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Reportagem do jornal O Globo, publicada em 09/10/2020
A metalúrgica do microempresário paulista João Georges, de 53 anos, foi atingida em cheio pela pandemia, e ele não teve outra opção a não ser cancelar o plano de saúde coletivo da empresa, que atendia a ele e aos três filhos. Na tentativa de cortar custos, ele foi surpreendido pela exigência da operada de um pagamento de dois meses a título de aviso prévio.
— Veio a pandemia e minha indústria parou, fiquei com sérios problemas financeiros, então resolvi cancelar o plano empresarial. Foi quando descobri que não podia deixar de pagar o aviso prévio. Fiquei indignado, mas não podia arriscar sujar o nome da empresa e ter crédito negado — diz Georges, que era cliente da SulAmérica.
O que o microempresário temia aconteceu com Jorge Siqueira, dono de uma sapataria. Siqueira não teve acesso às linhas de crédito que socorreram pequenos empresários durante a pandemia, justamente por ter o CNPJ negativado pela SulAmérica em razão do cancelamento do plano sem pagamento do aviso prévio:
— Desde 2017 eu enfrentava dificuldade para pagar o plano de saúde. Tentei negociar, mudar para um contrato mais barato, mas não consegui. Em 2018, não consegui mais pagar e negativaram minha empresa — diz Siqueira, que briga judicialmente com a operadora.
A SulAmérica diz não comentar processos judiciais em andamento.
Segundo Rafael Robba, advogado especializado em direito à Saúde, do Vilhena e Silva Advogados, o número de consultas de micro e pequenos empresários ao escritório sobre a legalidade da cobrança de aviso prévio ou multas para cancelamento aumentou muito durante a pandemia:
— Normalmente, o plano tem uma cobertura familiar, e quem opta por cancelar é porque realmente não tem condições. E é surpreendido com essa cobrança. Na minha avaliação, a cobrança é abusiva, já que a Justiça determinou que a nulidade do artigo 17 da Resolução Normativa 195 da Agência Nacional de Saúde (ANS) que tinha essa previsão.
ANS teve que mudar regra
A decisão citada por Robba é fruto da Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Procon-RJ contra a ANS, em 2013, que questionava a previsão da cobrança de dois meses de aviso prévio do consumidor que pretende encerrar o contrato.
A sentença proferida em 2019 determinou a anulação do artigo, por entender a cobrança abusiva, diz a advogada do Procon estadual, Juliana Lobianco. Ela considera que a decisão judicial se estende aos contratos das operadoras:
— Se a previsão foi anulada, entendemos que as operadoras deveriam cancelar essa cobrança. Em caso de exigência de pagamento, orientamos que se procure o Procon.
Ana Carolina Navarrete, advogada responsável pelo Programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), diz que essa cobrança atinge principalmente os contratos coletivos empresariais menores:
— Nos grandes contratos sempre há negociação, mas para os pequenos isso não acontece. Tratam-se de planos coletivos com característica de familiar. Já há jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça (STJ), inclusive, equiparando esses contratos aos familiares e proibindo essa cobrança — destaca Ana Carolina.
O engenheiro civil Henrique Melman, de 71 anos, já buscava há tempos reduzir o custo da empresa com plano de saúde. Em março, ele e a neta deixaram o contrato da Amil, restando sua filha e seu neto, que em abril também decidiram migrar para outro plano.
Melman estava disposto a pagar o aviso prévio, no entanto, a Amil cobrou a taxa referente à mensalidade de R$ 5.200, que vigia enquanto havia quatro beneficiários no plano, e não o valor referente aos dois familiares, de R$ 1.300.
— A Amil informou que eu deveria pagar duas parcelas de R$ 5.200, mas como eu pagaria isso se só sobraram duas vidas no plano? Pelo contrato, eu deveria pagar duas parcelas de R$ 1.300. A regra deles é de que o segurado pague e depois seja reembolsado. Mas estamos no meio da pandemia, onde eu arranjaria dinheiro para pagar todo esse valor? — diz o engenheiro, que só conseguiu que a empresa retificasse o valor após registrar queixa na ANS.
A Amil ressaltou que Melman não contestava a cobrança do aviso prévio, mas o valor das últimas mensalidades.
Ao intervir a favor do consumidor no caso de Melman, a ANS considerou que a cobrança era devida no caso de Siqueira. É que a agência entende que, independentemente da anulação do parágrafo único do artigo 17 da RN 195 pela Justiça, as operadoras podem fazer a cobrança caso a informação conste em contrato e tenha sido feita a notificação do usuário, como estabelece o Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Incentivo à judicialização
Para o Idec, a posição da ANS contraria a decisão judicial e incentiva práticas ilegais por parte das empresas, promovendo o aumento da judicialização, uma vez só resto o Judiciário aos usuários para ter seus direitos assegurados.
SulAmérica e Amil argumentam que a cobrança é legal. A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) diz que, em consulta à ANS, a agência confirmou sua interpretação de legalidade da cobrança do aviso prévio e da multa por cancelamento.