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22/03/2012
Atualizado:
29/09/2017
Maria Elisa Cesar Novais
A defesa do consumidor é uma garantia fundamental insculpida no texto constitucional e deve ser preocupação precípua do Estado brasileiro (artigo 5º, XXXII, da Constituição Federal: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”).
As agências reguladoras, por sua vez, criadas com fins institucionais de regulação de grandes mercados, devem exercer o papel do Estado na defesa do consumidor.
A Anac – Agência Nacional da Aviação Civil não pode ser diferente. Nesse sentido, o artigo 8º, XXXV, da Lei nº 11.182/2005 é categórico:
“artigo 8º – Cabe à Anac adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento e fomento da aviação civil, da infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária do País, atuando com independência, legalidade, impessoalidade e publicidade, competindo-lhe:
(…)
XXXV – reprimir infrações à legislação, inclusive quanto aos direitos dos usuários, e aplicar as sanções cabíveis;”
O artigo acima transcrito demonstra que, dentre as atribuições da ANAC no exercício de regulação e fiscalização do setor de transporte aéreo, a observância à legislação vigente em defesa dos usuários (consumidores) e a imposição de sanções competentes para coibir o seu desrespeito são expressas incumbências da ANAC.
A Anac foi criada em 2005, um bom tempo depois da criação de outras grandes agências reguladoras (Anatel, ANS, Aneel), seguindo o modelo regulatório adotado pelas demais, a fim, como determina a lei, de se desenvolver a regulação do setor a ser realizado por agência autônoma e independente.
Desde a sua criação, o setor de trasporte aéreo cresce ano após ano de forma surpreendente. Os números apresentados sobre passageiros transportados em rotas domésticas e internacionais de 2002 a 2010 no Anuário do Transporte Aéreo 2010 produzido pela Anac demonstram que, especificamente, de 2006 a 2010 houve um crescimento de passageiros transportados de 61,25% e vale destacar que só entre 2009 e 2010, o crescimento foi de 22,33%. Considerando somente os voos domésticos o salto é, do mesmo modo, expressivo: enquanto entre 2006 e 2007, o transporte de passageiros em voos domésticos cresceu apenas 2,17%, entre 2009 e 2010 cresceu 17,12%.
Por óbvio que tamanho crescimento da demanda exige, em contrapartida, estrutura para atendimento adequado e o zelo pela regularidade e pontualidade dos voos. É exatamente isso que espera o consumidor de transporte aéreo: que, ao comprar a sua passagem, tenha a garantia de chegar na hora contratada ao seu destino, permitindo, assim, o seu planejamento. Isso é contrato, é cumprimento de uma obrigação previamente avençada. Se não for possível cumprir com o horário, que seja um motivo que extrapole a responsabilidade da empresa aérea, porém que, nesse momento, ele tenha informação sobre o atraso ou o cancelamento do voo e, quando for necessária, a assistência material, com alimentação e acomodação.
No entanto, o que se percebe é que, infelizmente, a regulação que se espera da Anac depende muito mais da provocação da sociedade civil do que da proatividade na regulação com base na identificação dos problemas — não que não haja dados para isso — que mais afligem o lado mais vulnerável do mercado mas que, ao mesmo tempo, que lhe dá sustentabilidade: o consumidor.
Exemplo claro disso é a Resolução 141/2010 da Anac. Essa resolução trata da assistência informativa e material em caso de atrasos e cancelamentos de voos e na preterição no embarque (overbooking). A resolução não foi uma iniciativa da agência reguladora, mas uma exigência judicial resultado de uma ação civil pública proposta pelo Idec, Procon-SP, ADECON/PE e Movimento das Donas de Casa e Consumidores/MG contra a ANAC e várias companhias aéreas em 2006 (autos nº 2006.61.00.028224-0/6ª Vara Federal de São Paulo). A ação foi ajuizada exatamente na época da ocorrência do que ficou conhecido como caos aéreo (fim de 2006) e, somente algum tempo depois do seu ajuizamento, houve a definição de regras claras de respeito ao passageiro que estivessem em consonância com o Código de Defesa do Consumidor. Até essa data, nem esse mínimo estava adequadamente regulado.
Todavia, o que se observa nos dados de reclamação, também advindos da Anac, é que as reclamações sobre atendimento, atraso e cancelamento de voos (além de bagagem e bilhete aéreo) se destacam: em 2010, de 39.577 reclamações registradas na agência, 35.863 se referem a esses assuntos, sendo que, especificamente 22.732 dizem respeito a atendimento, atraso e cancelamento de voos. 57,44% do total de 11 espécies de reclamações possíveis.
