VOCÊ SABE ONDE ESTÃO OS AGROTÓXICOS?
Pesquisa do Idec identifica resíduos de agrotóxicos em produtos ultraprocessados muito consumidos pelos brasileiros, reforçando o alerta sobre o consumo desses alimentos
Motivos já não faltavam para evitarmos o consumo de produtos ultraprocessados. Estamos falando daqueles produtos industrializados que têm entre seus ingredientes conservantes, corantes, estabilizantes e demais substâncias químicas com nomes impronunciáveis, além de grandes quantidades de açúcar, sal e gorduras. São refrigerantes, sucos de caixinha, biscoitos, salgadinhos, entre outros. Hoje é quase consenso na literatura científica que o consumo excessivo desses alimentos está relacionado à incidência de vários problemas de saúde, como diabetes e doenças do coração. Agora, uma pesquisa realizada pelo Idec vem reforçar o alerta. Ela detectou resíduos de agrotóxicos em vários ultraprocessados muito consumidos pelos brasileiros. É a primeira vez, no Brasil, que uma pesquisa encontra esses venenos nesse tipo de alimento, segundo o analista de regulação do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, Rafael Arantes. "A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) realiza um monitoramento periódico dos resíduos de agrotóxicos em alimentos in natura, como frutas, verduras e legumes. Mas para os ultraprocessados, que fazem cada vez mais parte da alimentação dos brasileiros e que são feitos basicamente a partir das commodities que mais utilizam agrotóxicos, como o trigo, a soja, o milho e o açúcar, esse monitoramento não existe", ele destaca.
A partir dessa constatação, o Instituto identificou, por meio da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os tipos de alimentos ultraprocessados mais consumidos pelos brasileiros. Outro critério foi selecionar aqueles produtos com altos teores de açúcar, milho, trigo e soja em sua formulação. Foram definidas, então, oito categorias: refrigerantes, néctares, bebidas de soja, cereais matinais, salgadinhos em pacote, biscoitos de água e sal, biscoitos recheados e bisnaguinhas. Em cada uma, foram escolhidos três ou quatro produtos para serem analisados, com base, por exemplo, em pesquisas de mercado como a Top of Mind, que aponta as marcas mais lembradas pelos consumidores em diversos segmentos.
Os produtos selecionados foram então encaminhados a um laboratório de referência nacional acreditado pela Anvisa. Ali, foram submetidos a uma análise capaz de reconhecer os resíduos de 674 compostos diferentes de agrotóxicos, além do glifosato – que responde por cerca de 40% do mercado mundial de agrotóxicos –, do glufosinato, do diquat e do paraquat, que precisam de uma testagem específica para serem detectados. E os resultados confirmaram a hipótese inicial do Idec: foram encontrados resíduos de pelo menos um agrotóxico em 16 dos 27 produtos analisados – 59,3% (veja a tabela na página 19) – e em alguns casos foram identificados sete ou oito agrotóxicos diferentes em um mesmo produto, como em algumas marcas de bisnaguinhas, biscoitos de água e sal e biscoitos recheados. No total, foram identificados 13 agrotóxicos diferentes, incluindo o glifosato, herbicida que a Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer da Organização Mundial da Saúde (IARC/OMS) classifica como "provavelmente cancerígeno" para seres humanos. Somente duas categorias – refrigerantes e néctares – não continham agrotóxicos.
"Essa pesquisa é uma bomba", avalia o sanitarista Fernando Carneiro, pesquisador da Fiocruz Ceará e membro do Grupo de Trabalho Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). "Uma coisa são os alimentos in natura, que estão lá, na horta, recebem o veneno e rapidinho já estão na sua mesa. Agora imagina uma coisa que você colheu, armazenou, colocou em centrífuga, passou por vários tipos de processamento, e o veneno persiste. Isso é realmente assustador", declara.
