Alimentação saudável e sustentável
Diante do cenário mundial atual, com crise climática, insegurança alimentar e pandemia de obesidade e desnutrição, é urgente repensar as políticas públicas que favoreceram esse contexto, como a política tributária, capaz de incentivar ou desincentivar a produção e o consumo de bens e serviços, com consequências negativas ou positivas para a saúde e o meio ambiente.
Para contribuir com esse debate, o Idec, a ACT Promoção da Saúde e outras organizações realizaram o estudo “O custo da soja para o Brasil: renúncias fiscais, subsídios e isenções da cadeia produtiva”, no qual mapearam os incentivos fiscais que contribuíram decisivamente para a estruturação e o crescimento da emblemática cadeia da soja.
Conversamos, por telefone, com o autor do estudo, o economista Arnoldo de Campos, que comentou os principais resultados e opinou sobre os caminhos que o Brasil deveria tomar para se tornar um país mais saudável, sustentável e solidário.
ARNOLDO DE CAMPOS é economista graduado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi Secretário Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), de 2013 a 2016; integrou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), de 2003 a 2016; e a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), de 2006 a 2016. Atualmente, é diretor executivo da AGMAAC Assessoria e Consultoria e colaborador de agências internacionais, como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Banco Mundial e o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA).
O que despertou a sua curiosidade para estudar a cadeia da soja?
Arnoldo de Campos: Eu vinha trabalhando junto ao Idec e à ACT Promoção da Saúde na reforma tributária, analisando a tributação dos alimentos. A gente tinha feito um estudo comparando os orgânicos com os convencionais, os alimentos in natura e minimamente processados com os ultraprocessados. E naquela época, a Comissão que estava debatendo isso na Câmara divulgou que alguns grupos de produtos teriam alíquotas diferenciadas, mas alimentos não estavam incluídos. Aquilo me irritou muito. Pensei: “Temos de contribuir com o debate e esclarecer como a política tributária favorece os produtos agroexportadores”. E o produto que tem o maior dinamismo no agro brasileiro é a soja. Eu queria entender melhor como essa cadeia conseguiu tantos benefícios e como se dava a sua tributação, mostrando que a política tributária reforça as desigualdades. Eu propus essa ideia para o Idec, a ACT e outras instituições.
O que você queria provar com esse estudo?
AC: Que a política tributária serve para estimular ou desestimular. Não é só uma política de arrecadação. Em alguns momentos, queriam vender a ideia de que não deveria haver incentivo para ninguém, deveria ser igual para todo mundo. Isso não existe em nenhum lugar do mundo. A política tributária manda sinais para a economia: o que eu quero que consuma, o que eu quero que plante, produza, processe e o que eu não quero. Então, se você quer estimular o alimento mais saudável, a política tributária deve estar a seu favor. Ela não vai resolver sozinha todos os problemas, mas é uma ferramenta usada para favorecer o que a sociedade deseja.
E também queríamos mostrar que a política tributária tem lado, ou seja, ela define quem ela quer beneficiar; e que desde os anos 1960, a política tributária brasileira, junto a outras ferramentas, tem ajudado o modelo agroalimentar brasileiro a se viabilizar. E fizemos isso por meio da cultura mais emblemática: a soja.
Quais dados mais chamaram a atenção?
AC: A dimensão da renúncia fiscal federal, que no estudo foi estimada em R$ 56 bilhões ao ano, bem superior à renúncia fiscal de toda a cesta básica (cerca de R$ 30 milhões). Esse é um número bem emblemático. No Mato Grosso, o estado que estudamos, a soja é a cultura mais competitiva, mais moderna em termos tecnológicos, e ainda recebe benefícios fiscais, que não sei se são necessários em uma cadeia tão madura. Já são quatro décadas de benefícios. Imagina quanto o Estado deixa de arrecadar para sustentar essa cadeia. Ao mesmo tempo, temos a Floresta Amazônica, cujos produtos não têm incentivo.
E o outro dado que chamou a atenção foi que além da isenção, existem créditos tributários. Isso significa que, mesmo sem pagar em algumas situações, as empresas ainda recebem créditos que podem ser usados para reduzir outros impostos.
Quais são as políticas em vigor para o incentivo à produção de alimentos no Brasil? A reforma tributária dialoga, de alguma forma, com elas?
