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Reportagem do portal R7, publicada em 21/03/2021
Com mais de 60 milhões de pessoas inadimplentes, os especialistas em educação financeira não hesitam em afirmar que o Brasil vive uma verdadeira crise de endividamento. Em meio à pandemia de covid-19, aos altos índices de desemprego e à interrupção do pagamento do auxílio emergencial, metade desses brasileiros está numa situação ainda mais crítica: são cerca de 30 milhões de “superendividados”, pessoas que têm mais contas que sua capacidade de pagamento e vivem à margem do mercado consumidor.
A projeção de superendividamento é do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), que utiliza os dados de três fontes diferentes: a pesquisa mensal da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), o índice de negativação junto às empresas e plataformas de proteção ao crédito e a medição do risco de inadimplência feita pelo Banco Central.
“São fontes com diferentes abordagens, mas que convergem para o mesmo número”, explica a economista Ione Amorim, coordenadora do programa de serviços financeiros do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). “Considerando que a população economicamente ativa está estimada em 100 milhões de pessoas, temos mais de 60% desse grupo no vermelho. É uma epidemia”, diz especialista.
Os dados da Serasa Experian confirmam. Em janeiro de 2020, o número de brasileiros inadimplentes chegou a 63,8 milhões, segundo a plataforma, aumento de 2,6% com relação ao primeiro mês de 2019. O volume de pessoas com contas em atraso representa 40,8% da população adulta do país. Na análise com dezembro de 2019, a variação foi de 0,8%.
Na mesma direção, levantamento da CNC revela que a média de famílias endividadas no ano passado cresceu 2,8 pontos porcentuais quando comparado a 2019, alcançando 66,5%. Trata-se do maior resultado anual da série, iniciada em 2010.
Mas qual o percurso para que uma parcela tão grande da sociedade chegue à condição de superendividada? Induzida a tomar decisões com base no que o sistema oferece, a população acaba recorrendo ao crédito para suprir necessidades básicas. E, quando se dá conta, torna-se uma vítima sistemática desse tipo de facilidade. “Trata-se de um problema social crônico. O Brasil precisa de medidas que minimizem esse impacto”, afirma Ione.
Uma dessas medidas é o projeto de lei 3.515/15, o chamado “PL do superendividamento”, parado na pauta do plenário da Câmara desde dezembro. O texto foi elaborado por especialistas em defesa do consumidor e propõe mecanismos de proteção ao endividamento, disciplina na oferta de crédito e melhores condições de negociação. O Idec montou uma petição pública para pressionar o Congresso a aprovar o projeto.
Saiba como agir
Olhando mais de perto para o consumidor, pequenas atitudes podem fazer a diferença. "Em primeiro lugar, é preciso fazer um levantamento de todas as dívidas, checar valores maiores, datas de vencimento e taxas de juros de cada conta", explica Henrique Castro, professor de finanças da Escola de Economia de São Paulo da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Em seguida, diz Henrique, é necessário fazer um planejamento dos rendimentos.
Com esses números em mãos, é possível verificar a capacidade de pagamento e definir o que será quitado. "As despesas essenciais como energia, água, gás e até o financiamento imobiliário devem ser priorizadas", afirma o especialista.
O ideal é não atrasar dívidas com o banco ou com a operadora de cartão de crédito em razão dos juros, mas se não for possível, a renegociação é uma saída. "Além disso, no caso dos bancos, existe a chance de portabilidade, que é quando a pessoa transfere a dívida para outra instituição, com taxa de juros menor, desde que atenda a alguns critérios", diz Castro.
'É desesperador'
A representante comercial Camila Sanches, de Santo André (SP), até conseguiu renegociar recentemente a dívida do carro com o banco. Mas as despesas básicas da casa, o financiamento imobiliário e o cartão de crédito estão atrasados. Sem rendimentos desde o início da pandemia, Camila diz não saber o que fazer. "Nunca imaginei passar por algo assim. É desesperador", conta.
