Sem motivos para celebrar
Há dois anos, em 1 de julho de 2021, a Lei nº 14.181, mais conhecida como Lei do Superendividamento, entrou em vigor no Brasil. Criada para disciplinar a concessão de crédito ao consumidor e estabelecer regras para a prevenção e o tratamento do superendividamento, a lei ainda está distante de atingir esse objetivo. Segundo a Confederação Nacional de Comércios, Bens, Serviços e Turismo (CNC), 78,3% das famílias brasileiras estão endividadas.
Por que essa Lei tão importante e necessária não está sendo eficaz? Quais os desafios? O que falta para ela de fato ajudar milhões de brasileiros endividados? Fizemos essas e outras perguntas a dois especialistas no assunto: Ione Amorim, economista do Idec, e Luiz Fernando Baby Miranda, coordenador da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Confira a seguir.
IONE AMORIM é economista formada pelas Faculdades Oswaldo Cruz, com especialização em Gestão da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Desde 2008 integra a equipe do Idec. Hoje, é coordenadora do Programa de Serviços Financeiros.
LUIZ FERNANDO BABY MIRANDA é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Hoje, é Defensor Público do Estado de São Paulo e coordenador-auxiliar do Núcleo Especializado de Defesa do Consumidor (Nudecon-SP).
A Lei do Superendividamento entrou em vigor em 2021. O que realmente mudou na vida dos consumidores brasileiros desde então?
Ione Amorim (Idec): Infelizmente, o endividamento das famílias piorou muito nos últimos dois anos. A situação econômica do país se agravou com a pandemia e suas consequências. A Lei nº 14.871/2021 entrou em vigor, mas faltou vontade política para a sua regulamentação, o que retardou a contenção do avanço do superendividamento.
Quais os principais pontos da lei que ainda não foram regulamentados? E como essa falta de regulamentação afeta a aplicabilidade da Lei?
Luiz Fernando Baby Miranda (Defensoria Pública do Estado de São Paulo): Entendo que o grande problema não está na falta de regulamentação da lei, mas na regulamentação equivocada que foi feita. O Decreto nº 11.150/2022, sob o pretexto de regulamentar a lei, trouxe disposições que impediriam qualquer atuação para impedir a concessão do crédito irresponsável e tratamento da pessoa em situação de superendividamento. Também houve a fixação de um valor irreal para o mínimo existencial. O Decreto impediu, ainda, o tratamento de dívidas que, pelo texto da lei, deveriam ser tratadas.
É evidente que esse Decreto foi editado para impedir ou dificultar a aplicação da lei. O Direito precisa ser valorizado, evitando-se disposições absurdas e impossíveis de se aplicar na prática. O valor do mínimo existencial foi fixado sem qualquer estudo sobre a quantia que uma pessoa poderia comprometer de sua renda para tomar algum crédito. Não há como defender que seria possível ter uma vida digna com R$ 300,00 por mês, ou mesmo com os atuais R$ 600,00.
Embora tenham se passados dois anos, o número de inadimplentes continua subindo (quase 79% das famílias brasileiras estão endividadas). Ao que isso se deve?
IA (Idec): Ao cenário econômico desfavorável, com redução da renda, desemprego e doenças nas famílias, além de maior procura por crédito e taxas de juros elevados.
Quais são as principais causas do superendividamento?
LFBM (DPESP): O superendividamento possui inúmeras causas e é importante saber que não há uma política pública que possa tratar todas elas de forma única ou simples. Há superendividamento decorrente de oferta de crédito irresponsável, principalmente do crédito consignado. É absolutamente irrealista imaginar que uma pessoa que recebe um benefício previdenciário de um salário mínimo consiga viver de forma digna com apenas 55% desse valor por sete anos. O crédito consignado é uma porta de entrada para um endividamento descontrolado. Há, ainda, superendividamento em razão de imprevistos da vida, como doenças, desemprego etc. Cada uma dessas causas demanda um tipo de política pública.
Como você avalia a aplicação da Lei do Superendividamento ao longo desses dois anos?
IA (Idec): O ponto alto é a possibilidade de tratamento coletivo das dívidas, estruturada em um plano de pagamento com base na capacidade de cada indivíduo. Já os pontos baixos são a demora para a regulamentação da lei, a necessidade de capacitação das entidades de defesa do consumidor e demais organizações qualificadas para acolher os consumidores com histórico de endividamento, e a falta de definição de processos para o acolhimento e treinamento de profissionais que promovam a aplicação da Lei.
Assim, o principal desafio é a imediata regulamentação dos critérios operacionais para atender às famílias. Os Procons, as Defensorias e o Tribunal da Justiça precisam se ajustar para garantir que os cálculos sejam realizados conforme a Lei e os credores apresentem propostas e descontos para viabilizar os acordos. Depois, é preciso fazer o monitoramento desses acordos para assegurar o seu cumprimento e identificar possíveis distorções da lei.
E em que momento estamos agora?
IA (Idec): Não há liderança e falta vontade política para avançar na implementação da lei. Muitas entidades espalhadas pelo país estão buscando soluções locais, mas a criação de mecanismos alternativos, como bancos realizando acordos sem regras e fiscalização; mutirões com base em acordos sem análises e a definição de um mínimo existencial incompatível com a realidade das famílias esvaziam a lei e dificultam a sua aplicação. Com essa lentidão, o sistema bancário avança abrindo canais de renegociação com regras próprias e pouco favoráveis aos consumidores.
O que precisa ser feito para que a Lei do Superendividamento alcance a plenitude e se torne realmente efetiva? E quais os maiores desafios para que isso aconteça?
