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Governo fere direito do consumidor para proteger empresas, dizem advogados

Usar MPs para amparar que academia não devolva mensalidade e empresa aérea protele reembolso de passagem são exemplos de medidas questionadas

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Folha de S. Paulo

Atualizado: 

08/06/2020
Foto: iStock
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Reportagem publicada no jornal Folha de S. Paulo, em 19/05/2020

O governo federal passou a estudar uma MP (medida provisória) que garante a empresas prestadoras de serviço contínuo, como academias de ginástica, o poder de não devolver mensalidades pagas pelos alunos mesmo com o estabelecimento fechado durante a pandemia do coronavírus.

O texto estabelece que empresas com serviço diferido no tempo poderiam deixar de retornar valores mesmo que consumidores peçam o dinheiro de volta por causa da suspensão das atividades.

Para isso, bastaria a empresa oferecer um produto de mesmo valor ou outra alternativa a seu "exclusivo critério", tirando o poder de negociação do consumidor.

O texto da MP avançou no governo até ser contestado em análises jurídicas.

Técnicos do próprio governo interpretaram os artigos como uma afronta à Constituição, que trata a defesa do consumidor como um direito fundamental.

Mencionada internamente como uma das prioridades na lista de medidas voltadas a empresas no Ministério da Economia, a medida deve ser reformulada ou até mesmo abandonada após os questionamentos.

De qualquer forma, a iniciativa se soma a outras criadas recentemente que preservam o caixa de empresas por um lado, mas fragilizam direitos dos consumidores de outro.

Exemplo que está vigor é a MP 925, criada em março para atender companhias aéreas.

Com o objetivo de "promover um alívio imediato no fluxo de caixa" das empresas, o governo ampliou de 7 dias para 12 meses o prazo para reembolsar passageiros que cancelarem seus voos.

Marcelo Calixto, coordenador-adjunto de Direito do Consumidor da Escola Superior de Advocacia da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) no Rio de Janeiro, diz que a MP do setor aéreo fragiliza quem comprou passagem.

Em especial ao contradizer o Código de Defesa do Consumidor, no direito ao reembolso imediato pela não prestação do serviço.

Ele ressalta que, a depender do tamanho da crise, o cliente corre risco de nunca mais ver o dinheiro de volta.

"Há sempre o risco de essas pessoas jurídicas entrarem em uma situação de recuperação judicial ou mesmo falência, tornando incerto ou impossível o reembolso", afirma.

Um ponto positivo visto pelos especialistas é que, ao menos, a MP isentou temporariamente de multas e penalidades os consumidores que quiserem converter valores pagos em créditos para uso futuro (prática comum das companhias aéreas).

O adiamento do reembolso também foi criado pela MP 948, editada em abril para atender os setores de hotelaria e entretenimento.

Nesses casos, hotéis e organizadores de shows não têm obrigação de devolver ao consumidor o dinheiro pago por serviços, reservas e eventos cancelados.

A condição é que as empresas remarquem os serviços e eventos cancelados em até 12 meses a partir do fim da calamidade, disponibilizem crédito para uso ou abatimento em novas compras (também nesse período) ou realizem outro acordo a ser formalizado com o consumidor.

Igor Britto, diretor de relações institucionais do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), afirma que é legítima a proteção dos setores, mas faz diversas críticas ao formato das medidas.

"Muitos consumidores podem estar agora, em razão dos impactos econômicos da pandemia, precisando e muito recompor suas economias neste momento. E não podem esperar tanto tempo para reaver valores gastos com serviços que não querem mais usar", afirma.

O Idec está propondo diversas mudanças (como a devolução dos recursos em prazos menores) e argumentando que a retenção dos valores por tanto tempo representa uma espécie de confisco e uma vantagem exagerada às empresas.

Outros especialistas ouvidos afirmam que as medidas do governo são necessárias para trazer um equilíbrio na relação entre empresas e consumidor em uma situação atípica como a da pandemia, mas criticam o que veem como falhas dos textos.

Armando Rovai, professor de Direito do Consumidor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, diz que as iniciativas garantem a atividade dos negócios no país e a manutenção dos empregos.

Mas faz ressalvas quanto a falhas nas MPs.

"Caso as empresas não remarquem o evento, disponibilizem o valor que o consumidor tinha pagado ou devolvam os valores, estará incorrendo em atitudes desonestas que não estão amparadas na redação da MP", afirma Rovai.

O ponto mais criticado está no artigo 5º da MP 948, que afasta pedidos de danos morais do consumidor por considerar as relações de consumo afetadas pela pandemia como caso fortuito ou força maior (situações cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir).

Thiago Soares, especialista do Cunha Ferraz Advogados, afirma que faltou rigor técnico na redação do artigo.

Segundo ele, o dano moral pode ser provocado por qualquer outro evento que não a pandemia em si (por exemplo, um eventual constrangimento ao pedir o reembolso).

"Isso é inadmissível, impensável e ilógico. O fato jurídico que vai gerar o direito a dano moral não é a pandemia, mas sim um fato que afete a intimidade da pessoa", afirma.

Ele diz acreditar que esse trecho não sobrevive no Congresso.

"A meu ver, será seguida a regra normal, ou seja, se houver algum dano por fato jurídico decorrente da relação de consumo nesse sentido, haverá dano moral", afirma.

As MPs têm força imediata de lei, mas ainda precisam de aval do Congresso em até quatro meses (onde podem ser alteradas). Caso não sejam aprovadas até o fim do prazo, perdem a validade.