Integral, só que não
De 14 biscoitos que se declaram integrais, apenas três contêm farinha de trigo ou cereal integral como principal ingrediente e nenhum tem alto teor de fibras. Por falta de legislação específica, produtos não estão irregulares
Substituir produtos refinados por integrais é uma recomendação bastante conhecida para ter uma alimentação mais saudável. Como não passam pelo processo de refinamento, os alimentos integrais normalmente possuem mais fibras e mantêm micronutrientes, como vitaminas e minerais. Porém, quando se trata de produtos ultraprocessados – aqueles em pacotinhos normalmente prontos para consumir – todas essas vantagens podem ir pelo ralo. Quem compra biscoitos integrais, por exemplo, tem motivos de sobra para se decepcionar. Uma pesquisa do Idec constatou que apenas três de 14 produtos avaliados contêm farinha de trigo ou cereal como principal ingrediente de sua fórmula. Do restante, seis biscoitos contêm mais farinha refinada do que integral; e cinco sequer têm farinha ou cereais integrais em sua composição! Veja no quadro abaixo as marcas avaliadas e o desempenho de cada uma.
SEM LEI
Então quer dizer que todos esses biscoitos de grandes marcas estão em situação ilegal? É o que deve estar se perguntando o leitor. Mas a verdade é que eles não estão em desacordo com a legislação de alimentos, simplesmente porque as normas do setor não fixam nenhum critério para um produto declarar que é integral. A resolução no 263/2005 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que regulamenta produtos à base de cereais, amidos e farinhas, não traz nenhuma linha a respeito do assunto.
“Como não há legislação específica, a indústria tem carta branca para alegar que produtos ultraprocessados são integrais mesmo quando não possuem nenhum tipo de cereal integral, como observado em cinco biscoitos analisados”, critica Ana Paula Bortoletto, nutricionista do Idec e coordenadora da pesquisa. Em resposta oficial ao Idec, a Anvisa informou que a norma em questão passará por revisão, a fim de estabelecer critérios mínimos para um alimento se declarar integral. “O processo regulatório encontra-se em fase inicial de pesquisa de referências internacionais e levantamento dos atores interessados. Em seguida, a proposta será submetida à aprovação pela Diretoria Colegiada”, diz Thalita Antony Lima, gerente-geral de alimentos da agência. Já não era sem tempo! Por enquanto, porém, a única forma de o consumidor saber se um produto é mesmo integral é olhando a lista de ingredientes. A lista é obrigatoriamente disposta em ordem de proporção, ou seja, do ingrediente em maior quantidade para aquele em menor quantidade. No caso de produtos de panificação, como os biscoitos, o ideal é que a farinha integral seja o primeiro item da lista. Outra alternativa seria que os fabricantes especificassem o percentual de farinha ou cereais integrais presentes no alimento, pelo menos, para dar mais clareza ao consumidor. Mas, dos produtos avaliados, apenas um traz essa informação: o biscoito Cacau e Cereais Belvita.
Por conter mais fibras, o alimento integral é absorvido mais lentamente pelo organismo, aumentando a sensação de saciedade. Isso ajuda a controlar a ingestão de calorias e, assim, a prevenir o ganho de peso.
- As fibras do tipo insolúvel (presentes em farelo de trigo, frutas, legumes e verduras) auxiliam no trânsito intestinal. Elas favorecem um tipo de fermentação que diminui o pH do intestino, o que ajuda na digestão.
- O consumo de fibras também favorece a redução da pressão arterial (prevenindo a hipertensão), do nível de glicemia no sangue e auxilia no tratamento de doenças cardiovasculares.
- Alimentos integrais contêm micronutrientes (como vitaminas e minerais) que seriam eliminados no processo de refinamento. O arroz integral, por exemplo, tem vitamina A, enquanto o branco não tem.
