CANTINAS SAUDÁVEIS
Idec está lutando para que cantinas que vendam apenas alimentos bons para a saúde deixe de ser utopia e vire realidade em todo o Brasil
Muito provavelmente você se lembra do que mais gostava de comer na escola, de um lanche diferente que algum colega levava e de como era o local em que fazia as refeições. Essas são memórias que marcam e ajudam a direcionar nossos hábitos alimentares na vida adulta. Isso porque até a adolescência, passamos pelo menos um terço do dia na escola. Então, muitas vezes é nesse espaço que fazemos nossas primeiras escolhas alimentares sem a supervisão da família ou de um responsável.
Por ser um espaço de formação, a escola tem um importante papel na alimentação dos indivíduos. "As crianças e os adolescentes estão desenvolvendo as preferências por determinados sabores e a capacidade de autocontrole na hora de comer. Dessa forma, a falta de educação alimentar faz com elas selecionem produtos que podem ser prejudiciais a sua saúde em longo prazo", explica Giorgia Russo, nutricionista e consultora do Idec, completando: "A escola não tem apenas o papel de formar profissionais, mas de formar seres humanos integrais. Só que as pessoas têm dificuldade de entender isso. Tudo o que é ofertado, tudo a que a criança é exposta na escola vai influenciá-la".
Pesquisas têm mostrado que o ambiente escolar está contribuindo de forma sistemática para a adoção de hábitos alimentares considerados não saudáveis, e que a grande parte dos alimentos encontrados em cantinas e estabelecimentos ao redor da escola são ultraprocessados, produtos relacionados ao aumento de obesidade, colesterol, pressão alta, diabetes e outras doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs). Estimativas do Ministério da Saúde apontam que 3,1 milhões de crianças de até 10 anos e 4,1 milhões de adolescentes estão obesos, e dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que as DCNTs, até então consideradas "doenças de adultos", têm sido detectadas por pediatras com maior frequência.
A seguir, você vai conhecer um pouco mais do trabalho que o Idec vem realizando para promover a alimentação saudável nas escolas brasileiras.
PROMOÇÃO DE HÁBITOS SAUDÁVEIS
Ao pensar em ações de combate ao avanço da obesidade infantil, é importante que o Estado, a partir de leis, torne a escola um ambiente alimentar que propicie a saúde. Infelizmente, o Brasil não tem uma lei federal que proíba a venda de alimentos não saudáveis dentro da escola, embora haja vários projetos de lei tramitando no Congresso Nacional. O que existe é uma Portaria Interministerial que define diretrizes gerais para a promoção da alimentação saudável e adequada nas escolas, além do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), uma das políticas mais antigas e importantes da história do país, que oferece alimentação e educação alimentar e nutricional a todos os estudantes da rede pública de educação básica, atingindo mais de 40 milhões de crianças.
O PNAE impacta diretamente a qualidade da alimentação de crianças e adolescentes. Uma pesquisa realizada com mais de 100 mil estudantes, publicada na revista Nature em 2019, identificou que aqueles que frequentam escolas públicas, nas quais a alimentação é oferecida pelo programa, têm menos probabilidade de consumir regularmente produtos ultraprocessados salgados e refrigerantes. Entretanto, as ações do PNAE ficam restritas ao interior das escolas. A última edição da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), realizada com quase 160 mil estudantes brasileiros, mostrou que vendedores ambulantes e carrocinhas estão presentes no entorno de mais da metade das instituições de ensino públicas (54,8%), e em 39% das privadas.
No ano passado, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação [FNDE] publicou uma nota técnica se posicionando sobre o comércio de alimentos nas escolas e reconhecendo a necessidade de regulamentação.
Fora da esfera federal, há 65 leis vigentes sobre a venda de alimentos no ambiente escolar, sendo 39 estaduais e 26 municipais. Mas esse número precisa aumentar. De acordo com Raquel Canuto, do projeto de pesquisa Comercialização de Alimentos em Escolas Brasileiras (Caeb), que cria e avalia propostas que contribuem para hábitos alimentares mais saudáveis, verificou que em cidades onde não há regras definidas, a venda de ultraprocessados é maior. Um exemplo é o Recife (PE), onde 98% das escolas privadas vendem esse tipo de produto.
SEMPRE DÁ PARA MELHORAR
A pedido do Idec, o Grupo de Estudos, Pesquisas e Práticas em Ambiente Alimentar e Saúde (GEPPAAS), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), classificou as medidas regulatórias vigentes nos estados e municípios brasileiros até dezembro de 2021, levando em consideração os quatro pilares do PL Modelo sobre alimentação escolar saudável elaborado pelo Idec e parceiros (leia mais no quadro abaixo). Dos 43 conjuntos de medidas regulatórias avaliados (todas as leis de um município ou estado foram analisadas juntas e receberam a mesma nota), apenas seis (13,95%) ganharam a classificação máxima.
PILARES PARA UMA REGULAÇÃO EFETIVA
O Idec construiu, em parceria com ACT Promoção da Saúde, Instituto Desiderata, Fian Brasil e Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, um Projeto de Lei Modelo sobre alimentação escolar saudável, estruturado em quatro pilares.
O primeiro pilar é a educação alimentar nutricional. Para o Idec, uma legislação só é efetiva se está integrada ao currículo escolar e inserida no projeto político-pedagógico das escolas públicas e privadas. Dessa forma, todos são envolvidos na promoção de ambientes alimentares mais saudáveis. "É preciso fazer um trabalho de conscientização, para explicar aos cantineiros a importância da legislação e mostrar que ter uma cantina saudável é viável", diz Giorgia Russo, do Idec.