Combinada à pressão da sociedade civil, verifica-se a timidez da fiscalização e imposição de penalidades às empresas que descumprem a resolução por parte da ANAC. Essa timidez ficou bastante evidente após a pane que ocorreu no check-in da TAM no último dia 02 de março. A pane atingiu 30% dos voos domésticos e 25% dos voos internacionais. O patamar aceito pela ANAC é a afetação de, no máximo, 10% dos voos. Qual não foi a surpresa da sociedade organizada ao ler as notícias da imprensa que a TAM ficará em monitoramento especial pelos próximos 30 dias e, somente agora, se o atraso ultrapassar 10%, a empresa será cobrada a dar explicações sobre a origem do problema e as ações mitigadoras a serem adotadas pela companhia.
O Idec, em 2011, enviou uma carta à Anac, logo que os números sobre regularidade e pontualidade do Anuário de 2010 foram divulgados questionando as penalidades aplicadas às empresas e os valores das multas. A resposta foi parcial: apenas a quantidade de multas, sem outros detalhes. Em relação à decisão sobre o problema de atendimento da TAM, o Idec também enviou uma carta pedindo o detalhamento sobre a quantidade de reclamações registradas, as penalidades aplicadas, os valores recolhidos e contestados, decorrentes desse evento.
Todo esse questionamento justifica-se pela falta de transparência com que ainda se conduz a Anac. Esses números são importantes para que a sociedade organizada construa subsídios de fiscalização e possa contribuir com efetividade nos processos decisórios da agência, cuja previsão de participação social consta do artigo 27 da Lei nº 11.182/2005. Porém, obtê-los é uma tarefa hercúlea.
Além da falta de iniciativa em regular pontos importantes em defesa dos consumidores do transporte aéreo e fiscalizar o cumprimento dessas normativas, falta à agência a compreensão de que as reclamações dos consumidores são de grande relevância para definição de políticas para o setor. Ao invés de incentivar a reclamação de consumidores, percebe-se a sua total inibição. Isso fica bastante evidente quando se compara a totalidade de reclamações de 2010 (39.579 reclamações) e de 2011 (24.680 reclamações). Não se sustenta a ilusão de que a queda de reclamações demonstra melhora no setor, mas de que o canal de atendimento da Anac está mais difícil: os postos de atendimento nos aeroportos foram fechados e para o registro de uma reclamação na ANAC é necessário, antes, registrar um protocolo na própria companhia aérea. Vale esclarecer que, apesar do que diz a Resolução 196/2011, os postos de reclamação a serem disponibilizados pelas companhias aéreas claramente identificados e de fácil visualização não existem nos aeroportos.
O que resta ao consumidor? Recorrer aos JECs (Juizados Especiais Cíveis) disponibilizados nos aeroportos brasileiros? Como se estes estivesses disponibilizados em todos eles: conforme Provimento 11 do Conselho Nacional de Justiça, houve indicação da constituição dos JEC apenas em 5 aeroportos: Congonhas e Cumbica (SP), Galeão e Santos Dumont (RJ) e Juscelino Kubitschek (DF). Nada mais.
Recente notícia também demonstra que eles têm sido subutilizados: de julho de 2010 a julho de 2011 houve registro de apenas 4.068 reclamações, sendo que apenas 19,27% tinham sido resolvidas. Além de não se mostrar uma solução viável e célere para o problema do consumidor, o baixo percentual de solução demonstra que, apesar da importância de facilitar o acesso à justiça do consumidor, na dinâmica do transporte aéreo a solução judicial não é a melhor e mais facilitadora, bem como não há comprometimento das empresas aéreas com esse objetivo. Vale lembrar que a reclamação líder é a falta de informação (23,55%), o que evidencia a omissão de fiscalização do agente regulador.
Problemas não faltam e o setor só cresce. Não se conhece a agenda regulatória da Anac. A participação da sociedade civil ainda não é tão incentivada (vide a recentíssima Resolução 218/2012 que, apesar da medida benéfica, não foi aberta à Consulta Pública, como determina o artigo 27 da lei criadora da agência). Falta iniciativa na fiscalização da Anac e um importante insumo para a definição de políticas para o setor não só não é considerado, mas também não é incentivado.
Esses não são os únicos problemas. Aqui só foi mencionado o que se refere a atendimento em aeroportos. Ainda vale prestar atenção em compra de bilhetes e demais contratações dos consumidores com as companhias aéreas. A Anac precisa se abrir à sociedade civil, que vem se utilizando do transporte aéreo como reflexo da melhoria na condição econômica de boa parcela da população. Os processos decisórios estão previstos em lei, a participação social também. A regulação e a fiscalização são imprescindíveis e elas precisam ser feitas em benefício do equilíbrio do setor, mas com proteção à parte mais vulnerável da relação: o consumidor.