Planos de Saúde: problemas do início ao fim
Difícil relação com operadoras de planos de saúde faz com que o Poder Judiciário continue sendo uma instituição importante para a resolução de conflitos entre operadoras e consumidores.
A relação das pessoas consumidoras com as operadoras de planos de saúde tem sido bastante complicada nos últimos tempos. E os números provam: de janeiro a abril deste ano, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) recebeu 6 mil reclamações por conta de cancelamento unilateral de contrato. E as queixas não param por aí. Um outro levantamento da ANS apontou um aumento de 170% nas reclamações contra descredenciamento de rede (hospitais, médicos etc.), entre 2020 e 2023. Só até abril de 2024, foram 971. Sem contar as queixas contra negativas de atendimento ou demora para liberação de procedimentos, que também são muitas.
A biomédica Any Marcelle Malinovski, de Rio Negro (PR), recorreu à ANS algumas vezes, pois o relacionamento com o plano de saúde de sua mãe, que tem artrite reumatoide – uma doença crônica que afeta as articulações –, não tem sido fácil. Quando saiu o diagnóstico, há cerca de dois anos, a operadora dificultou a liberação do tratamento, que é caro. “Eles agiam de um jeito para forçar a gente a desistir. Aí eu procurei a ANS, porque não podia ficar esperando”, diz Malinovski. Ela conta que todas as vezes que entrou em contato com a agência reguladora, o resultado foi rápido e satisfatório, mas ela não acha certo ter de recorrer sempre a essa intermediação. “Você contrata um plano de saúde e parece que tem que pedir pelo amor de Deus para que eles façam a parte deles, que prestem o serviço contratado”, desabafa.
Situação parecida viveu a assistente social Edicione Carvalho de Souza, de Curitiba (PR). Em 2018, ela teve um tumor no pâncreas. No ano seguinte, passou por uma cirurgia para retirá-lo e teve de remover também o baço. Desde então, precisa de acompanhamento médico. Da segunda vez que solicitou um pet scan, exame que monitora se há indícios de atividade cancerígena no corpo, o plano demorou mais de dois meses para liberá-lo. “Quando você tem um diagnóstico de câncer, tudo é muito angustiante, o medo passa a fazer parte da nossa vida. E a demora nas liberações faz com que entremos em desespero. Então, tive de acionar a ANS. Em cerca de três dias, a operadora liberou o exame. E tem sido assim desde então”, ela relata.
A Lei de Planos de Saúde e a judicialização
O serviço prestado pelas operadoras de saúde tem uma legislação específica há mais de 25 anos. A lei no 9.656/1998, considerada um marco regulatório, estabelece garantias fundamentais para usuários de planos de saúde. A legislação abrange temas como internação, coberturas, urgência e emergência, carência, reembolso, reajuste, rescisões, entre outros.
Em 2022, a Lei de Planos de Saúde, como é chamada, foi atualizada pela Lei nº 14.454, que estabeleceu critérios para que as operadoras de planos de saúde cubram exames e tratamentos que não estão incluídos no rol de procedimentos da ANS. Contudo, muitas empresas buscam brechas para negar essas coberturas. “A alteração apenas consolidou um entendimento já firmado pelo próprio Poder Judiciário ao longo das duas décadas de vigência da Lei de Planos de Saúde: desde que o tratamento ou procedimento indicado seja seguro, tenha comprovação científica e não conste da lista de exclusões (tratamentos experimentais e estéticos, por exemplo), a cobertura deve ser assegurada à pessoa consumidora. O descumprimento da lei não comporta nenhuma justificativa.”, argumenta Paullelli. Por meio de nota enviada à Revista do Idec, a ANS disse que o processo de atualização do rol é contínuo, com recebimento de propostas e inclusão de tecnologias a qualquer momento.