O segundo é a distribuição e comercialização de alimentos. A lei precisa garantir a venda de alimentos saudáveis e a restrição dos que são críticos à saúde, inclusive os doados à escola. "Muitas leis apenas proíbem os alimentos ultraprocessados, mas sabemos que isso não basta, é preciso que as crianças tenham acesso a alimentos saudáveis para que seus hábitos sejam efetivamente mudados", pontua a nutricionista do Idec.
O terceiro pilar é a comunicação mercadológica, já que a publicidade interfere negativamente nos hábitos alimentares do público infantil, incentivando o consumo em excesso de produtos ultraprocessados. Propagandas em cantinas, patrocínio de competições esportivas dentro e fora das escolas, exibição de marcas em materiais escolares e ações promocionais são algumas das práticas que devem ser proibidas.
O último é a fiscalização da implementação das leis. Este é um ponto um pouco mais delicado, afinal depende do orgão fiscalizador disponível em cada município e/ou estado apto a realizar essa atividade. Além disso, é sempre mais efetivo um trabalho de orientação e sensibilização com normas e regras claras do que uma ação punitiva. Sendo assim, para o Idec, cada local deve avaliar suas particularidades para definir quem será o responsável pela fiscalização. "É importante que haja uma comissão gestora da lei, composta de associações de pais, mestres e alunos que acompanhem e controlem o que está acontecendo na escola em relação à alimentação", opina Russo.
Dentre as leis bem avaliadas está a nº 15.216/2018 – regulamentada por meio de um Decreto em 2020 –, que proíbe a comercialização e publicidade de produtos ultraprocessados, como balas, refrigerantes e salgadinhos industrializados, nas cantinas de escolas públicas e privadas do Rio Grande do Sul. Segundo Ana Luiza Escarpo, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que participou da construção do Decreto, a nova regulamentação deixou claro quais alimentos e formas de publicidade estão proibidas nas escolas e em seus arredores, já que a legislação se estende aos ambulantes. Porém, Escarpo lembra que a lei foi aprovada nas vésperas da pandemia de Covid-19. Assim, quando as aulas voltaram a ser presenciais, a preocupação era com as medidas de segurança, o que impediu que houvesse uma maior sensibilização para o tema de educação alimentar nutricional. Além disso, a fiscalização ainda precisa ser melhor estruturada. "Muitas vigilâncias municipais ainda não receberam orientações sobre como fiscalizar essa implementação", conta a professora. A falta de fiscalização e de sensibilização da comunidade escolar também é notada por Ana Cláudia Petzold, nutricionista do Colégio Marista Rosário, em Porto Alegre (RS). "Muitas escolas não aderiram à lei. Ainda há muitas cantinas de colégios estaduais e municipais que vendem tudo quanto é produto", ela revela.
Petzold informa, ainda, que o Colégio Marista Rosário vem adequando o cardápio da cantina desde 2015. "Com a lei [nº 15.216/2018], houve uma ampliação de alimentos saudáveis e redução dos nocivos à saúde", ela conta. Segundo a nutricionista, apesar de os pais terem aceitado as mudanças, os lanches trazidos de casa ainda são um problema. "Como não podemos proibi-los de trazer certos alimentos, a gente orienta por meio de projetos de conscientização sobre alimentação saudável", ela comenta. Outra questão problemática é a compra de produtos não saudáveis por delivery, já que a lei não traz limitações para a entrega desses alimentos no ambiente escolar. "Os alunos pedem fast food pelo aplicativo e comem dentro da escola, e a gente não tem controle", lamenta.
PEQUENAS GRANDES VITÓRIAS
O Idec e seus parceiros enxergam todos os obstáculos mencionados nesta reportagem e têm atuado intensamente para mudar a realidade da alimentação escolar no país. "Existe uma crença muito limitante de que a cantina saudável é inviável economicamente, como se fosse uma grande utopia e um sonho do 'povo da saúde', mas isso não é verdade", argumenta Russo. Foi justamente à questão econômica que Luisa Arantes Vilela dedicou sua dissertação da pós-graduação em Nutrição e Saúde da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Vilela mostra que as cantinas escolares saudáveis apresentaram melhores resultados financeiros e econômicos do que as cantinas tradicionais.
Desde maio de 2022, o Idec, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), tem tentado fomentar projetos de lei sobre alimentação escolar que estão tramitando pelo Brasil afora. O Idec apresentou seu PL Modelo a prefeitos, vereadores e deputados, e já está colhendo bons frutos, pois alguns PLs inspirados na proposta do Idec e parceiros foram protocolados. Eles preveem a oferta de alimentos saudáveis, in natura; restrição da comercialização e da publicidade de alimentos ultraprocessados e a promoção da educação alimentar e nutricional. "Na Bahia, temos o PL nº 24.678/2022; em Belém (PA), o PL nº 2.045/2022; no Tocantins, o PL nº 57/2023; e em Recife, o PL nº 172/2022", informa Renato Barreto, coordenador de Advocacy do Idec. Ele lembra, ainda, que o pequeno município Vila Nova, no interior do Piauí, foi o primeiro a publicar uma lei sobre alimentação adequada e saudável no ambiente escolar baseada no modelo do Idec. Que seja a primeira de muitas!
Saiba mais
- Coleção Escolas Saudáveis, do Idec: https://idec.org.br/colecaoescolassaudaveis
- Informações sobre Projeto de Lei elaborado pelo Idec e parceiros: https://bit.ly/projetomodelo