos, diz Navarrete, para quem isso possibilitaria uma regulação melhor dos reajustes.
“Dizer que as despesas não cresceram tanto no período de pandemia em um ponto é correto. Mas o que vem amanhã e daqui por diante?”, questiona o superintendente do IESS, José Cechin. Em nota, Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde, que representa as principais operadoras, diz avaliar como “inadequado analisar a questão dos reajustes de mensalidades sob ótica do curto prazo”. Para ela, suspender reajustes pode deixar planos desequilibrados, o que afetaria sobretudo operadoras de pequeno porte.
Questionada sobre a queda de usuários, Valente diz que uma conclusão “é precipitada, prematura e incompleta”. “O certo é que beneficiários que perdem suas coberturas tendem a buscar assistência do SUS, onerando ainda mais os recursos públicos.”
Ela defende retomar a discussão sobre a possibilidade de planos mais baratos e segmentados para fazer “frente à crise, à recessão, à perda de renda e ao aumento da informalidade no mercado de trabalho”.
Para Scheffer, o argumento é falacioso. “Quais os que perdem primeiro? Provavelmente são os das empresas mais frágeis, que também dão planos menores.”
Procurada pela reportagem, a ANS afirmou que vem monitorando os impactos da pandemia e tem feito esforços para implementar medidas capazes de “preservar tanto a assistência ao usuário quanto a sustentabilidade e o equilíbrio do mercado”.
Sobre as críticas de demora, argumenta que age com celeridade, “mas é indispensável respeitar os tempos necessários para avaliações”. Diz ainda que vem estimulando, desde o início da pandemia, práticas de negociação e flexibilização para pagamento de mensalidades.