De onde vem essa carne?
Pesquisa do Idec constata que os brasileiros ainda têm pouco conhecimento sobre a cadeia de produção da carne, mas que levariam essa informação em consideração na hora da compra se ela estivesse disponível na embalagem.
Você consome carne? Se sim, o que leva em consideração na hora de comprá-la? Você gostaria de conhecer a origem da carne que coloca no seu prato? Essas são algumas das muitas perguntas da pesquisa de percepção do consumidor sobre a cadeia de produção e consumo de carne e produtos alimentícios plant-based, encomendada pelo Idec ao Instituto Locomotiva, que entrevistou mil pessoas das cinco regiões brasileiras (veja mais detalhes da metodologia no quadro “Como foi feita a pesquisa”).
Dentre os principais resultados, destaca-se o interesse do consumidor em saber o que come: nove em cada dez pessoas afirmaram que as informações disponíveis na embalagem são levadas em conta na hora da compra, e entre os que costumam comprar carne, 86% procuram informações sobre a sua origem. No entanto, apesar do interesse dos brasileiros por essa informação, na hora da compra, o que importa mais são as condições de higiene do produto (34%) e do local de venda (20%). O terceiro ponto mais citado como fundamental para a escolha da carne foi o preço (16%). Por outro lado, apenas 4% dos participantes mencionaram o tratamento dado aos animais, e 2%, o impacto da agricultura e da produção de carne nas mudanças climáticas.
Carne rastreada
Embora as pessoas que responderam ao questionário da pesquisa tenham demonstrado interesse em conhecer a origem da carne que comem, a nutricionista Laís Amaral, coordenadora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, acredita que ele não esteja atrelado às questões de sustentabilidade do produto, por exemplo, se o gado foi ou não criado em áreas desmatadas. “Precisamos informar aos brasileiros a importância de conhecermos toda a cadeia de produção da carne, do nascimento do animal até o local de venda, para que assim possam exigir e escolher um produto mais sustentável”, ela diz.
Como foi feita a pesquisa
Encomendamos esta pesquisa ao Instituto Locomotiva, que entrevistou, por meio de um questionário online, mil pessoas nas cinco regiões do Brasil. Todas tinham 18 anos ou mais (40% estavam na faixa etária de 30 a 49 anos) e, embora tenham sido contempladas todas as classes econômicas, 58% pertenciam à classe C. Quanto à escolaridade, a maioria dos entrevistados (49%) completou o Ensino Médio. Os dados foram coletados em agosto de 2023.
Laís Amaral, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec
O primeiro passo para que o consumidor receba informações sobre a origem da carne é rastrear o gado. De acordo com Lisandro Inakake de Souza, gerente de projetos do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e coordenador do programa Boi na Linha, o rastreamento tem um enorme valor na gestão do rebanho e das propriedades pecuaristas, numa perspectiva de melhorar a eficiência do sistema produtivo e, consequentemente, a produtividade e a renda. “Um segundo aspecto, também importante, diz respeito à rastreabilidade ao longo da cadeia, que torna possível agregar dados sobre as condições produtivas do ciclo de vida dos animais, sejam sanitárias, de bem-estar ou de atributos da propriedade rural. Por fim, a rastreabilidade pode atuar como um instrumento de segregação da pecuária em propriedades privadas das atividades degradantes e ilícitas, principalmente em áreas públicas protegidas”, ele complementa.
Mas o fato é que hoje, no Brasil, não existe uma política ou um sistema nacional obrigatório de transparência e rastreabilidade da cadeia produtiva da carne. “Os resultados da pesquisa foram fundamentais para entender as diferentes percepções dos consumidores em relação ao tema, além de nos dar insumos para mostrar ao Governo Federal a importância de avançar com o sistema nacional, num processo transparente, que conte com a participação da sociedade civil e da academia”, conta Amaral. Segundo Souza, os principais desafios para a elaboração desse sistema são de ordem técnica-estrutural, como a disponibilidade de recursos e a capacidade para escalar e universalizar a rastreabilidade. “Tem ainda a questão cultural, as motivações para que os produtores e demais atores ao longo da cadeia decidam aderir à rastreabilidade como estratégia de promover as melhores práticas produtivas. Por fim, o desafio também é de ordem política, seja na regulamentação de políticas públicas que ordenem e promovam a rastreabilidade ou na regularização das propriedades no que se refere a aspectos ambientais e fundiários”, ele pontua.
A produção da carne e as mudanças climáticas
Os dados mais surpreendentes da pesquisa foram aqueles relacionados ao pouco conhecimento dos entrevistados sobre os impactos ambientais associados ao consumo de produtos de origem animal, como carnes, ovos, leite e seus derivados. Apesar de 80% preferirem alimentos de marcas que apoiam causas socioambientais e com práticas de produção mais sustentáveis, os impactos ambientais têm sido desconsiderados. Por exemplo, apenas 2% apontaram a criação de gado e o processamento de carnes e laticínios como um dos principais agentes que impactam negativamente as mudanças climáticas. “O estudo evidenciou que, para a maioria das pessoas consumidoras, não é nítida a relação direta entre a produção e o consumo de carne e a crise climática”, diz Julia Catão, especialista do programa de Consumo Sustentável do Idec. Segundo monitoramento do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), atividades como o cultivo de bovinos; o tratamento, o armazenamento e a disposição dos dejetos animais gerados pela produção agropecuária; o uso de agrotóxicos sintéticos nitrogenados e a queima de combustíveis na agropecuária são responsáveis por 73,7% dos gases de efeito estufa (GEEs) emitidos no país.
