ENERGIA EM TRANSFORMAÇÃO
Projeto de Lei em tramitação propõe Mercado Livre de Energia para consumidores residenciais, ou seja, a possibilidade de comprar energia diretamente do supridor. Entenda como ele funciona
O que você acha da possibilidade de escolher o seu fornecedor de energia assim como você escolhe a sua operadora de telefonia? Interessante ou soa esquisito? E se a gente te contar que isso já existe em vários países, como Inglaterra, Portugal, Espanha, Austrália e Colômbia, e que há grandes chances de o modelo ser implementado em breve no Brasil? Na verdade, ele já existe por aqui desde o fim dos anos 1990 e chama Mercado Livre de Energia, mas só está disponível para grandes consumidores, como indústrias e shoppings centers, que usam mais de 500 kW por mês.
O que está sendo discutido agora, por meio do Projeto de Lei (PL) nº 414/2021 – que pretende reformar o setor elétrico e está em tramitação na Câmara dos Deputados (ele pode ser votado a qualquer momento) – é a inclusão dos consumidores residenciais. O Idec está acompanhando de perto esse PL para garantir que a abertura do mercado realmente estimule a concorrência setorial e para proteger os consumidores de baixa renda e aqueles que preferirem continuar no modelo atual, chamado de mercado cativo.
A fisioretapeuta australiana Tanja S. J. Rudd gostou da experiência de escolher seu fornecedor de energia na Austrália. "Quando voltei para o meu país, em 2004, após passar alguns anos no Brasil, tinha uma empresa grande de energia. Eu não lembro de existirem outras. Hoje, há muitas, e elas batem na sua porta para oferecer seus produtos. Eu troquei algumas vezes de fornecedor nos últimos anos", ela conta.
ENTENDENDO UM MERCADO COMPLEXTO
Estamos acostumados a escolher planos de saúde e de telefonia móvel. Mas o mercado de energia é muito mais complexo. Assim, precisamos receber informações claras para que possamos fazer escolhas conscientes. Lembrando que as grandes indústrias, que hoje já compram energia direto do gerador ou comercializador, contam com equipes técnicas enormes que as auxiliam nessa tarefa. "A transparência e a qualidade da informação são muito importantes. E é papel da Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] fiscalizar e garantir que as empresas sejam transparentes através da regulação", diz o físico e consultor na área de energia Ricardo Lima.
Rudd, a fisioterapeuta australiana, não achava difícil escolher seu fornecedor de energia, pois usava um site de comparação de preços. "Eu informava o CEP, se a casa era própria ou alugada, se tinha painéis solares, entre outras coisas, e depois de algumas horas recebia uma planilha com as tarifas cobradas por várias empresas. Daí era só escolher a melhor oferta", lembra. Porém, ela acaba de se mudar com a família para a Suíça, onde não terá escolha, pois assim como no Brasil, os consumidores residenciais fazem parte do mercado cativo.
Para entender o setor elétrico, o primeiro passo é saber que para usarmos a eletricidade em nossas casas são necessárias quatro etapas principais: 1. produção de energia pelas usinas hidrelétricas, termelétricas, solares etc.; 2. Sistema de transmissão composto de torres de alta tensão (aquelas que vemos nas estradas); 3. Distribuição da energia das subestações onde ela chega nas cidades até as casas; 4. Comercialização, ou seja, a compra dos geradores e a venda para os consumidores.
No mercado livre, os cidadãos continuarão atrelados à distribuidora local – Enel em São Paulo, Light no Rio de Janeiro, Cemig em Minas Gerais etc. –, responsável pelo transporte da eletricidade –, mas poderão optar por escolher a empresa que a produz ou comercializa, assim como o tipo de usina: hidrelétrica, termelétrica, eólica, solar etc. "Hoje, é a distribuidora que compra a energia através de leilões e a repassa a nós, consumidores. Quem mora nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, por exemplo, usa a energia de Itaipu", informa Donato da Silva Filho, CEO da consultoria Volt Robotics.
CONTA DE LUZ MAIS BARATA
A grande propaganda do mercado livre é a possibilidade de a concorrência entre empresas reduzir o custo da energia para o consumidor. De acordo com estudo recente da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), o mercado livre para consumidores residenciais tem o potencial de gerar, até 2035, R$ 210 bilhões de redução nos gastos com energia elétrica, 642 mil empregos e um desconto médio de 27% na compra de energia.
Para Silva Filho, o mercado livre de energia também é uma ótima forma de incentivar a adoção de hábitos mais sustentáveis. "As empresas podem oferecer valores mais baixos para quem consumir fora do horário de pico. A empresa pode dizer: 'se você acionar o timer da máquina de lavar roupas para ela funcionar de madrugada, você paga X em vez de Y'", ele exemplifica.
DE OLHOS BEM ABERTOS
Como nada é de graça nessa vida, um dos riscos levantados por especialistas é um desequilíbrio no sistema, porque se todo mundo migrar para o mercado livre, o que as distribuidoras vão fazer com a energia já comprada de hidrelétricas por meio de contratos de longo prazo (alguns vão até 2040!)? Quem vai pagar essa conta? "É preciso programar a abertura para que não haja esse desequilíbrio. Tem de ter um período de transição, de quatro a cinco anos, com um cronograma bem definido por escrito", sugere Silva Filho.
Outro risco é o de entrarem "jabutis" – termo usado para emendas parlamentares que não têm ligação direta com o texto principal colocado em discussão no Congresso Nacional - no PL no 414/2021. Por exemplo, estão tentando prorrogar contratos já firmados com usinas térmicas. "Não é possível modernizar o sistema, prorrogando contratos com tecnologia obsoleta, como o óleo-combustivel, que é emissor de poluentes", critica o consultor da Volt Robotics.
Anton Schwyter, coordenador do Programa de Energia do Idec, alerta para questões técnicas que precisam ser melhor organizadas, como os sistemas de leitura de consumo e emissão de faturas. Outro ponto que ele levanta é que cada agente do setor elétrico deve ser responsável pelos riscos que representa, assumindo eventuais prejuízos a eles associados. Por exemplo, se algum gerador não conseguir entregar toda a energia que se comprometeu por meio da produção própria, tem de garantir que ela será disponibilizada por um terceiro. Hoje, o custo do acionamento de termelétricas quando as hidrelétricas estão secas por falta de chuva são repassados para os consumidores por meio das bandeiras tarifárias.
O Idec também está atento à eventual criação de novos subsídios ou ao aumento dos que já existem, já que eles são um dos principais itens que encarecem a conta de luz dos pequenos consumidores.
Todos esses riscos podem ser minimizados, felizmente. Silva Filho destaca que é essencial que haja regras eficientes para o mercado cativo, para que ele continue existindo e seja cada vez mais eficiente, além de regras claras para o caso de as coisas darem errado, por exemplo, definir quem vai ficar com a carteira de clientes se uma empresa falir.
O Idec segue de olhos bem abertos e lutando para que essa ideia seja implementada sem desrespeitos aos direitos do consumidor.
Saiba mais
Vídeo sobre mercado livre na página "É da sua conta": https://idec.org.br/edasuaconta