AC: É complexo porque quando falamos em alimentos, entra tudo o que as pessoas consomem: salgadinhos, bebidas, frutas, verduras etc. Então, existem políticas para alimentos, inclusive tributária, mas não são as mesmas para todos os produtos. Quando se trata de política tributária, o Brasil é um país de contradições. As cadeias agroexportadoras, por exemplo, se beneficiam bastante da política tributária, do crédito rural, de subsídios para a exportação. Mas também há uma política para a cesta básica, desorganizada, não muito bem definida. Tem problemas, mas no nível federal, os itens que compõem a cesta básica pagam zero [impostos]. Os hortifrutis também são isentos. Existe uma política tributária que é importante para os alimentos básicos e saudáveis, e a reforma tributária, nas discussões iniciais, estava propondo eliminar esses benefícios.
Por outro lado, não existe política agrícola para o produtor de itens da cesta básica, tanto que a área plantada de feijão, arroz, verduras e frutas está diminuindo, enquanto a área da soja passou de 11 milhões de hectares nos anos 1990 para 44 milhões em 2023. A política agrícola brasileira está superdesatualizada, não ajuda nem a combater a inflação. Enquanto isso, são quase R$ 57 bilhões em benefícios fiscais para a soja só no âmbito federal. Um pouquinho desse dinheiro ajudaria muito a resolver o problema da inflação de alimentos, se tivéssemos uma política para proteger e estimular o produtor de comida, que não acessa o crédito. A soja leva 52% do crédito de custeio no país, e o feijão não chega nem a 11%. E são cerca de 200 mil produtores de soja contra quase 1 milhão de produtores de feijão. Para os produtos regionais, como a mandioca, e os das florestas, como castanhas e açaí, é menos ainda.
Quais as consequências do investimento de décadas na soja para o meio ambiente e a nossa saúde?
AC: O Brasil tornou-se o maior exportador mundial de soja, e a expansão da área avançou sobre as florestas. Houve uma expansão de mais de 30 milhões de hectares em 30 anos. Isso tem relação direta com o meio ambiente. E 80% das emissões [de gases do efeito estufa] no Brasil decorrem do desmatamento, das mudanças no uso da terra e da agropecuária. Isso junto significa 80% das emissões. E não há outra cultura que tenha mudado tanto o uso da terra e avançado sobre mais áreas no Brasil do que a soja.
Além disso, é difícil encontrar um produto ultraprocessado que não contenha soja. A indústria da soja tem relação com a de ultraprocessados. A soja tem seus benefícios, mas o custo também é muito alto. O Brasil está virando uma grande monocultura de soja, como foi a cana [de açúcar] lá atrás. Depender de uma única cultura é muito ruim para um país com diversidade alimentar, que poderia estar muito mais saudável se compartilhasse os investimentos em tecnologia e infraestrutura com mais culturas.
E quais os impactos dessa escolha nas políticas de abastecimento do país? Como as decisões tomadas impactam o acesso dos brasileiros ao arroz e feijão?
AC: A soja está na ponta de um iceberg, de um problema que é maior, que não se resume à cadeia da soja. Ela é ilustrativa. O Brasil é uma potência alimentar (em praticamente todos os municípios há produtores de alimentos), mas não conseguimos matar a fome da população. Isso é uma falha estrutural grave. E também, temos insegurança alimentar por conta do preço dos alimentos. Quando os preços sobem, as pessoas precisam restringir sua dieta para fazer caber no orçamento. Elas vão precarizando a alimentação, e vemos a população adoecer. A principal causa de morte entre adultos no Brasil são as doenças crônicas não transmissíveis. Uma pessoa que tem diabetes, por exemplo, pode passar décadas gastando com medicamentos, tratamentos e exames, fora os dias de trabalho perdi- dos. O custo desse modelo para a sociedade é altíssimo.
A soja consegue explicar essa contradição do sistema alimentar brasileiro, que não consegue ajudar um produtor de pirarucu na Amazônia, mas consegue colocar a soja em praticamente todos os países do mundo com o apoio de políticas públicas.
O agronegócio sobreviveria sem o apoio do Governo?
AC: Na minha opinião não. Hoje, ele perderia muita competitividade, seria uma chiadeira gigantesca. É preciso transitar para um modelo onde as culturas não precisem ser extintas, mas que sejam criados mecanismos para que os demais segmentos possam se beneficiar também. Nos setores que passaram um bom tempo recebendo apoio e agora já caminham com as próprias pernas, o suporte poderia ser reduzido para que as ferramentas do Estado fossem direcionadas a outras modalidades. Os alimentos orgânicos e agroecológicos, por exemplo, não têm nenhuma vantagem em termos tributários ou nas políticas agrícolas e de abastecimen- to alimentar.