Fontes: Ana Paula Bortoletto (Idec) e Semíramis Domene (Unifesp)
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Embora a lista de ingredientes seja a única fonte de informação hoje, ela também pode confundir. Os cinco biscoitos que contêm apenas farinha refinada adicionam fibras separadamente para “caracterizá-los” como integrais. É comum ver entre os ingredientes desses produtos itens como fibra de aveia, fibra de trigo, farelo de trigo. Esse “monte de fibras” na lista pode impressionar o consumidor. Mas será que o resultado é o mesmo do que o da farinha integral? De acordo com Semíramis Domene, professora adjunta de nutrição do Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), não. “A adição de fibras na forma de farelo de cereais à farinha refinada pode não reproduzir as proporções originais [da farinha integral]. Mesmo que a quantidade final da mistura reproduza precisamente os teores originais [de fibras], os efeitos serão diferentes. O mesmo acontece em relação a outros componentes, como os minerais e as vitaminas”, diz. A pergunta que não quer calar é: por que os fabricantes preferem utilizar a farinha refinada mesmo nos produtos ditos integrais? De acordo com Domene, a razão é econômica. “Como tem menos nutrientes, a farinha de trigo refinada se conserva por mais tempo, o que diminui perdas e, consequentemente, reduz o custo operacional”, explica a professora. Além disso, ela acredita que produtos com farinha branca são mais “atrativos” para o consumidor pouco acostumado a alimentos integrais, pois são mais macios, mais claros e duram mais tempo.
POUCAS FIBRAS
Quem compra biscoitos integrais pensando em ingerir mais fibras também vai se decepcionar. Nenhum deles é “rico em fibras” ou tem “alto teor de fibras”, de acordo com os critérios fixados pela Anvisa, nem mesmo os que têm farinha integral como ingrediente principal. Para se enquadrar nessas categorias (e poder indicá-la no rótulo do produto), o alimento deve conter pelo menos 5 gramas de fibras por porção do alimento. Abaixo dessa, está a categoria dos alimentos que são “fonte de fibras”, que são aqueles que contêm pelo menos 2,5 g do nutriente por porção. Só quatro biscoitos se encaixam nela; os outros dez, nem isso. Um dos biscoitos erra feio na declaração em relação a fibras: o Cookie sabor Laranja, da marca Svelte, informa no rótulo ter alto teor de fibras, mas possui apenas 1,8g do nutriente por porção, segundo declarado na tabela nutricional, infringindo a legislação. Além disso, outros três produtos usam alegações sobre fibras nas páginas oficiais da marca na internet de forma indevida: Nesfit Original e Nesfit Aveia e Mel (Nestlé) e Sublime Original Cream Cracker Integral (Panco). Eles declaram ser “fonte de fibras”, no caso dos biscoitos Nesfit, e “nutritivo, rico em fibras de trigo”, no caso do da Panco, mas não contêm a quantidade de fibras exigidas para tanto – têm entre 1,6 g e 1,8 g do nutriente por porção. Depois de questionada pelo Idec, a Nestlé mudou o site. Para o Idec, o conteúdo do site oficial das marcas viola o direito à informação adequada e caracteriza propaganda enganosa, segundo os artigos 6o e 37o do Código de Defesa do Consumidor. “Embora a legislação que regula o uso dessas alegações tenha sido criada para o rótulo dos alimentos, por analogia, a mesma regra deve valer para qualquer peça de comunicação ou publicidade, a fim de não induzir o consumidor a erro”, destaca a nutricionista do Idec. A Anvisa reforça que o uso de alegações desse tipo no rótulo ou em materiais publicitários é voluntário, mas os fabricantes que decidirem utilizar devem seguir as regras para tanto. A agência também diz que vai notificar as empresas irregulares identificadas na pesquisa do Idec. “Caso as irregularidades sejam confirmadas, as empresas serão instadas a adequarem a rotulagem dos produtos”, promete a gerente geral da Anvisa.
O Idec notificou todos os fabricantes dos biscoitos avaliados sobre os resultados da pesquisa. Apenas três responderam até o fechamento desta edição:
- Arcor – Biscoito Integral Triunfo: entende que não há irregularidade em apresentar o termo “integral” no produto que possui em sua composição farinha de trigo e farelo de trigo, pois apresentam todas as partes do grão inteiro em sua composição. A empresa diz que a escolha da combinação de farinha, farelo e fibra de aveia foi baseada em ampla análise sensorial, sem abrir mão de um perfil nutricional satisfatório.
- Vitao Alimentos: apenas agradece as informações e a objetividade dos resultados apresentados.
- Nestlé: esclarece que a informação “fonte de fibra” foi removida na comunicação sobre os biscoitos Nesfit Integral e Nesfit Aveia e Mel e apresenta printscreen do site com o texto atualizado.