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Artigo publicado no Portal JOTA, de 18/02/2021
Os grandes desafios que o planeta enfrenta neste século nos ensinam sobre a importância de tratar de maneira coordenada e global aquilo que nos afeta como humanidade. A atual pandemia e a emergência climática são exemplos óbvios disso, ao evidenciar tanto a artificialidade da natureza histórico-política das fronteiras quanto os impactos maiores sobre as populações mais vulneráveis, incapazes de acessar direitos garantidos em outras latitudes.
Esses dois exemplos bem ilustram, no plano internacional, o que no processo civil brasileiro, em particular, já foi entendido há mais de três décadas: há direitos que afetam as pessoas de maneira coletiva e que demandam, portanto, mecanismos processuais próprios. É o caso dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos (também chamados de transindividuais), que têm efeito erga omnes – ou seja, devem beneficiar todos aqueles que se enquadram na mesma situação jurídica. A Lei 7347 introduziu, em 1985, as Ações Civis Públicas (ACPs) e representa enorme conquista para a nossa sociedade.
Quando um direito transindividual é violado, a solução jurídica emanada pela sentença deve alcançar a todos os afetados sem diferenciação. Qualquer caminho diverso terminaria por limitar quem pode e quem não pode usufruir de um direito, em clara negação da própria ideia de interesse erga omnes. Parece óbvio e simples, mas é essa a essência de um debate que se arrasta há duas décadas que culminará, no próximo dia 25 de fevereiro, com o julgamento do Recurso Extraordinário 1.101.937/SP no STF (Supremo Tribunal Federal).
O recurso foi interposto por grandes instituições financeiras que tentam limitar territorialmente os efeitos de sentenças proferidas no âmbito das ACPs. Elas se apoiam em uma alteração ao artigo 16 da citada lei, ocorrido em 1997, que estabeleceu que “a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator”. Ou seja, buscou reduzir os efeitos da sentença. Sem adentrar o contexto político que motivou e permitiu essa alteração legislativa e, ainda, sem explorar o já consolidado entendimento doutrinário e jurisprudencial, que é vasto ao apontar as atecnias e inconstitucionalidades na raiz de tal dispositivo, cabe aqui chamar atenção para o que significaria acatar o argumento dos recorrentes: desmontar de maneira irreversível, com danos sociais e jurídicos incalculáveis, o sistema criado para garantir acesso à Justiça a quem mais precisa – e do qual a ACP é o instrumento mais importante.
O microssistema processual coletivo brasileiro, da forma como se constituiu (e apesar dos ataques que sempre sofreu) é efetivo ao aglutinar demandas que, por sua própria natureza, não podem ser contidas pelas fronteiras criadas exclusivamente para organizar a prestação jurisdicional – temas relacionados ao meio ambiente e direitos dos consumidores estão evidentemente dentro deste conjunto. Impor a limitação territorial, tal e como propõem os bancos no caso sob análise, é admitir a necessidade de que cidadãos afetados por um mesmo problema, mas localizados em unidades federativas distintas, tenham de iniciar ações idênticas para garantir direitos iguais, inundando os tribunais com ações repetitivas.
Um sistema sobrecarregado e de recursos limitados, como o brasileiro, não teria qualquer chance em um cenário assim. Na prática, os processos seriam arrastados por ainda mais tempo, resultando em uma incapacidade generalizada do Judiciário de cumprir com sua obrigação mais elementar. Nosso país estaria, em definitivo, na contramão dos esforços por tornar a Justiça mais eficiente e mais efetiva.
Outra dimensão do mesmo problema é o agravamento das notórias e profundas desigualdades brasileiras. A aceitação do artigo 16 significaria que cidadãos residentes em um estado beneficiado por melhores estruturas poderiam gozar de direitos negados às populações mais vulnerabilizadas em outras unidades federativas. Estaríamos, nessa perspectiva, atropelando garantias prevista não só na Constituição Federal, como também em tratados internacionais em que o Brasil se compromete a garantir direitos fundamentais – como é o caso do acesso à Justiça – sem qualquer discriminação.
É por este motivo que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar a redação do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, no âmbito da correta análise de temas processuais, todos infraconstitucionais, decidiu por reforçar o caráter da extensão do dano e a não limitação geográfica da coisa julgada, de acordo com os interesses metaindividuais postos em juízo.
Como se vê, há muito em jogo. Neste momento, por determinação do ministro relator Alexandre de Moraes, todas as ações civis que questionam a abrangência territorial das ACPs estão suspensas esperando uma decisão definitiva do STF, resultando no atraso inadmissível de processos potencialmente urgentes, sobretudo no contexto de pandemia.
O Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), como propositor da ação que deu origem ao recurso em julgamento, tem reiterado sua histórica defesa dos direitos dos consumidores e jogado luz à necessidade de proteger o sistema de tutela coletiva, que tem se mostrado perfeitamente compatível com os objetivos e determinações da Constituição Federal – opinião enfaticamente compartilhada pelo Ministério Público. Para o Instituto, é preciso colocar fim a esse debate inócuo (em grande medida falacioso) que atribui ao modelo atual uma suposta falha de particularização quando, como se viu, sabemos que ele foi idealizado justamente para dar resposta àquilo que nos atinge por igual.
Espera-se agora que a Corte finalmente declare a inconstitucionalidade do artigo 16 da LACP e acolha a interpretação que o STJ deu à questão, pacificando-se a controvérsia sobre a coisa julgada decorrente das ACPs, de modo a levar em consideração a extensão do dano e os interesses metaindividuais em jogo. Limitar a abrangência territorial das Ações Civis Públicas significará deixar a Justiça brasileira em pedaços.