O modelo agroalimentar brasileiro é resultado da organização e do planejamento do Estado. Este, junto com a iniciativa privada, planejou um determinado modelo, definiu os resultados que queria alcançar e alcançou. Isso mostra que ele tem condições de planejar. No caso específico da política tributária, o Estado tem de atualizar seu planejamento e adequar as suas ferramentas para poder enfrentar os desafios atuais, senão a crise climática não vai ser enfrentada, a gente não vai aumentar a nossa resiliência, e a inflação de alimentos vai voltar. Neste momento, ela deu uma trégua, mas ela é cíclica e vai voltar com tudo ali na frente. É previsível, porque não está sendo feita nenhuma mudança importante para evitar que isso aconteça.
A política tributária deu um passo importante. Pela primeira vez os agrotóxicos vão pagar mais impostos, grandes produtores também e, se conseguirmos avançar, produtos ultraprocessados podem vir a pagar. Mas a luta continua. A gente só está colocando os parâmetros na lei, que sinaliza o que ela quer, mas é a regulamentação que vai efetivar ou não o que está posto. Não tem nada ganho, mas foram dados passos importantes com a reforma tributária.
É possível mudar o cenário atual? Como?
AC: No que diz respeito à tributação, a reforma tributária é um caminho. Mas outros movimentos estão acontecendo simultaneamente, como a discussão sobre uma nova política para a cesta básica, sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis etc. Mas a efetivação ainda não está dada. Tem de avançar.
A reforma tributária isoladamente não tem tração suficiente para promover a transformação necessária. Ela é apenas uma das ferramentas de uma estratégia de desenvolvimento que precisa ter outros componentes.
O que você enxerga como novos caminhos para as políticas públicas de produção de alimentos no Brasil? E como isso pode dialogar com o desenvolvimento sustentável?
AC: Por exemplo, o sistema alimentar é um grande consumidor de energia. Como se promove uma transformação na base energética do sistema agroalimentar, desde a base produtiva até o consumidor? Ele é o maior consumidor de água, disparado. Como se gerencia isso e trabalha soluções? Ele também é um grande consumidor de combustíveis fósseis. Hoje, o caminho dos alimentos é absurdo. Temos circuitos longos, com pouco estímulo aos circuitos curtos. Como projetar o sistema alimentar em torno das cidades favorecendo a produção de alimentos em circuitos curtos? Como é que se cria soluções nas políticas agrícolas, toda a parte de assistência técnica, de desenvolvimento tecnológico e inovação? São soluções diferentes para cada cadeia. No caso da soja, era caro levá-la do Centro-Oeste para Paranaguá (PR), então se cortou a Amazônia com a BR 163. No Maranhão e em Santarém (PA), criou-se uma estrutura para levar a soja para a Europa.
Um movimento de mudança está em curso. Aonde vai dar, eu não sei. Mas há a cobrança e a sinalização de vontade política para tentar trilhar os compromissos nas áreas ambiental, social, de saúde. Mas ainda não há elementos que permitam dizer “vai acontecer”. É uma disputa diária por políticas públicas, por recursos, pelo orçamento público.
Qual foi a conclusão à qual o estudo chegou?
AC: Tem duas conclusões. Uma é que o modelo pensado lá nos anos 1960 foi efetivo. Podemos discutir todas as consequências negativas, mas na época eles não estavam preocupados com isso. Projetaram seus resultados e alcançaram.
A outra conclusão é que o modelo está desatualizado. A estrutura de políticas públicas que temos hoje foi instituída depois do golpe militar. A estrutura tributária, mais precisamente, é de 1965. Houveram algumas mudanças na Constituição, movimentos aqui e acolá, mas em termos conceituais e estruturais é praticamente a mesma coisa. Esse modelo teve seus méritos, mas não responde mais aos grandes desafios da humanidade, como a crise climática, a segurança alimentar etc. Por isso, essas ferramentas precisam ser atualizadas. Mais do mesmo não vai produzir resultados diferentes. Então, a conclusão do estudo é: ferramentas são importantes, elas produzem resultado, mas as que a gente construiu não estão adequadas para os desafios atuais.