Para garantir o mínimo, a representante faz pequenos trabalhos de costura criativa. "Mas todos estão sem dinheiro, há poucos pedidos", diz. O marido, que estava desempregado, acaba de conseguir se recolocar. "Ainda assim, não sei quando eu mesma voltarei a trabalhar, pois vendo diretamente para lojistas e muitos clientes quebraram na pandemia."
Renda emergencial
Em casos assim, de acordo com Castro, da FGV, é fundamental recorrer aos programas de auxílio oferecidos pelo governo. Foi o que fez a família da cabeleireira Caroline dos Santos, de São Paulo. Além dela, que não pode trabalhar por conta das restrições no estado, o pai, a mãe e o irmão, que são autônomos, estão sem renda. A irmã trabalha em um pequeno mercado e tem sido a única a contribuir com as despesas da casa. "Minha mãe recebe o auxílio-aluguel. É claro que não cobre todo o aluguel, mas ajuda", diz Caroline.
A cabeleireira e a família contam com a continuidade do auxílio emergencial para tentar quitar as dívidas vencidas. "Estamos com quase tudo atrasado: água, luz, telefone, internet, cartão de crédito. Recebo ligações de cobrança o dia todo", lamenta. Caroline diz que tudo que é supérfluo foi cortado. "De vez em quando, aparece alguma cliente para atender em casa, mas mesmo isso tem se tornado raro por causa da pandemia."
Onde conseguir ajuda
Para Ione Amorim, do Idec, é importante ter em mente que, se a pessoa não tem condições de arcar com uma dívida, não adianta tentar o acordo. "Isso só vai gerar um endividamento maior porque a pessoa assume condições às quais não está apta", diz. "O essencial é manter o diálogo. O banco ou qualquer que seja o credor tem que apresentar uma proposta para a realidade de cada um."
Em alguns casos, explica Ione, é possível recorrer ao Procon e à Defensoria Pública para pedir a suspensão temporária da dívida. Outros instrumentos úteis são a calculadora do Banco Central, disponível no site e no aplicativo, que ajuda a calcular juros e compara riscos e custos das opções de crédito, como financiamentos, empréstimos consignados, empréstimos pessoais e cheque especial. O site consumidor.gov.br também pode ser um aliado para a solução de conflitos nas relações de consumo.
O Idec oferece, ainda, uma planilha de orçamento doméstico, que pode ser baixada gratuitamente. Criada para ajudar na organização da vida financeira da família, o documento traz conceitos de educação financeira e consumo responsável.
Dicas importantes
As noções de educação financeira são valiosas não só para os inadimplentes. Mesmo quem está com as contas em dia corre o risco de cair em uma armadilha de crédito. O professor Henrique Castro, da FGV, apresenta, a seguir, orientações para evitar problemas na vida financeira. Confira:
- As despesas precisam caber na receita. Anote tudo o que você gasta. Quem não enxerga, não controla;
- Energia e água, por exemplo, não dá para cortar. Mas dá para economizar;
- Tente não comprometer mais de 30% de sua renda com o pagamento de parcelas;
- Evite atrasar o pagamento do cartão de crédito e do cheque especial, pois ambos têm juros muito altos;
- Seja contido nos gastos do cartão. As dívidas crescem rapidamente;
- Se você estiver habilitado, prefira pegar um crédito consignado em vez de um financiamento bancário, pois a taxa de juros é muito menor;
- Não compre por impulso. Pesquise muito antes de efetuar qualquer compra de maior valor. Sempre peça descontos e veja se vale a pena pagar à vista;
- Não deixe dinheiro parado na conta corrente. Escolha modalidades de investimento que permitam o saque imediato;
- Tente guardar um pouco de dinheiro mensalmente, por menor que seja a quantia. O importante é criar o hábito e, assim, montar uma reserva de emergência.