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Lucro dos planos de saúde cresce durante a pandemia apesar da crise econômica

Com as medidas de isolamento social no país, houve menos demanda por exames, consultas e cirurgias não essenciais no setor privado, gerando queda nas despesas das operadoras

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El País

Atualizado: 

04/01/2021
Foto: iStock
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Reportagem do jornal El País, publicada em 22/12/2020

A pandemia de coronavírus significou mais dinheiro em caixa para as operadoras de planos de saúde. Não só continuam operando no azul, a exemplo dos últimos anos, como viram o lucro aumentar ao longo de 2020, apesar da crise econômica e do aumento do desemprego, conforme atestam os dados apresentados pela Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS). Três especialistas consultados pelo EL PAÍS concordam que as medidas de isolamento social, recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e a comunidade médica para conter a curva de contágios de covid-19, fizeram com que as pessoas cancelassem exames, consultas médicas e cirurgias não essenciais. Em suma, as pessoas ficaram em casa para se proteger, gerando uma queda na demanda por serviços privados de saúde. Consequentemente, as operadoras desembolsaram menos para arcar com esses custos.

Analisando apenas o segmento médico-hospitalar, a ANS constata que as operadoras tiveram um lucro líquido acumulado de 15 bilhões de reais nos três primeiros trimestres de 2020, em valores aproximados. Um resultado 66% maior que no mesmo período de 2019, quando tinham acumulado 9 bilhões de lucro. E 150% maior que nos três primeiros trimestres de 2018, quando o resultado líquido acumulado nos nove primeiros meses daquele ano foi de 6 bilhões.

Ao considerar apenas o segundo trimestre de 2020 —abril, maio e junho, um dos mais impactados pela crise sanitária—, as empresas lucraram 9 bilhões de reais nesses meses. O triplo comparado com o mesmo período de 2019, ano em que lucraram 3 bilhões somente no segundo trimestre. Além disso, no final do primeiro semestre de 2020 já tinham somado um lucro de 11 bilhões de reais. O resultado é quase similar ao de todo 2019, ano em fecharam com um lucro de 12 bilhões.

“É um dos poucos setores da economia bem sucedidos neste ano. Os planos saem maiores, fortalecidos, se aproveitaram da pandemia e também da ausência de fiscalização e de regulação”, argumenta Mario Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da USP. O médico ainda destaca que a inadimplência permaneceu próxima dos índices históricos, entre 7% e 10%. “Até por uma questão de necessidade de saúde acrescida, é a ultima coisa que as famílias e as empresas cortam”.

Vera Valente, diretora executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), entidade que representa 16 grupos de operadoras de saúde, afirma que “os dados contábeis disponíveis até o momento cobrem apenas uma parte do exercício de 2020? e que “qualquer conclusão com base neles é parcial, incompleta e prematura”. Por sua vez, a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), que reúne 700 operadoras, enviou uma nota afirmando que “os números reais referentes ao ano corrente serão conhecidos somente após a divulgação de seus balanços em 2021?.

Mais tempo em casa, menos despesas

Esses resultados se devem sobretudo às baixas taxas de sinistralidade, que mede a proporção entre receitas e despesas das operadoras, no pico da pandemia, segundo a ANS. No primeiro trimestre de 2020 foi de 77% em média, número próximo dos registrados nos três primeiros meses de 2019 e 2018. No segundo trimestre, porém, caiu para 64%, longe dos 84% no mesmo período de 2019. “A busca por serviços privados diminuiu muito na pandemia. Diminuíram os chamados procedimentos eletivos e até a busca por serviços de emergência, porque as pessoas optaram por ficar em casa”, explica Matheus Falcão, analista de saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

A explicação do setor vai no mesmo caminho. “Por orientação das autoridades sanitárias do país e do mundo, a frequência de procedimentos médicos eletivos diminuiu como forma de ajudar no combate à pandemia. (...) Naturalmente, em razão da diminuição da frequência, as despesas caíram, o que se refletiu nos resultados até setembro”, explica Valente, da FenaSaúde. Ela afirma que as taxa de sinistralidade “já retornou a 75% em outubro” e a previsão é de que “chegue a 80% até o fim do ano?, uma indicação que os beneficiários estão voltando a demandar os serviços privados de saúde. “Por consequência, a tendência das despesas assistenciais é de clara alta”, acrescenta.

Aumentos adiados

Para Lígia Bahia, doutora em Saúde Pública e professora da UFRJ, a queda na sinistralidade não explica sozinha esses resultados tão positivos das operadoras de planos de saúde. Ela recorda que as empresas seguiram aumentando as mensalidades até setembro. “[O lucro maior dos planos] é uma confluência dessas duas variáveis”, explica a professora. Sob pressão, a ANS congelou novos aumento entre setembro e dezembro —com exceção de determinados contratos, como os coletivos empresariais com 30 ou mais vidas. Além disso, a medida não afeta os contratos reajustados durante a pandemia antes de setembro. “Ela foi necessária, mas incompleta. Deveria ter contemplado o ano todo e os planos empresariais”, explica Falcão, analista do Idec.

