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Reportagem da Folha de S. Paulo, publicada em 21/09/2020
Tabagismo, alcoolismo, inatividade física e má alimentação entraram na lista dos fatores que podem agravar o quadro de Covid-19. Todos eles são também velhos conhecidos de outra doença: o câncer.
Ao mesmo tempo em que acende alerta sobre a gravidade de maus hábitos, a pandemia reforça oportunidades de se falar sobre a responsabilidade da indústria no fomento a essas práticas.
O alerta foi feito nesta segunda-feira (21) por participantes da sétima edição do Congresso Todos Juntos Contra o Câncer, realizado virtualmente.
Mais transparência nos processos de decisão sobre saúde pública e medidas que restrinjam o lobby dos produtores são ações urgentes e benéficas para diminuir a incidência dos fatores de risco na saúde dos brasileiros, segundo a nutricionista Ana Paula Bortoletto.
Coordenadora do Programa de Alimentação Saudável no Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), ela chama atenção para o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados.
Entre 2017 e 2018, 18,4% das calorias totais disponíveis para consumo nos domicílios brasileiros eram de ultraprocessados —um aumento de cerca de seis pontos percentuais quando comparado ao período de 2008 e 2009. Os dados são da Pesquisa de Orçamentos Familiares, divulgada pelo IBGE em abril.
A pandemia pode acelerar o quadro. Resultados iniciais de estudo realizado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP com cerca de 10 mil brasileiros mostram que o consumo de ultraprocessados nas regiões Norte e Nordeste e entre as pessoas de escolaridade mais baixa cresceu desde que a Covid-19 chegou no país.
Para Bortoletto, mudar esse quadro exige avançar na política de rotulagem dos produtos, pensar em tributações específicas para alimentos não-saudáveis e fortalecer modelos de abastecimento que privilegiem alimentos saudáveis.
“Apenas a educação não é suficiente para conseguir reverter o cenário de um ambiente alimentar que promove o consumo de ultraprocessados”, afirma. “O maior desafio é a interferência das indústrias produtoras no processo de construção e decisão da política pública.”
A necessidade do isolamento social também destacou a preocupação com a inatividade física, ainda que essa já fosse uma realidade de longa data. Dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) mostram que, em 2016, mais de um quarto da população adulta mundial não praticou atividade física suficiente.
A crise sanitária é oportunidade para colocar na agenda de discussão a importância de propiciar escolhas e ambientes ativos para a população, defende o coordenador do Laboratório de Vida Ativa da Uerj, Ricardo Brandão de Oliveira.
“A pandemia nos traz oportunidades únicas para pensarmos estratégias inovadoras de promover vidas mais ativas e saudáveis e cidades mais sustentáveis”, diz.
Política fundamental, argumenta Oliveira, é incentivar e dar condições para o transporte diário ativo, o que pode ser alternativa mais segura do que os transportes compartilhados no momento de pandemia.
Outra ação que deve ser fortalecida é a Política Nacional de Controle do Tabaco, acrescenta a médica e consultora da OMS Vera Luiza da Costa e Silva.
Considerado uma epidemia global, o tabagismo mata uma pessoa a cada quatro segundos no mundo e uma pessoa a cada 34 segundos nas Américas, segundo dados da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde). No total, são 8 milhões de vidas perdidas anualmente em razão do fumo.
“Se compararmos isso com as mortes globais pelo novo coronavírus, vemos que, em um ano, ele —felizmente— não vai matar o que o tabaco mata no mundo”, destaca Silva.
Os fatores de risco são ainda agravados pelas estratégias de comunicação das indústrias produtoras de álcool, tabaco, automóveis e ultraprocessados, reforça a psicóloga Ilana Pinsky.
Ela destaca que há relação causal entre câncer e bebidas alcoólicas, e que a propaganda incentiva hábitos prejudiciais à saúde a longo prazo.
Durante a pandemia, diz, isso ficou mais evidente. Propagandas de bebidas alcoólicas durante lives de cantores famosos, e empresas que investem em doações e, assim, ampliam seu alcance, são alguns exemplos. “Na prática, a indústria faz uso da Covid-19 para fortalecer seu marketing”, afirma Pinsky.
No Brasil, vigora lei de 1996, que dispõe sobre restrições à propaganda de cigarro e álcool. A matéria proíbe a propaganda comercial de tabaco e exige que as embalagens contenham indicações sobre os malefícios do fumo.
Em relação ao álcool, é mais branda: permite a propaganda de bebidas alcoólicas em rádio e televisão entre 21h e 6h, e obriga que o rótulo contenha advertência sobre o consumo excessivo de álcool.
A mediação do debate foi feita pelo jornalista João Peres, cofundador do site O Joio e o Trigo. O Congresso Todos Juntos Contra o Câncer segue até sexta-feira (25), e as inscrições ainda podem ser feitas por meio do site oficial.