Sobre o assunto, vale lembrar que pesquisa do Idec (https://idec.org.br/release/pesquisa-idecpuc-sp-mostra-que-nova-lei-do-r...), feita em parceria com o Núcleo de Direito, Tecnologia e Jurimetria da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), revelou que a aprovação da Lei nº 14.454/2022 não levou a um aumento do número de processos judiciais no Estado de São Paulo durante o seu primeiro ano de vigência. O estudo analisou mais de 40 mil processos distribuídos em 1ª instância no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) entre janeiro de 2019 e agosto de 2023. Os resultados demonstraram que em todo o ano seguinte à promulgação da Lei não houve variação significativa do padrão de judicialização observado em relação ao dos anos anteriores, não sendo possível identificar impactos relevantes da alteração legislativa sobre a judicialização.
Críticas à ANS
Desde a sua fundação, há 37 anos, o Idec é bastante ativo nas causas judiciais. Até aqui, foram 1.066 ações coletivas propostas pelo Instituto. Destas, 135 são referentes à área de saúde. E nos últimos tempos, os problemas que os consumidores têm enfrentado junto aos planos têm se destacado. Em janeiro, o Idec participou de uma consulta pública promovida pela ANS sobre melhorias no relacionamento entre operadoras e usuários. Entre as demandas, pediu regras mais claras e prazos definidos para atendimentos e liberação de procedimentos, além da criação de núcleos presenciais de atendimento. “O que o Idec entende e já compartilhou com a própria ANS, em diferentes oportunidades, é que ela tem de levar mais em consideração o CDC, aplicável aos contratos de plano de saúde, mas pouco observada pelas empresas e pela própria agência em sua regulamentação”, esclarece Paullelli.
O advogado Rafael Robba, do escritório Vilhena Silva Advogados, de São Paulo (SP), atua na área de Direito da Saúde desde 2007 e corrobora a análise da advogada do Idec. Segundo ele, os casos de recusa de cobertura sempre foram as grandes reclamações dos seus clientes. Depois, reajustes abusivos, e, este ano, as rescisões contratuais, em especial dos planos coletivos por adesão. “O grande problema é a falta de regulamentação. As questões relacionadas às rescisões unilaterais poderiam ter uma regulamentação, principalmente para proteger as pessoas mais vulneráveis, como idosos e pessoas em tratamento. Mas a gente não vê nenhuma disposição por parte da ANS de regulamentar essa questão, a fim de tentar impedir esse tipo de prática”, declara. E complementa: “Parece que é uma tentativa das operadoras de realmente eliminar grupos que estão dando prejuízo para eles”. A ANS afirmou, por meio de nota, que não há falta de regulamentação e ressaltou que trabalha de forma permanente no aprimoramento da regulação do setor de saúde suplementar, sendo a Resolução Normativa nº 585/2023 resultado desse trabalho.
Paulelli assegura que o Idec seguirá presente e atuante na defesa dos consumidores de planos de saúde. “Nosso foco principal é o avanço da regulamentação e fazer a ANS entender que há ações que precisam ser colocadas em prática para que o consumidor seja protegido”, ela destaca.
I Jornada de Direito da Saúde
Diante do cenário atual da saúde brasileira, o Conselho da Justiça Federal (CJF), o CNJ, e a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados promoveram, nos dias 13 e 14 de junho, a I Jornada de Direito da Saúde. O objetivo do evento, realizado em Brasília (DF), era analisar de forma crítica propostas relacionadas ao Direito da Saúde, a partir de uma série de debates, com orientações que podem auxiliar o trabalho do Judiciário. “Os enunciados não têm cunho obrigatório, mas exercem um papel doutrinário importante”, informa Paulelli, que representou o Idec na Jornada.
O Idec elaborou seis sugestões de enunciados relacionados a cancelamento unilateral de contratos, utilização de biometria facial para identificação dos usuários de planos de saúde e reembolso. Quatro desses enunciados foram discutidos, e um aprovado após votação em plenária: o que determina que é nula a cláusula contratual que admite a rescisão unilateral sem motivação idônea (que não tem uma justificativa justa, expressa e que faça sentido) de um plano de saúde coletivo empresarial com menos de 30 beneficiários. Para Paullelli, a participação na Jornada veio para reforçar a atuação que já é referência na defesa dos consumidores. “A legitimidade do Instituto é reconhecida pelas Cortes Superiores. Então, participar da Jornada como advogada do Idec se soma à tradição de levar à Justiça, com muito fundamento e estudo, a defesa dos direitos dos consumidores”, ela finaliza.