O analista lembra também os reajustes estarão liberados no ano que vem e as operadoras poderão repor o que deixaram de receber durante o período de congelamento, ainda que de forma parcelada. Portanto, na prática, não houve um congelamento, e sim um adiamento da cobrança. “É como se empresas e usuários estivessem devendo para as operadoras”, explica Bahia. “Os resultados de 2020 são muito positivos e a sustentabilidade das operadoras está muito assegurada. A renda delas não foi comprometida. Então seria interessante discutir e formular uma proposta mais vantajosa [para os usuário]”, explica Falcão.

Falta de contribuição

Na opinião de alguns dos especialistas, as operadoras deixaram de dar uma maior contribuição para a saúde pública durante a pandemia. “As operadoras não respondem nem por 10% dos testes realizados no país, mesmo considerando o PCR, incorporado desde o inicio no rol de procedimentos”, argumenta Falcão do Idec. A ANS determinou que os exames PCR, que detectam a presença do vírus, fossem incluídos no rol de procedimentos obrigatórios em março. Os sorológicos, que identificam a presença de anticorpos, só foram incluídos em agosto. Para que arquem com os custos dos exames, as operadoras solicitam um pedido médico e a pessoa deve apresentar sintomas de covid-19 por determinado tempo. “Segundo a PNAD, os testes chegaram a 12% da população, mas 25% tem plano de saúde. Por que as empresas não fizeram teste?”, questiona Bahia. “Eles optaram por fingir que nada estava acontecendo. É uma negligência”, critica.

As críticas também se dão com relação ao empréstimo de leitos para o SUS, segundo os especialistas. De acordo com a ANS, a taxa média de ocupação de leitos (comum e de UTI) no setor privado foi de 64% entre março e outubro. Com relação aos leitos destinados somente para os casos de covid-19, a média de ocupação foi de 54% no mesmo período —chegando a 60% no pico da pandemia. Nessa época, havia hospitais municipais e estaduais colapsando, enquanto o poder público fazia um esforço para aumentar o número de leitos. “Os planos se negaram no momento de colapso a disponibilizar seus leitos, a vendê-los para o SUS”, recorda Scheffer.

Sheffer diz que o lobby da saúde suplementar trabalha para que o setor seja cada vez mais desregulamentado, de modo que as empresas possam aumentar a mensalidade ao mesmo tempo que flexibilizam a cobertura com a oferta dos chamados “planos populares”. Nesse sentido, aponta Bahia, há mudanças que vieram para ficar, como a ideia de saúde integral baseada na telemedicina. Valente, da FenaSaúde, aponta para a mesma direção: “Entre os aprendizados da pandemia até agora, ficou claro que é possível oferecer assistência mais integrada, aproximando as redes públicas e privadas para promover mais acesso à saúde – do que a telemedicina é um bom exemplo”, explica. “A pandemia reforçou também que há outros caminhos além do modelo hospitalocêntrico, a necessidade de mais ações de atenção básica e a maior prevenção, com cuidados voltados para a saúde das pessoas e não para a doença”.

Expansão e novos negócios

De acordo com a ANS, um total de 47,2 milhões de brasileiros possuem algum tipo de seguro médico privado, sendo que quase 40 milhões são coletivos, empresariais ou por adesão. Esses tipos de contrato podem ser reajustados livremente, ao contrário dos planos individuais, em que a própria ANS estabelece o reajuste. As dificuldades econômicas do país fizeram com que número total de beneficiários começasse a cair a partir de 2014, mas a cifra permaneceu praticamente estável ao longo de 2020. Com o aumento do desemprego na pandemia, as operadoras chegaram a perder pouco mais de 300.000 usuários entre março e junho —uma queda de menos de 1%, incapaz de afetar de maneira consistente a receita dos seguros médicos, segundo Scheffer. Mas elas se recuperam no segundo semestre e devem encerrar o ano com crescimento do número de usuários. “Até outubro, a alta é de 0,4% no segmento médico-hospitalar”, explica Valente.

Scheffer conta que essa combinação de queda na demanda por serviços médicos e aumento de tarifas deixou as operadoras com dinheiro em caixa para fazer novas aquisições e investimentos. Não há um levantamento sobre essas operações, mas ele explica que o momento é de “consolidação e ampliação de negócios” das empresas maiores. Isso se traduz em compras de empresas e grupos menores no interior do país e na aquisição de redes de hospitais. “Houve uma maior concentração de mercado e expansão territorial das grandes operadoras”, afirma o professor da USP.

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