LFBM (DPESP): A lei tem duas frentes. A primeira é a prevenção do superendividamento. Uma forma de prevenir é garantindo a oferta responsável do crédito. Essa responsabilidade é de quem concede o crédito, que deve, por exemplo, analisar a real capacidade de o consumidor adquirir um empréstimo. E essa análise tem que levar em consideração a preservação do mínimo existencial. Contudo, é importante que haja fiscalização das práticas de concessão de crédito e sanções que desestimulem essa prática.
A segunda frente é o tratamento. Sob esse aspecto, há o desafio de tornar a lei conhecida entre os operadores do direito, que precisam de capacitação para entender o fenômeno do superendividamento em toda a sua complexidade.
Finalmente, o programa Desenrola Brasil – que vai possibilitar a renegociação de dívidas, beneficiando até 70 milhões de pessoas que ganham até 2 salários mínimos –, foi lançado. Como esse programa impactará o trabalho da Defensoria?
LFBM (DPESP): O programa Desenrola não visa tratar as pessoas superendividadas. É importante que na estruturação do programa haja mecanismos que impeçam a inclusão de dívidas prescritas nas renegociações. Hoje, uma vez prescrita a dívida, não há o dever jurídico de pagá-la. Então, destinar recursos essenciais para a sobrevivência dos cidadãos para pagamento de dívidas prescritas seria um contrassenso e absolutamente deletério para a população.
Como o Idec avalia a criação do Desenrola e como esse programa dialoga com a Lei do Superendividamento?
IA (Idec): Para o Idec, o momento econômico requer uma medida mais urgente para acolher as famílias com renda de até dois salários mínimos. O Desenrola deveria estar integrado à Lei do Superendividamento, mas da forma como o projeto foi concebido, com a previsão de renegociação de dívidas de até R$ 5 mil em atraso até dezembro de 2022 para a Faixa 1 [pessoas físicas com renda mensal de até dois salários mínimos ou inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal], outros tipos de dívida não são contemplados, o que pode piorar a situação de endividamento das famílias e aumentar a demanda por crédito.
O que o Idec vem fazendo em prol dos superendividados e para que a Lei do Superendividamento seja mais conhecida e aplicada?
IA (Idec): O Idec está desenvolvendo um programa de capacitação de entidades do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), para que o processo de acolhimento dos superendividados seja iniciado. Também está elaborando propostas que serão discutidas com credores e, posteriormente, com o Poder Judiciário; e trabalhando para a criação de um sistema que irá reunir os dados dos consumidores e que poderá contribuir, através da gestão de dados e da inteligência artificial, para monitorar as dívidas.
Que tipos de casos relacionados ao endividamento a Defensoria recebe?
LFBM (DPESP): As pessoas querem pagar as dívidas que contraem, mas muitas desconhecem seus direitos, sentindo-se obrigadas a pagar mesmo quando são vítimas de práticas abusivas e de fornecimento de crédito irresponsável. Então, quando procuram a Defensoria Pública, essas pessoas já estão no limite do endividamento. Já tentaram renegociar as dívidas e comprometeram seus benefícios e salários com empréstimos consignados. As pessoas procuram a Defensoria Pública quando não possuem mais condições de pagar a dívida sem que haja risco de despejo, cortes de água e energia etc.
Quais as maiores dificuldades para encontrar uma solução para esses casos?
LFBM (DPESP): No caso de superendividamento, há absoluta resistência das instituições financeiras para negociarem os empréstimos consignados. Os descontos desse tipo de empréstimo consomem uma parte muito grande da renda de aposentados e pensionistas do INSS, deixando-os sem renda suficiente para as despesas mais básicas da família. Além disso, há descontos em conta, despesas com o uso do cartão de crédito e cheque especial. Isso quando o consumidor não recebe a proposta de renegociar as dívidas por uma taxa de juros menor, mas oferecendo a casa própria como garantia. É um absurdo que esse tipo de proposta seja feita, pois a pessoa continuará endividada e com risco real de perder a moradia.
Como os juízes estão decidindo? A Lei do Superendividamento impactou de alguma forma essas decisões? Se sim, como?
LFBM (DPESP): A Lei do Superendividamento ainda não foi apropriada de forma adequada pelos operadores do Direito. No Poder Judiciário, muitas decisões citam o Tema 1.085 do STJ [Superior Tribunal de Justiça], que é um julgamento que não analisou o fornecimento de crédito responsável ou mesmo a necessidade de preservação do mínimo existencial. Essas ressalvas estão expressas no julgamento. Contudo, não é raro encontrar decisões do Poder Judiciário afirmando que não seria possível a limitação dos descontos em conta para o tratamento da pessoa superendividada.
Que dicas você daria para as pessoas evitarem o endividamento?
IA (Idec): Os consumidores que ainda não se encontram em situação de endividamento devem evitar fazer empréstimos; realizar um bom controle das finanças pessoais e familiares; buscar alternativas para pagar eventuais dívidas que não tenham sido previstas; fazer uma reserva de emergência, se possível; e procurar consumir de maneira sustentável, com planejamento prévio e evitando o desperdício.
Já as pessoas endividadas devem verificar se na região onde vivem existem entidades como Procons, Defensorias Públicas, Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadanias (Cejusc-TJ) ou núcleos universitários que estejam tratando do tema.
Para iniciar o processo de reestruturação das dívidas, é necessário um planejamento mínimo considerando as condições de gastos com a sobrevivência e a renda; um levantamento do estoque de dívidas; e uma avaliação da parcela da renda que poderá ser utilizada para um acordo com pagamento em até 60 meses. Também é preciso avaliar as taxas de juros da dívida; analisar se esta possui garantia real, como os financiamentos imobiliários, que não podem ser renegociados, de acordo com a lei; além de debater com a família a necessidade de manter o equilíbrio durante o processo de pagamento da dívida.