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Reportagem do UOL, publicada em 24/07/2020
Enquanto o Legislativo brasileiro debate, às pressas, o projeto de lei 2630/20, ou "PL das fake news" organizações latino-americanas de comunicação, direitos humanos e liberdade de expressão vieram com uma alternativa. A proposta do grupo surgiu com o objetivo de limitar os abusos que aplicativos e redes sociais venham a cometer na moderação de conteúdo —serviços de mensagem privada, como WhatsApp, não entram no pacote.
Apresentado com exclusividade ao Tilt, o documento (disponível aqui) sugere um terceiro caminho que fuja dos extremos do que chamam de "autorregulação corporativa" —ou seja, de empresas ditando as regras das discussões públicas digitais— e também da "regulação autoritária", com a criação de leis que possam desrespeitar, por exemplo, a liberdade de expressão.
O documento foi escrito por organizações como o coletivo brasileiro Intervozes, o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), o argentino Desarollo Digital e o uruguaio Observacon (Observatorio Latinoamericano de Regulación, Medios y Convergencia). É o resultado de uma consulta pública com sociedade civil, universidades e empresários que durou de agosto a novembro de 2019. Houve nesse tempo reuniões na Argentina, Bolívia, Brasil, Estados Unidos, México, Peru e Uruguai.
Uma versão prévia do material, sem as alterações feitas no período de consulta pública, foi mostrada a parlamentares brasileiros quando o PL das fake news foi protocolado. O grupo quis mostrar que, embora crítico ao projeto de lei, não é contra a regulação de plataformas, mas a iniciativas que possam trazer censura à web e ferir a proteção de dados pessoais. A versão mais nova do texto também será encaminhada a especialistas e políticos.
Embora o alvo do texto não seja o combate à desinformação —principal objetivo do PL —, ele atinge essa questão indiretamente ao defender mais transparência, limites para os termos de serviço e garantias nas ações tomadas pelas plataformas.
Empoderando o usuário
A ideia do documento é que as plataformas tornem sua moderação mais fácil de compreender e que o usuário tenha mais poder na relação com as empresas donas desses serviços.
Sobre transparência, as organizações latino-americanas pedem que as empresas informem com clareza suas políticas de plataforma. Quando estas forem alteradas, todos os usuários deveriam ser avisados.
Olívia Bandeira, coordenadora executiva do Intervozes, afirma que ao sugerir limites para o poder das plataformas, o documento acaba ajudando em outros processos, como o da própria desinformação.
"Ele não fala de regular conteúdo exceto os estritamente previstos em lei. De forma indireta você acaba minimizando o problema da desinformação, deixa o usuário mais empoderado em relação aos dados pessoais. São formas indiretas de minimizar outros problemas", disse Olívia Bandeira.
As organizações latino-americanas usaram a perspectiva regional na elaboração do documento, além de limitações que as populações locais têm no acesso à informação —em muitos casos, esta é restrita à internet do celular e aos pacotes de dados que dão acesso ilimitado a certos apps e redes sociais.
De certo modo, muitas empresas já atendem a estes requisitos desde que o GDPR (Regulamento Geral de Proteção de Dados, da sigla em inglês) entrou em vigor na Europa em 2018. Como são globais, corporações como Facebook e Google atualizaram suas políticas e processos de acordo com as determinações da lei europeia —que incluem termos de uso mais claros.
Curadoria e moderação mais claros
Entre outros requisitos de transparência do documento latino-americano, destacam-se a comunicação de "vínculos que possam existir entre elas (plataformas) e as empresas que têm seus produtos ou conteúdos recomendados em seus serviços" e, principalmente:
- Quais são os critérios e mecanismos de curadoria e moderação de conteúdo;
- Quais são controlados diretamente pelo usuário e quais não são;
- Como o algoritmo de curadoria de conteúdo utilizado afeta a visibilidade de conteúdos.
"Achamos esse ponto central. A maneira como os algoritmos funcionam é o que faz com que os conteúdos sejam organizados, priorizados. Define a diferença das informações que cada pessoa recebe, a partir de critérios que podem ser discriminatórios", argumenta Bandeira.
Uma solução seria dar aos usuários maior controle sobre o que os algoritmos entregam, na forma de filtros sobre o conteúdo disponibilizado em feeds de notícias ou resultados de buscas.
Devido processo
Na última semana, o site de comédia Sensacionalista foi surpreendido ao receber uma notificação de que sua página do Facebook estava perto de ser banida. Afinal, o que ele havia feito de errado? Nenhum post do Sensacionalista foi apagado por engano, ou violava as políticas da plataforma.
Reportagem de Tilt revelou que o site era administrador de um grupo em que foram postados conteúdos proibidos no Facebook —não fake news, que é permitido—, o que motivou a "ameaça".
O caso de uma página de mais de 3 milhões de seguidores é simbólico para mostrar como os processos de aplicação dos Padrões da Comunidade são considerados por muitos como obscuros e mal comunicados aos usuários. Situações semelhantes à do Sensacionalista não têm desfecho com tanta clareza. Para resolver isso, as organizações latino-americanas propõem uma regulação que obrigue as redes sociais a respeitarem direitos humanos e liberdade de expressão.
Se as empresas interferirem na liberdade de expressão, diz o documento, as pessoas afetadas devem ser previamente notificadas e receber a "possibilidade de apresentar contra-argumentos ou retirar voluntariamente o conteúdo" antes que uma medida seja adotada unilateralmente pela plataforma.
Bandeira destaca que a proposta não critica medidas de autorregulação, como a criação do Conselho de Supervisão do Facebook. Entretanto, diz que apesar de importantes, são insuficientes e reforçam o poder das empresas. "O controle social dessas plataformas acaba sendo necessário porque elas exercem uma função de espaço público", argumenta.
Mas esse controle, por meio de uma regulação, é viável? As chamadas Big Tecs — Facebook, Alphabet (via Google), Amazon, Microsoft e Apple — são americanas e consideram as pressões locais acima de tudo. Para Bandeira, a união das organizações da América Latina neste debate é uma demonstração de força que sociedade civil e políticos regionais devem aproveitar.
Por fim, o grupo latino-americano diz que acredita no impacto de processos coletivos de formulação de políticas, para chegar a um "enfrentamento global" que faça a região ser mais ouvida.