Nutrição sem estereótipos
O título desta entrevista é o nome de uma campanha idealizada pelo Conselho Regional de Nutricionistas 3ª Região (CRN-3) para combater os estereótipos na nutrição, que não são poucos: "só pessoas magras são felizes"; "tal alimento faz bem, tal alimento faz mal e não deve fazer parte da dieta"; "uma pessoa gorda não pode ser saudável"; "para emagrecer tem de sofrer" (o famoso no pain, no gain); entre tantos outros.
Quando se trata de nutrição, é muito fácil fazer o que está todo mundo fazendo e acreditar no que é compartilhado nas redes sociais. Por isso, a ideia da campanha é mostrar para as pessoas que todo corpo precisa ser respeitado, independentemente do seu tamanho, e orientá-las a ver com olhos críticos os discursos de nutricionistas e influencers, a fim de não cairem conversa fiada.
Quem nos explica, nas páginas a seguir, os objetivos da campanha e como os estereótipos podem prejudicar nossa autoestima e saúde mental, é a nutricionista Selma de Britto Gonçalves, coordenadora técnica do Setor de Ética do CRN-3.
SELMA DE BRITTO GONÇALVES é graduada em Nutrição na Faculdade de Ciências da Saúde São Camilo, com pós-graduação em Educação e Saúde Pública pela Unaerp e em Nutrição Clínica em Pediatria pelo Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Desde 2004 trabalha no Conselho Regional de Nutricionistas 3ª Região (CRN-3), onde é coordenadora técnica do Setor de Ética.
Por que o CRN-3 escolheu trabalhar o tema “nutrição sem estereótipos”?
Selma Britto: Em 2018, o Conselho Federal de Nutricionistas e os conselhos regionais trabalharam na atualização do Código de Ética do Nutricionista, criado em 2004, que passou a se chamar Código de Ética e Conduta do Nutricionista. Segundo esse documento, que baliza a atuação desses profissionais nas mídias digitais, os cidadãos devem ser respeitados quando recebem informações sobre alimentação e nutrição. Assim, o nutricionista tem de ter compromisso com a alimentação saudável e assumir seu papel de educador na área da saúde.
Com a atualização do Código, algumas condutas foram proibidas. Por exemplo, utilizar resultados obtidos pelos pacientes como uma prova social do seu trabalho, como fotos de antes e depois do acompanhamento nutricional, publicação de resultados bioquímicos e promessa de perda de peso.
Em 2020 veio a pandemia. E o que aconteceu? Com tudo fechado, o Código de Ética, que não permitia que os nutricionistas fizessem consultas que não fossem presenciais, teve o artigo 36 revogado, autorizando os atendimentos e as consultas online. Com isso, esses profissionais se tornaram mais ativos nas redes sociais, e começamos a ver comportamentos que não estavam em conformidade com o Código de Ética. Então, desde 2020, assumimos o compromisso de orientar os nutricionistas sobre a melhor forma de se comunicar com seus seguidores e pacientes nas redes sociais, e de mostrar para as pessoas que o conteúdo que elas consomem não está correto, pois pode gerar frustração em quem não consegue alcançar aqueles resultados e, muitas vezes, traz mais prejuízos emocionais do que estímulo.
Começamos a desenvolver palestras para os profissionais e estudantes, e lives nas mídias sociais. Mas não alcançávamos a sociedade, que precisa saber o que cobrar dos profissionais de saúde e dos influencers, que adotam discursos agressivos e estereotipados. Por isso, ampliamos nossa ação: demos um nome para a campanha – “Nutrição sem Estereótipos” – e começamos a aparecer na mídia e a participar de congressos reforçando que todo corpo tem de ser respeitado e aceito, e que ninguém precisa se enquadrar em padrões impostos.
Em 2024, a gente intensificou a campanha, criando uma identidade visual pra ela e aumentando a visibilidade. Ela foi lançada oficialmente no Congresso Brasileiro de Nutrição (Conbran), em 21 de maio.
Quais são os principais estereótipos sobre alimentação e nutrição?
SB: O primeiro é o estereótipo da magreza, que reforça que só quem é magro é feliz e tem sucesso. Vimos nas Olimpíadas de Paris, a Bia [Souza], lutadora de judô que ganhou medalha de ouro, quebrar estereótipos. Uma pessoa que não tem o corpo considerado padrão chegou ao ápice. E é isso que queremos validar.
