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As inovações tecnológicas no setor das telecomunicações têm apontado para um cenário em que provedores de serviços antes distintos, como TV por assinatura e telefonia, passarão a competir entre si oferecendo serviços muito similares. A tendência, chamada de convergência tecnológica, terá grande impacto para o consumidor e, por isso, tem sido acompanhada de perto pelo Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
Um exemplo deste grande impacto para o consumidor observa-se na discussão das regras de transmissão da TV digital, cujo padrão foi recentemente escolhido pelo governo federal, a serem decididas nos próximos dias pelo Comitê de Desenvolvimento do Sistema Brasileiro de TV Digital, formado por 11 ministros, definirão se a TV brasileira incorporará um sistema anticópia, com o objetivo de combater a pirataria. Se isso acontecer, serão introduzidas restrições que inviabilizarão, por exemplo, a prerrogativa de gravarmos em casa, para assistir depois, aqueles programas que não pudemos ver, por qualquer razão.
Um sistema anticópia é uma tecnologia aplicada a conteúdos digitais, como a programação de TV, que controla aquilo que o consumidor pode fazer com o conteúdo. Repudiado pelos ministérios da Cultura e da Ciência e Tecnologia, tem sido defendido abertamente pelo ministro das Comunicações.
Para entender os impactos dessa decisão sobre os direitos do consumidor, imagine-se que um distribuidor de música inclua o sistema anticópia nos seus CDs. Se o sistema for contrário às suas expectativas (por exemplo, ao não permitir que as músicas sejam executadas em certos aparelhos), o consumidor pode decidir não adquirir aquele produto.
No caso da TV digital, é diferente. Se o sistema for adotado como padrão, toda a tecnologia da televisão digital será afetada. O consumidor perderá sua liberdade de escolha na medida em que todas as transmissões, assim como os conversores (que deverão ser adquiridos para viabilizar a leitura do sinal digital pelos atuais aparelhos de TV), estarão condicionadas ao sistema.
Outro impacto ocorrerá sobre a chamada "convergência das mídias". Com a tecnologia digital, os limites entre os serviços de "televisão", "rádio" e "internet" estão desaparecendo. Para o consumidor é desejável a flexibilidade dos conteúdos: que o sinal da TV digital seja recebido no computador, celular ou em qualquer dispositivo. O sistema anticópia, entretanto, eliminará essa possibilidade, por não permitir que os sinais que saem do conversor sejam exibidos em outros aparelhos, exigindo uma espécie de "licença" para funcionar. Isso contraria o Decreto 4901/03, do Sistema Brasileiro de TV Digital, no objetivo de "contribuir para a convergência tecnológica e empresarial dos serviços de comunicações".
Além disso, se adotado como padrão, todos os conversores sairão de fábrica com essa tecnologia. Com isso prejudica-se a inovação, pois o fabricante brasileiro que quiser criar utilidades para os conversores da TV digital correrá o risco de violar os padrões técnicos impostos pelo sistema, inviabilizando a oferta de produtos que atendam melhor aos anseios do consumidor.
Para o consumidor, o problema mais grave está no fato de que, em nome do combate à pirataria, desconsidera-se as liberdades de reprodução criadas com o intuito de promover o acesso a conteúdos e estimular a circulação de informação, cultura e conhecimento, elementos fundamentais para a promoção do desenvolvimento. Esses direitos, existentes na lei de direitos autorais, incluem a possibilidade de copiar pequenos trechos sem intuito de lucro, bem como a reprodução de obras em domínio público. E pior, o consumidor perderá estes direitos para nada, pois esse sistema anticópia vem sendo apontado como ineficaz por estudos internacionais, como os das Universidades de Berkley e Princeton e será fatalmente burlado por aqueles que fazem da reprodução em grande escala uma profissão. Por isso foi rejeitado nos Estados Unidos, país que tradicionalmente defende os detentores de direitos autorais.
Se adotada, a medida defendida pelo Ministério das Comunicações seria um "tiro no pé" para o combate da cópia ilegal, pois reduziria drasticamente o acesso à cultura e ao conhecimento sem, contudo, contribuir para a redução da pirataria. Diante disso, somos contra a adoção do mecanismo em qualquer condição, pois seus efeitos colaterais serão maiores do que o problema que pretende resolver.
*Marilena Lazzarini, coordenadora executiva do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), é presidente da Consumers International; Luiz Fernando Moncau é advogado do Idec.
(Fonte: Publicado originalmente em O Estado de São Paulo )