INFORMAÇÃO PARA COMER MELHOR
A partir de 9 de outubro, alimentos embalados terão alertas para o excesso de sal, açúcar e gordura saturada em seu rótulo. Mas é preciso ficar atento às estratégias da indústria para não levar gato por lebre
A partir de 9 de outubro, os alimentos embalados comercializados no Brasil terão uma nova rotulagem nutricional. Foram seis anos de discussões, mais dois de espera, para que os consumidores brasileiros pudessem, enfim, entender melhor o que estão comendo e bebendo. Mas o que realmente vai acontecer depois dessa data? Com as novas regras, todos os alimentos e bebidas embalados que tiverem açúcar adicionado, sódio e/ou gordura saturada em quantidade excessiva de acordo com parâmetros da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) irão receber um selo em formato de lupa com a inscrição "alto em [sal, açúcar, gordura saturada]" na parte da frente do rótulo. A nova norma também determina mudanças na tabela que contém informações nutricionais, como a obrigatoriedade de informar a quantidade de açúcares totais e adicionados e todas as informações expressas por 100 g ou 100 ml do produto, além de proibir o uso de alegações que gerem confusão sobre o nutriente que aparece em destaque na lupa. Por exemplo, um produto que tenha o alerta "alto em açúcar" não poderá conter a expressão "reduzido em açúcar".
Apesar de a indústria ter tido dois anos para se adequar à nova norma, as gôndolas do mercado não vão mudar completamente em outubro. "Por enquanto, a mudança só será obrigatória para os produtos fabricados a partir de 9 de outubro. Como os alimentos ultraprocessados têm uma validade bem longa, ainda vamos ver muitos alimentos e bebidas sem o alerta", diz a nutricionista e supervisora técnica do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, Laís Amaral. Ela aponta, ainda, que há outros prazos estabelecidos pela Anvisa: empresas de pequeno porte e agricultores familiares terão até 9 de outubro de 2023 para se adequarem. Já as bebidas não alcoólicas em embalagens retornáveis, como os refrigerantes, serão obrigadas a ter o novo rótulo somente em 2025. "Esses diferentes prazos podem confundir os consumidores, que vão comprar alimentos sem a lupa pensando que são saudáveis, quando na verdade eles ainda nem se adequaram à nova rotulagem", critica Amaral.
NOVAS FÓRMULAS, MESMOS PRODUTOS
Não há dúvidas de que os novos rótulos representam um avanço e vão ajudar os consumidores a saber se um produto pode fazer mal à saúde. Contudo, Janine Coutinho, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, afirma que os critérios escolhidos para o Brasil para determinar o que é "alto em nutrientes críticos" não são tão rígidos quanto deveriam ser, o que faz com que muitos alimentos e bebidas considerados prejudiciais à saúde não sejam rotulados.
NO QUE FICAR DE OLHO
- Lupa "alto em": evite produtos com este selo, já que o excesso de ingredientes como sódio, açúcar e gordura saturada está associado ao desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, como obesidade, diabetes, doenças do coração e alguns tipos de câncer.
- Tabela de informação nutricional: ela precisa informar o valor energético e nutricional por 100 g/ml e incluir as informações sobre açúcares total e adicionado.
- Reformulações: empresas podem tentar se aproveitar das brechas da norma para fazer com que seus produtos pareçam saudáveis, a partir da reformulação e de estratégias publicitárias. Não caia nessa, pois mesmo após reformulados, eles vão continuar sendo ultraprocessados e podendo fazer mal à saúde.
- Ultraprocessados: o Guia Alimentar para a População Brasileira recomenda que esse tipo de produto, cheio de sódio, açúcares, gorduras, ingredientes e aditivos com nomes complicados, seja evitado, pois seu consumo está associado ao desenvolvimento de doenças crônicas. O ideal é substituí-los por alimentos saudáveis, como frutas, verduras e legumes.
Mas esse não é o único problema. Por ser branda, a norma abre brechas para a reformulação de produtos ultraprocessados. A diminuição dos ingredientes considerados críticos pela Anvisa é favorável, mas poderia ser mais assertiva do ponto de vista da saúde pública. Segundo Coutinho, na maioria das vezes, a indústria reduz a quantidade de sódio, açúcar e gorduras apenas para ficar no limite do que é exigido pela norma e, assim, não receber a lupa. Dessa forma, ela consegue passar a ideia de que o produto é mais saudável, quando muitas vezes não é. Isso aconteceu no Chile, que implementou a rotulagem nutricional frontal de alimentos em 2016. Camila Corvalán, coordenadora do Centro de Investigação em Ambientes Alimentares e Prevenção a Doenças Crônicas Associadas à Alimentação (Ciapec, em espanhol), da Universidade do Chile, conta que lá a indústria passou a substituir sal, açúcar e gordura por outros ingredientes prejudiciais. "Vemos um aumento significativo do uso de edulcorantes não calóricos, uma tendência que veio antes da lei, mas que aumentou e se intensificou depois que ela entrou em vigor. E sabemos que esse ingrediente é perigoso para gestantes lactantes", exemplifica.