Também existem estereótipos relacionados a alimentos: “Este alimento é bom, este alimento é ruim” ou “Quem não come comida fitness não é saudável”. Temos de respeitar o ambiente alimentar das pessoas, a cultura, o poder aquisitivo, a afetividade com os alimentos. Uma vez fizeram uma reportagem que dizia que quem comesse determinados alimentos reduziria cinco minutos da sua vida. E eram alimentos que pessoas de uma classe social mais baixa comem com frequência. Imagina uma mãe que não tem nada para dar ao filho, que só consegue comprar embutidos. Se ela der esse tipo de alimento, ela reduz o tempo de vida da criança; se não der, ela fica com fome. Esse não é o papel nem de profissionais de saúde nem de leigos. O profissional de saúde reponde eticamente por isso, o leigo, não. Então, quem tem de brecar essas pessoas é a sociedade, criticando e não consumindo esse tipo de conteúdo.
Os estereótipos abrangem a forma de se comunicar. Por exemplo, o “dia do lixo”. Alimento não é lixo, seu comportamento alimentar não é lixo. Você pode ter um dia para comer com mais liberdade, um dia livre. O que comer um brigadeiro te lembra? Que memórias te traz? Isso é lixo? Isso cria o que a gente chama de comer transtornado. Quando você se refere a um alimento como lixo ou outras palavras agressivas, cria-se uma angústia em comer. E muitas vezes em pessoas que nem deveriam ter esse problema, pessoas que têm o peso corporal normal. Outro estereótipo é: “Pra emagrecer tem de sofrer”. Não tem de ser assim. Temos de quebrar os estigmas do corpo magro, da dieta hipocalórica e restritiva. E não estamos romantizando a obesidade. O que estamos falando é que quem tem obesidade, que é uma comorbidade, tem de tratar, mas de forma respeitosa, sem dietas absurdas. A cultura da dieta restritiva ainda é muito forte, mas temos de fazer uma alimentação inclusiva, observando a realidade daquela pessoa e considerando vários aspectos, para tentar uma educação nutricional que ela consiga seguir, que lhe dê prazer e não medo de comer.
Outros estereótipos são: “O corpo gordo não tem saúde”, “Toda pessoa gorda tem o colesterol alterado”, “Eu nunca seria atendida por um nutricionista gordo, porque se ele é gordo, ele não sabe o que fazer”. Nutricionista tem de ser magro, loiro, usar jaleco branquinho. Isso é muito sério.
Começamos a campanha “Nutrição sem estereótipos” com essa abordagem da estética corporal, da gordofobia, mas há muitos outros esterótipos que não temos a capacidade de trabalhar nesse momento. Então vamos começar pequeno e tomara que no ano que vem consigamos incluir outros aspectos.
A mídia e as redes sociais exercem forte influência sobre as pessoas, impondo um padrão de beleza inatingível e que valoriza a magreza excessiva. Quais os impactos dos estereótipos e da corrida pelo corpo perfeito para a autoestima e a saúde mental, especialmente das mulheres?
SB: Para termos uma alimentação saudável não precisamos consumir o alimento da moda. Quanto mais in natura o alimento, melhor. O Guia Alimentar para a População Brasileira defende a alimentação simples, baseada no nosso bom arroz e feijão, com proteínas acesíveis, como produtos a base de ovos. As pessoas têm de saber que uma dieta saudável não precisa ser cara, com produtos de grife, porque hoje até comida tem grife (“Se você não comer o queijo X, não é saudável”).
Em relação à indústria da beleza e aos produtos que promovem a magreza eterna, temos um consultor que diz que junto com a estética da magreza existe a estética do liso, pois a pele não pode ter uma ruga. Existe uma série de estereótipos, não somente relacionados à nutrição, que atingem principalmente as mulheres. E isso traz consequências físicas e emocionais, fazendo com que elas precisem de tratamentos com outros médicos e psicólogos.
Como se proteger dessa influência negativa das redes sociais?
SB: Nosso grande instrumento é a informação, a educação. E nós, como conselho de fiscalização profissional, temos o papel de fiscalizar e orientar os nutricionistas e técnicos em nutrição para serem os profissionais que levam ao conhecimento das pessoas informação de qualidade sobre nutrição e que não usem estratégias que tenham conflitos de interesse. A atuação do nutricionista tem de ser dissociada de patrocínio de marcas. Essa é uma das linhas da nossa atuação.
