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Aumento da pobreza impulsiona consumo de alimentos ultraprocessados

Especialistas alertam que crise econômica tem reduzido a qualidade da alimentação dos brasileiros durante a pandemia de Covid-19

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Globo Rural

Atualizado: 

29/04/2021
Foto: iStock
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Reportagem da Revista Globo Rural, publicada em 20/04/2021

Além da fome, consequência da insegurança alimentar grave que atingiu 19 milhões de brasileiros no último ano, a crise econômica agravada pela pandemia de Covid-19 também tem impactado a qualidade da alimentação de uma parcela da população que viu a sua renda diminuir em meio ao aumento expressivo no preço dos alimentos básicos.

“Quando a gente olha os índices de preços, a carne de frango, a carne congelada, o pescado, o ovo, essas fontes de proteínas primárias subiram muito de preço. Já para os ultraprocessados, como nuggets e hambúrguer, essa a variação de preços foi bem menor”, destaca o coordenador do Índice de Preços ao Consumidor calculado pela FGV-IBRE, André Braz.

Se a alta acumulada em 12 meses da carne bovina in natura chegou a 31% em março, as versões industrializadas da proteína animal – o que inclui salsicha, mortadela e outros ultraprocessados, subiram 15,23% no período, de acordo com dados do IPCA medidos pelo IBGE.

A situação tem impacto também no balanço das gigantes do setor de proteína animal. No caso da BRF, as vendas de aves in natura registraram queda de 7,6% em 2020 enquanto a venda de processados cresceu 10,3%.

Os números também incluem produtos de maior valor agregado, mas, diante das condições da economia brasileira, acredita-se que esse crescimento tenha sido puxado justamente pelos alimentos de menor custo.

cluem produtos de maior valor agregado, mas, diante das condições da economia brasileira, acredita-se que esse crescimento tenha sido puxado justamente pelos alimentos de menor custo.

“A gente vê que já existe uma tendência de aumento no custo dos alimentos saudáveis e uma redução do preço dos ultraprocessados. Essa redução é preocupante porque, justamente no cenário que estamos hoje, de redução da renda das famílias, obviamente vai haver um deslocamento do consumo para o que for mais barato”, explica a pós-doutoranda da Faculdade de Saúde Pública da USP e consultora técnica do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ana Paula Bortoletto.

Em estudo publicado em janeiro do ano passado, a instituição traçou o histórico de preços dos 102 alimentos mais consumidos pelos brasileiros desde 1995 e constatou que, caso se mantenha o padrão observado nos últimos 20 anos, os alimentos saudáveis deverão se tornar mais caros do que alimentos não saudáveis após 2026. “É possível que agora, durante a pandemia, essa tendência tenha se acelerado, mas ainda não temos os dados pra confirmar”, observa a nutricionista.

Embora não caracterize um contexto de fome propriamente dito, o aumento do consumo de alimentos menos saudáveis por conta da inflação dos alimentos no país revela um cenário de insegurança alimentar leve a moderada, segundo observa o professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN), Nilson de Paula.

Segundo pesquisa conduzida pela Rede PENSSAN em dezembro do ano passado, 34,7% da população brasileira se enquadrava nessas condições, agravada nos casos de famílias em que predomina o emprego informal ou em situações de desemprego.

“Qual é o desdobramento disso no contexto da pandemia? É que, com a redução da renda, com o desemprego, que já vem aumentando desde antes da pandemia, isso começa a fazer vítimas no âmbito da classe média. A gente começa a ver que a insegurança alimentar começa a andar junto com o empobrecimento, com a redução e a precarização das condições de vida”, ressalta o pesquisador ao lembrar que o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados também está relacionado a outros fatores de mercado.

Não à toa, o segmento tem sido a principal aposta da indústria de carnes, observa o professor da USP e da FGV, Marcos Fava Neves. “Como eles já têm marca, força de venda e acesso a canais internacionais, os frigoríficos têm um ativo inutilizado que é toda essa infraestrutura sendo usada apenas para carne. Então, esse é um movimento natural”, pontua Neves.

No mercado interno, o professor e consultor em agronegócios destaca que a aposta dessas empresas está, sim, relacionada ao cenário de perda de poder de compra da população. “Com isso, amplia-se também a linha de produtos e, havendo migração do consumidor para uma ou outra categoria mais barata, continua dentro da mesma empresa”, explica o professor. 

Maior produtora mundial de hambúrguer, a Marfrig também sentiu esse aumento de consumo, registrando crescimento de 61% nas vendas de enlatados e industrializados.

“Boa parte desses enlatados e produtos industrializados que normalmente eram direcionados à exportação começaram também a ter um consumo a nível de Brasil. Numa tentativa que a gente fez aproveitando o crescimento do consumo a partir do auxílio emergencial, direcionamos enlatados para o mercado interno e isso teve um crescimento”, revelou o diretor-presidente da companhia, Miguel Gularte, ao prever um cenário semelhante este ano no país.

A Revista Globo Rural procurou a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) para entender como a pandemia afetou a venda de alimentos ultraprocessados, mas a instituição, em nota enviada à reportagem, não comentou sobre o assunto.

A entidade afirmou apenas que as “categorias que mais cresceram em 2020 foram justamente as de alimentos utilizados para o preparo das refeições nos lares, como arroz, farinha de trigo, açúcar, leite UHT, óleo de soja, macarrão, carne de frango e carne suína” e destacou a essencialidade do setor durante a pandemia.

A Abia não abordou os impactos da pandemia na qualidade da alimentação dos brasileiros nem como a perda de renda afetou o consumo das populações mais vulneráveis. Por outro lado, destacou o aumento nos custos de produção da indústria.

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