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Artigo publicado no jornal Campo Grande News, em 30/08/2020
A insegurança no trânsito é um dos graves problemas mais subvalorizados no Brasil. Ano após ano, as mortes nas estradas e nas cidades são noticiadas como mera estatística, poucas ações são tomadas para, de fato, reverter o problema, e ainda convivemos com um discurso, às vezes barulhento, de crítica à fiscalização, o que se torna saudação à impunidade e menosprezo à vida.
Em linha com esse discurso, há um ano, o presidente Jair Bolsonaro apresentou o Projeto de Lei 3.267/19, que propõe alterações no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) que podem ter grande impacto negativo na segurança no trânsito. Assim que foi apresentado, centenas de organizações do setor se posicionaram contra as mudanças, incluindo os que assinam este artigo.
A Câmara dos Deputados aprovou a tramitação em caráter de urgência do projeto. Em meio à pandemia da covid-19, qual a urgência em aprovar uma lei que não implementa melhorias efetivas ao CTB e ainda amplia o risco de mais mortes?
Em 2018, a epidemia da violência do trânsito matou 32.655 brasileiros, o que coloca o país na terceira posição do maior número de mortes no asfalto. O custo da tragédia para os cofres públicos é estimado em mais de R$ 40 bilhões ao ano, incluindo internação dos mais de 400 mil feridos anualmente.
Em períodos “normais”, mais de 60% dos leitos hospitalares do SUS são ocupados por vítimas de acidente de trânsito. Reduzir a violência nas vias se torna mais imperativo ainda, pois significa aumentar a capacidade do sistema para combater a pandemia e tratar de outros problemas de saúde.
Mas o que isso tem a ver com o PL 3.267? O projeto propõe alterações que reduzem a capacidade e a efetividade da fiscalização a descumprimento de regras de trânsito. Regras que deveriam ter o objetivo de tornar o deslocamento das pessoas mais seguro e, com isso, promover a prevenção de comportamentos de risco. Em outras palavras: abranda as regras de trânsito em benefício de motoristas infratores, na contramão do que apontam as evidências, contribuindo para a impunidade e o aumento das mortes.
Na época, o projeto ficou conhecido por retirar a obrigação do uso da cadeirinha infantil, o que foi corrigido na Câmara. Mas outros pontos mais graves e abrangentes, como a flexibilização do sistema de pontuação de motoristas infratores continua, além da ampliação do prazo para a realização dos exames e a redução da gravidade do uso incorreto de capacete por motociclistas.
Uma das principais ferramentas para a efetividade da fiscalização é o sistema de pontuação rígido, justo e eficaz. Um sistema nesses moldes é responsável pela redução de 11% a 40% no cometimento de infrações, segundo estudos internacionais. O aumento do número de pontos de 20 para 40, como previsto, poderá levar a imediata redução do poder dissuasório do sistema, incentivando mais infrações, colisões e atropelamentos que levam a lesões e mortes. A fiscalização no Brasil já é insuficiente, qualquer nova medida de enfraquecimento é ato de claro incentivo à impunidade e insegurança.
Vale lembrar que a agenda do governo federal em relação ao relaxamento das leis trânsito teve outros retrocessos, beneficiando os infratores, como a tentativa de eliminar a fiscalização eletrônica e a suspensão do uso do radar móvel nas rodovias federais, que implicaram aumento, já comprovado, das mortes e feridos nessas vias.
Qual seria, então, a solução? Outra falha do PL 3.267 é a falta de proposições que caminhem para melhorar a segurança das vias. Ações alinhadas com as boas práticas internacionais que vêm sendo adotadas com sucesso em Fortaleza e São Paulo, como redução de situações de risco, de limites de velocidades e mudanças no projeto de vias e travessias, não são mencionadas no texto.
Diante disso, é urgente que o projeto seja mais discutido e profundamente modificado. Não há motivo nem viabilidade para que isso seja feito durante a crise sanitária. Assim como há, hoje, um envolvimento mundial no combate à pandemia da covid-19, é preciso o engajamento da sociedade no enfrentamento da pandemia silenciosa que, todos os anos, leva tantos e tantos brasileiros: as mortes no trânsito.
(*) Rafael Calabria é Coordenador de Mobilidade do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor)
(*) Ana Carbonari é Diretora Presidenta da UCB (União de Ciclistas do Brasil)