Amaral, do Idec, acredita que é possível que haja uma substituição de ingredientes nos produtos aqui no Brasil também. "Na maioria das vezes, essas trocas não são benéficas. E como a norma não inclui edulcorantes, é esperado que as indústrias aumentem sua utilização e reduzam a quantidade de açúcar para que seus produtos não recebam a lupa", alerta.
PARECE SAUDÁVEL, MAS NÃO É
Não importa o quanto os rótulos mudem, as estratégias de publicidade vão continuar sendo um dos maiores desafios para a alimentação saudável. A norma da Anvisa permite que produtos sejam promovidos como saudáveis às custas da ausência de lupa, por exemplo, colocando no rótulo a alegação "livre de lupas". Mas a verdade é que muitos alimentos e bebidas não vão ter a lupa porque a legislação é branda e não porque são saudáveis. "Como a norma da Anvisa não proíbe o uso de alegações, inclusive em produtos com lupa, pode haver um aumento do uso dessa estratégia de publicidade para destacar atributos supostamente saudáveis de alimentos cujo consumo deve ser evitado, como os ultraprocessados", declara Amaral. Corvalán concorda e destaca que, no Chile, onde a lei de rotulagem vigora há seis anos, as estratégias de publicidade das grandes empresas, principalmente para os alimentos menos saudáveis de seu portfólio, ainda são um problema.
ANVISA DESPREPARADA
É papel da Anvisa educar os consumidores sobre como utilizar o rótulo frontal, orientar o setor produtivo sobre a aplicação da lupa e as vigilâncias sanitárias (VISAs) sobre como fiscalizar a implementação da norma. Contudo, a agência ainda está engatinhando nesse assunto. "A Anvisa deu dois anos para que as empresas se preparassem, mas ela não se preparou, deixando para a última hora as campanhas educativas aos consumidores e as orientações para as VISAs", lamenta Coutinho.
A Anvisa informou que irá iniciar uma campanha de conscientização e educação dos consumidores em outubro - mês em que a nova rotulagem entra em vigor. Dillian Silva, gerente de alimentos da VISA do Distrito Federal, nota que está havendo um esforço da Anvisa para tentar capacitar, mesmo que minimamente, os profissionais, porém reconhece que ainda há falhas que podem afetar o trabalho das vigilâncias locais. "Nós ainda não sabemos qual será o plano de ação e como devemos orientar o consumidor e o setor regulado", revela. E completa: "Essa falta de treinamento pode fazer com que os próprios agentes de saúde não percebam a inconsistência na rotulagem frontal como um risco à saúde e, consequentemente, não advirtam ou multem o fabricante".
De acordo com a nova norma, produtos fora dos padrões estabelecidos serão considerados infração sanitária, e as empresas poderão receber multas que variam de R$ 2 mil a R$ 1,5 milhões (o valor pode ser dobrado em caso de reincidência, conforme a Lei nº 6.437/1977). A norma também prevê a aplicação de outras penalidades, como advertência e inutilização ou interdição dos produtos. "No entanto, sem profissionais devidamente capacitados fica difícil o controle dos produtos que serão vendidos no mercado", opina Coutinho.
ROTULAGEM AVALIADA
A partir do início da implementação da norma, em outubro, a Anvisa fará a avaliação do resultado regulatório. Nesta etapa, são estabelecidos critérios para saber se a rotulagem está atingindo seu objetivo e se precisa ser aprimorada. "Assim como foi conduzida a definição das novas regras, a avaliação dos resultados deverá ser bastante transparente, de modo a permitir a participação e colaboração de todos os atores interessados no tema", informa a agência. O Idec, a academia e outros órgãos de defesa da saúde deverão monitorar a implementação da norma para solicitar os encaminhamentos necessários pela Anvisa. "Toda norma tem um efeito colateral que não se espera quando uma política é aprovada", justifica Amaral.
A discussão sobre os impactos não é exclusividade do Brasil. No Chile, estudos apontam que a população está reconhecendo que os produtos com selo de advertência são pouco saudáveis e que devem ser substituídos por outros sem ou com menos selos. Apesar desse resultado, Corvalán defende a inclusão dos edulcorantes aos ingredientes que devem aparecer nos alertas e que estes também sejam aplicados nos cardápios de lanchonetes e restaurantes, assim como em qualquer estabelecimento que comercialize alimentos e bebidas.
"Vivemos em uma região [América Latina] onde há políticas regulatórias de vanguarda, então acreditamos que vamos colher os frutos em breve. A nova norma é uma vitória, mas seguimos tentando aperfeiçoar não só a rotulagem, mas também o preço e a oferta de alimentos, a restrição da publicidade de alimentos não saudáveis etc.", conclui Coutinho.
Saiba mais
Especial de Olhos nos Rótulos: https://idec.org.br/de-olho-nos-rotulos