A nutricionista Fernanda Marrocos, pesquisadora de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) e da Cátedra Josué de Castro, ambos da Universidade de São Paulo (USP), também se espantou com a baixa quantidade de pessoas que reconhecem a criação de gado como uma das atividades que mais impactam o meio ambiente. “É gigantesca a literatura científica que demonstra os impactos socioambientais da criação de gado, incluindo o desmatamento e a emissão de GEEs relacionados às mudanças climáticas, mas essas informações não chegam aos consumidores de forma consistente e a partir de plataformas isentas de conflitos de interesse”, ela critica, e informa: “Apesar de a destruição florestal não ser organicamente inerente à criação bovina, a emissão de GEEs, em especial do metano, está diretamente atrelada ao gado e a outros animais ruminantes. Se o rebanho global de ruminantes fosse um país, seria o segundo maior emissor mundial, ficando atrás somente da China. Além disso, um quarto da superfície planetária, excluídas as áreas geladas, voltam-se a pastagens, e 40% de todos os plantios são destinados à alimentação animal, segundo dados da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] de 2019. Ou seja, o rebanho bovino é um dos principais vetores de destruição ambiental e perda da biodiversidade”.
A pesquisa mostrou que é urgente conscientizar as pessoas sobre a conexão entre a origem da carne e as mudanças climáticas. “O tema ‘sistemas alimentares’ é muito complexo, então é um desafio explicá-lo à população de forma clara e acessível, mas é extremamente importante que as pessoas entendam essa relação”, opina Amaral. Marrocos concorda: “As populações já estão sentindo os impactos das mudanças climáticas em seu dia a dia, como chuvas e ventos fortes, alagamentos, perdas de produção de alimentos por conta das secas e das chuvas volumosas, aumento das temperaturas etc. É preciso sair desse estado de inércia para um estado de ação, com estratégias planejadas a fim de avançarmos de maneira eficaz em curto e médio prazos. Não dá mais para esperar!”. E complementa: “Da mesma forma que precisamos exigir que os sistemas alimentares sofram uma grande transição, para que deixem de ser um dos principais vetores de destruição ambiental e de perda da biodiversidade, por meio de políticas públicas em todas as esferas governamentais, precisamos investir em campanhas de comunicação que alertem os consumidores sobre os impactos de suas escolhas alimentares no meio ambiente. Claro, levando em conta as injustiças sociais e as desigualdades de acesso”.
Plant-based – parece saudável, mas não é
A pesquisa também continha algumas perguntas sobre os produtos alimentícios ultraprocessados chamados de plant-based, que são feitos à base de plantas e vendidos como substitutos da carne. Trinta e cinco por cento dos entrevistados afirmaram consumi-los. Mas o resultado que mais chamou a atenção e acendeu a luz de alerta do Idec foi que 51% consideram esses produtos mais saudáveis do que a carne, sendo que 30% os consideram muito mais saudáveis. “Essa é a nossa preocupação com os plant-based. Eles são vendidos como mais saudáveis e mais sustentáveis, mas, na verdade, a grande maioria é ultraprocessado, ou seja, contém aditivos alimentares, como corantes, aromatizantes e emulsificantes, além de excesso de sódio, açúcares e/ou gorduras. E o Guia Alimentar para a População Brasileira recomenda evitar o consumo desse tipo de produto”, declara Amaral.
Para Marrocos, mais da metade dos entrevistados verem os plant-based como mais saudáveis do que a carne não a surpreende, pois essa informação está chegando aos consumidores por meio de estratégias de publicidade eficazes e em larga escala nas gôndolas dos supermercados, nos rótulos dos produtos e em comerciais na televisão. “A JBS e outras grandes empresas produtoras de carne – recentemente chamadas de Big Protein –, são, hoje, os principais investidores no mercado de proteínas alternativas”, ela destaca.
Embora o consumo frequente dos plant-based ainda seja pequeno (1% dos entrevistados já os experimentou), a oferta desses produtos vem crescendo. Por isso, o Idec defende a sua regulação. “Não basta apenas dizer que eles são feitos à base de plantas, é preciso fornecer ao consumidor informações adequadas, para que ele possa fazer escolhas mais conscientes, saudáveis e sustentáveis. Além disso, os plant-based não podem ser vendidos como substitutos da carne, porque em termos de ingredientes e nutrientes eles não são iguais”, explica Amaral. Marrocos concorda sobre a urgência de uma regulamentação e acrescenta: “As normas e orientações sobre alimentos plant-based estão desatualizadas, impactando o estabelecimento de critérios para a produção, a rotulagem e a venda”. Para ela, dentre os desafios para a regulamentação desses produtos estão a insuficiência de diretrizes internacionais harmonizadas; a ausência de diretrizes que tratem desses alimentos no âmbito do Codex Alimentarius; o lobby da indústria e dos investidores do setor das proteínas alternativas e a crescente financeirização dos sistemas alimentares com inclusão de novos atores, como big techs, bancos, gestores ativos e investidores institucionais.
“A pesquisa deixou claro que é urgente que o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ajam para concretizar a regulação dos plant-based, que engana em vez de resolver o problema do consumo excessivo de carne”, finaliza Amaral, do Idec.
Saiba mais
- Aplicativo Do pasto ao prato, (https://www.dopastoaoprato.com.br/) que identifica a origem das carnes bovinas vendidas no Brasil.
- Veja mais detalhes da pesquisa em https://idec.org.br/veneno-no-pacote