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Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, publicada em 14/12/2020
Estudante do segundo ano do ensino médio, Anna Júlia de Lima Cabral tinha um compromisso decisivo às 9 da manhã desta segunda, 14: encarar uma prova online de recuperação de História na qual precisava tirar nota 7 para passar de ano. Para a apreensão dela, a avaliação não ocorreu pois o sistema do Google onde a prova aconteceria estava fora do ar. Ela, porém, não estava sozinha.
A estudante de Natal (RN) sofreu junto com outros milhares de usuários dos serviços do Google. Na manhã desta segunda, praticamente todos os serviços da plataforma passaram cerca de 45 minutos fora do ar em diversos países do mundo. Foi o suficiente para muita gente perceber o tamanho de sua ‘Googledepêndencia’.
O problema começou às 8h47 da manhã. Usuários passaram a reportar em suas redes sociais que Gmail, Drive, YouTube, Meet, Agenda, Play Store e outros serviços da empresas estavam fora do ar - aparentemente, só a ferramenta de buscas passou ilesa. As notificações vinham de países diferentes: Índia, África do Sul, Europa e até Estados Unidos, onde o problema ocorreu antes das 7 da manhã. Por volta das 9h30 (horário de Brasília), os serviços começaram lentamente a voltar.
Cerca de quatro horas e meia depois, o Google apresentou explicação para a falha - eliminando temores iniciais de que um mega ataque cibernético teria sido a causa. “O Google sofreu uma queda em seu sistema de autenticação em razão de um problema de gestão interna da cota de armazenamento. Os serviços que requerem login de usuários apresentaram altas taxas de erro durante esse período”, diz parte da nota da empresa.
Em outras palavras, o mecanismo de usuário e senha sofreu um problema - a gestão do espaço dedicado ao login dos usuários dentro da infraestrutura do Google teve uma falha, fazendo com que o sistema fosse desativado. A maioria dos serviços do Google exige login e senha, o que explica a pane generalizada. A empresa afirma que continua investigando o problema para que ele não se repita.
“Meu desespero foi grande. Não sabia se falava com o coordenador da escola ou com minha mãe”, conta Anna. Ela preferiu o caminho da coordenação, mas muitos outros alunos, todos em ensino à distância por conta da pandemia do coronavírus, recorreram aos pais.
“Começamos a receber ligações de pais tentando entender por que seus filhos não conseguiam se conectar”, explica Sueli Cain, diretora geral da escola Mater Dei em São Paulo. Antes mesmo da pandemia, o colégio já tinha sua plataforma de ensino integrada à do Google. Foram afetados 241 alunos entre 5 e 17 anos: 61 deles (entre 11 e 17 anos) estavam iniciando a segunda semana de atividades de recuperação. Os outros 180 (de 5 a 10 anos) estavam em aulas normais.
“Enviamos uma mensagem aos pais pelo app interno do colégio comunicando sobre o problema e retomamos as atividades às 9h55”, explica ela.
Funcionários do Google recorreram ao WhatsApp
No número mais recente divulgado, o Gmail tinha 1,5 bilhão de contas, o que tem efeito claro também no mundo corporativo - o problema afetou pequenas e grandes empresas na mesma proporção. Sem conseguir fazer reuniões, acessar planilhas e enviar e-mails, muitas direcionaram os esforços para serviços parecidos, ou para plataformas que não pertencem ao Google. O Estadão apurou que os próprios funcionários do Google no Brasil tiveram de recorrer ao WhatsApp, que pertence ao Facebook, para trabalhar.
“Minhas reuniões da manhã foram adiadas e só retomadas às 11h”, explica a designer Aline Arielo, 35, que trabalha em uma empresa de desenvolvimento de sistemas e aplicativos com 1.000 funcionários em Campinas (SP). Fora do Brasil, há relatos também de usuários que fizeram automações residenciais em suas casas usando a plataforma Google Home e que acabaram com lâmpadas e termostatos desligados.
É difícil calcular o tamanho do prejuízo que 45 minutos de pane no Google pode causar, mas o Instituto Brasileiro de Defesa ao Consumidor (Idec) afirma que, se o consumidor se sentiu lesado ou sofreu algum prejuízo objetivo, ele pode encaminhar a reclamação à empresa e recorrer ao Procon e à Justiça. “Não é porque o serviço é aparentemente gratuito que a empresa não tenha de ressarcir pelos danos causados”, explica Diogo Moyses, coordenador do programa de Telecom e Direitos Digitais do Idec.
Poder demais
Para especialistas, porém, o problema vai além do dano causado por este episódio. Ele, na verdade, sinaliza como estamos cada vez mais dependentes de poucas empresas. “O Google conseguiu criar uma verdadeira ‘infraestrutura computaciona’ nas nossas vidas”, explica Diogo Cortiz, professor da PUC-SP. Para ele, estamos tão envolvidos com esses serviços que é difícil não se tornar altamente dependente deles.
“Creio que esse caso servirá como mais um ponto a favor dos debates de regulação sobre as grandes empresas de tecnologia”, explica Vivaldo José Breternitz, professor da Faculdade de Computação e Informática da Universidade Presbiteriana Mackenzie. As grandes empresas, como Amazon, Google, Facebook, Apple e Microsoft, estão na mira de reguladores americanos e europeus - na semana passada, o governo dos EUA, junto de 48 advogados-gerais estaduais do país, processaram o Facebook e pedem a reversão das compras de Instagram e WhatsApp. Em outubro, o próprio Google, em um caso histórico, foi acusado pelo Departamento de Justiça (DoJ, na sigla em inglês) de praticar monopólio com seu serviço de buscas.
Embora o debate de regulação tenha origem nos poderes econômicos e políticos dessas empresas, Breternitz lembra que a pane do Google reforça também a dependência técnica que milhões de pessoas têm em relação a essas empresas. “Se a infraestrutura de uma única dessas gigantes falha, muita gente e muitos negócios são afetados”, diz ele.
Por outro lado, teve gente que aprovou essa tal dependência. A prova de história da Anna Júlia foi adiada para sexta-feira. “Gostei do adiamento. Dá para reforçar a matéria”.