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Lei que desobriga o reembolso de shows e pacotes turísticos fere CDC

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Extra

Atualizado: 

03/09/2020
Foto: iStock
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Reportagem do jornal Extra, publicada em 26/08/2020

A Lei 14.046/2020, que regulamenta o adiamento ou cancelamento de eventos, serviços ou reservas nos setores de cultura e turismo durante a pandemia de covid-19, deixa consumidores desprotegidos e desequilibra as relações de consumo com fornecedores. O entendimento é de Fernando Capez secretário de Defesa do Consumidor do Procon-SP. A entidade avalia em que medida a norma, sancionada nesta terça-feira (dia 25) pelo presidente Jair Bolsonaro, viola a Constituição e os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Segundo Capez, a pandemia não pode servir de justificativa para prejudicar os clientes.

De acordo com o texto, caso o evento, o serviço ou a reserva já feitos sejam adiados ou cancelados, incluindo shows e espetáculos, a empresa vendedora fica desobrigada de reembolsar o consumidor. O fornecedor deve garantir a remarcação dos serviços ou oferecer um crédito para uso ou abatimento na compra futura para outros eventos, serviços ou reservas.

A Medida Provisória (MP) 948 originou a lei e estabelecia uma sequência de procedimentos quando havia o cancelamento do serviço. A MP previa uma tentativa de reagendamento, depois a concessão de uma carta de crédito e, como terceira opção, o reembolso com pagamento em até 12 vezes.

— A lei aprovada está dizendo que o reembolso não é mais uma opção, somente se for impossível para o fornecedor. Mas esta opção deve ser do consumidor e não do fornecedor. O artigo 18, do Código de Defesa do Consumidor, diz que a opção pelo ressarcimento deve ser do consumidor. O Procon vai estudar se este desequilíbrio viola a Constituição e o que podemos fazer quanto a isso. A pandemia não pode servir de desculpa para o fornecedor descumprir a Lei do Consumidor. O dispositivo desequilibrou a relação de consumo — avalia Capez.

A nova lei também diz que os adiamentos ou os cancelamentos de eventos ou serviços causados pela atual pandemia devem ser enquadrados como "casos fortuitos ou de força maior", não cabendo reparações por danos morais, aplicação de multas ou outras penas previstas no Código de Defesa do Consumidor.

— É trágico especialmente para famílias que fizeram o planejamento de uma viagem, porque elas ficam inteiramente nas mãos das empresas. Essa lei vai oficializar o calote aos consumidores. Embora seja conflitante com o CDC, são duas leis ordinárias. E, no Judiciário, não vai ser fácil solucionar os conflitos — considera o diretor de Relações Institucionais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Igor Britto: — A aprovação de uma medida como esta é um sinal muito ruim de um setor que está tentando uma retomada. Quem estava pensando em contratar um serviço vai pensar duas vezes, já que o consumidor estará totalmente desprotegido — alerta.

As negociações, de acordo com a nova lei, devem ocorrer sem qualquer custo adicional ao consumidor, em qualquer data a partir de 1º de janeiro de 2020, tendo o consumidor até 120 dias para tomar sua decisão a partir da comunicação do adiamento ou do cancelamento. O mesmo se dará caso faltem 30 dias ou menos para o evento adiado ou cancelado, "o que ocorrer primeiro".

Para o professor Ricardo Morishita, ex-diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), a desobrigação de reembolso em dinheiro é preocupante pelo precedente que abre.

— A posição de vulnerabilidade e de necessidade de proteção que prevê a Constituição não foi respeitada. Forma gravíssima de descumprimento de direitos de natureza constitucional. Um dos objetivos do CDC é trazer uma harmonização. Se ele pode fazer a remarcação, ela deve atender, mas não criar compulsoriamente a retenção de valores que o consumidor pagou. Essa decisão desconsidera a necessidade de proteção da parte mais fraca. Foi transferido ao consumidor o ônus de cancelamento não causado por ele.

Fernando Capez, secretário de Defesa do Consumidor do Procon-SP, observa ainda que os pedidos de reembolso acordados entre o cliente e o fornecedor durante o período de vigência da medida provisória, e antes da entrada em vigor da nova lei, devem ser respeitados.

— Quem já havia solicitado o reembolso, antes da lei, se encaixa em no que chamamos de um ato jurídico perfeito, ou seja, a empresa e o cliente tendo concordado com o reembolso, ela não pode rever esta situação. De qualquer forma, o Congresso deverá regular as situações jurídicas criadas durante este período de vigência da MP por meio de um decreto legislativo — ressalta Capez.

Uso do crédito

O consumidor poderá usar o crédito a que tem direito em até 12 meses, a partir do encerramento do estado de calamidade pública, previsto para durar até 31 de dezembro de 2020. Devem ser respeitados os valores e as condições dos serviços originalmente contratados e o prazo de 18 meses, após o estado de calamidade pública, para a realização do evento ou do serviço adiado.

Artistas, palestrantes ou outros profissionais detentores do conteúdo já contratados, cujos eventos, incluindo shows, espetáculos teatrais ou rodeios, foram adiados ou cancelados, além dos profissionais contratados para a realização dos eventos, não terão a obrigação de reembolsar imediatamente os valores dos cachês, desde que o evento seja remarcado em até um ano após o fim do estado de calamidade pública.

Estão incluídos nas regras de ressarcimento, no setor do turismo: meios de hospedagem (hotéis, albergues, pousadas, aluguéis de temporada), agências de turismo, empresas de transporte turístico, organizadoras de eventos, parques temáticos e acampamentos.

No setor da cultura estão incluídos: cinemas, teatros, plataformas digitais de vendas de ingressos pela internet, artistas (cantores, atores, apresentadores e outros) e demais contratados pelos eventos.