A outra é mostrar para as pessoas que cada corpo é único e deve ser respeitado. Além disso, elas têm de saber que aquele corpo que veem nas revistas ou mídias sociais pode nem existir, pode ter sido feito por inteligência artificial, retocado no Photoshop, uma imagem criada para causar no consumidor a vontade de ter o que nem sempre ele vai conseguir. A gente entende que o mercado não está formando cidadãos, ele forma consumidores, porque não respeita o corpo das pessoas, que é o lugar de elas estarem no mundo, é o instrumento delas.
Nosso papel é mostrar que as pessoas não podem se comparar com corpos que muitas vezes nem existem e que elas precisam buscar os mecanismos de saúde disponíveis, públicos ou privados, porque muitas vezes o consumidor não sabe o que ele tem de procurar. Ele vai no serviço de saúde e fala que quer emagrecer para ficar igual a tal pessoa famosa. Mas o que ele precisa dizer é que ele quer ter um atendimento com um médico que faça para ele uma dieta personalizada.
Nossa campanha visa instrumentalizar as pessoas para que saibam o que é um corpo saudável e para que aceitem que o corpo delas não vai ser igual ao de uma modelo.
As redes sociais também estão cheias de informações falsas sobre alimentação e nutrição. Quais são as mais comuns?
SB: A mais comum é a gordofobia, porque é grotesco criticar o corpo do outro e exigir um padrão de magreza que na maioria das vezes não existe e que só é alcançado por pessoas que vivem para isso. Temos de aprender a ser críticos, a questionar: “Quem é aquela pessoa extremamente magra?”, “O que ela fez para ter aquele corpo?”. Muitas vezes, ela aparece na mídia dizendo que come tal coisa, a marca tal, mas na verdade ela já fez cirurgias estéticas, lipoaspiração, uma série de coisas. Mas isso ela não fala. O grande problema é padronizar o corpo e as mentiras que envolvem esse padrão de beleza. Essa associação entre idealização corporal e mentiras/promessas equivocadas é um grande risco para a saúde das pessoas. É muito perigoso e pode causar distúrbios inimagináveis.
No mundo ideal, como os nutricionistas deveriam trabalhar?
SB: Disseminando informações de qualidade. Sempre falamos que a diferença entre nutricionistas e leigos é que os primeiros são profissionais da área da ciência. O nutricionista tem de ser uma fonte segura de informação. E é isso que o diferencia do influencer que divulga informações perigosas.
Desde que o Conselho de Ética permitiu a telenutrição, nutricionistas que prometem atender 24 horas e não conseguem cumprir estão deixando os clientes insatisfeiros. Por isso, alertamos as pessoas a escolherem uma fonte confiável de informação, que não leve para os clientes pseudociência.
Além disso, é importante lembrar que o resultado é individual. O nutricionista tem de ser muito sincero ao informar que a saúde vem em primeiro lugar. Que o importante é melhorar os padões bioquímicos, é ter uma alimentação adequada. E ensinar o paciente a ler os rótulos, a entender as informações nutricionais, para não depender de quem indica marcas. É preciso dar autonomia ao paciente. O profissional reconhecido não é aquele que diz “pode ligar pra mim qualquer horário, porque se você tiver uma dúvida do que comer, eu te explico”. O bom profissional é aquele que, através da educação nutricional, orienta o indivíduo a fazer escolhas alimentares sem medo e a entender que, se hoje ele comeu um brigadeiro, não tem problema, que o problema é comer brigadeiro descontroladamente. É preciso dar segurança para o paciente, não estabelecer o caos na vida alimentar dele, deixando-o inseguro e dependente das suas informações.
Quais são as regras de ouro para quem quer se alimentar de forma saudável?
SB: A primeira é buscar informações em fontes seguras. Por exemplo, no Guia Alimentar para a População Brasileira [elaborado pelo Ministério da Saúde], e com quem entende de alimentação e nutrição: os nutricionistas.
É preciso se conhecer e saber quem pode te ajudar e te dar informações seguras. A partir daí traçar um plano de acordo com as suas reais necessidades. Se você é uma pessoa saudável, não tem diabetes nem pressão alta, então é o Guia Alimentar. É preciso basear a alimentação em frutas e verduras. Quanto menos industrializado e mais próximo do natural, melhor. Comer com mais frequência e em menor quantidade.
É preciso fazer exames periódicos. E lembrar que a rede pública tem nutricionistas. Exerça seu direito de cidadão e exija uma consulta. Conhecer o seu estado de saúde é fundamental para ter uma alimentação saudável. O que falam na Internet, que é pra todo mundo, não é pra ninguém, porque ninguém é igual ao outro. E isso não é coisa de elite. Todo mundo pode e merece ter um atendimento nutricional adequado.