SEM LIMITES
Como não existem limites estabelecidos para resíduos de agrotóxicos em alimentos ultraprocessados, o que o Idec fez foi comparar os níveis de agrotóxicos encontrados no ingrediente predominante (milho, trigo ou açúcar) com os parâmetros da Anvisa para alimentos in natura, o chamado LMR, ou Limite Máximo de Resíduos. Nenhum dos produtos ultrapassou esses limites. Esse foi o principal argumento usado pelas empresas nas respostas enviadas ao Idec, que notificou os fabricantes dos 27 produtos. De modo geral, elas alegaram seguir todos os procedimentos e regulamentos previstos na legislação vigente e destacaram que os resíduos identificados pelas análises se encontram em patamares inferiores aos LMRs de agrotóxicos estabelecidos pela Anvisa. As empresas também afirmaram auditar regularmente os fornecedores de matérias-primas de origem vegetal utilizados em seus produtos para que mantenham programas de monitoramento de resíduos de agrotóxicos e que elas próprias realizam periodicamente análises laboratoriais.
Mas para Arantes, o fato de os resíduos estarem dentro dos limites estabelecidos pela Anvisa não reduz o impacto dos resultados. A ideia é que a pesquisa jogue luz sobre a necessidade de se monitorar também os ultraprocessados. "Precisamos saber a real extensão disso, para entender de que forma a população está exposta. É um diálogo que precisa ser aberto com a sociedade", pontua. Para ele, a pesquisa reforça a necessidade de adoção de medidas que restrinjam o acesso aos ultraprocessados, bem como desestimulem o uso de agrotóxicos, que têm impactado o meio ambiente e provocado danos à saúde. Além disso, o poder público deve estimular o consumo de alimentos saudáveis. "É preciso que os alimentos orgânicos e agroecológicos sejam incentivados. Esse é um descompasso que existe. Os agrotóxicos e ultraprocessados são promovidos enquanto a produção orgânica e agroecológica não", critica. Um exemplo da atuação do Idec nessa área é o Mapa das Feiras Orgânicas, plataforma criada em 2014 para aproximar consumidores e pequenos produtores de todo o Brasil.
CENÁRIO COMPLICADO
A conjuntura é adversa, como alerta Carneiro, da Abrasco. Segundo ele, desde 2019, sob o governo de Jair Bolsonaro, a Anvisa vem batendo recordes na quantidade de agrotóxicos liberados para uso no Brasil. Só em 2020 foram 493. "De janeiro de 2019 até o momento, foram 1.131 liberações", ele contabiliza. E os problemas não param por aí. "O Programa de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos [PARA], da Anvisa, vinha numa tendência de ampliação dos princípios ativos analisados, e isso foi interrompido. Além disso, houve mudanças na metodologia de análise, e o programa passou a considerar impróprio para consumo apenas os produtos que oferecem o que eles chamam de 'risco agudo', em que a pessoa come e já tem um problema de saúde, desconsiderando a exposição crônica. Com isso, 99% dos produtos acabam sendo liberados", informa Carneiro. "A gente tem que rediscutir nosso modelo de produção de alimentos. Nós estamos batendo recorde de produção no agronegócio ao mesmo tempo em que batemos recorde de fome; o agronegócio não paga impostos sobre o que exporta, e os agrotóxicos ainda são isentos de tributos. É um modelo que privatiza os lucros e socializa os prejuízos: a cada US$ 1 gasto em agrotóxico, o SUS [Sistema Único de Saúde] gasta US$ 1,20 para atender casos urgentes, segundo pesquisa da Fiocruz", ele opina.
UM PROBLEMA SISTÊMICO
O modelo de produção de commodities é sustentado pela indústria alimentícia, que as utiliza para fabricar alimentos ultraprocessados. Uma relação que suscita questões complexas, mas que evidencia o papel dos sistemas alimentares no que vem sendo chamado de "sindemia global", termo cunhado em 2019 pelo periódico The Lancet, uma das mais respeitadas revistas científicas do mundo. A expressão aponta para a sinergia entre várias epidemias que ameaçam a vida no planeta atualmente: a desnutrição, a obesidade e as mudanças climáticas.
CLASSIFICAÇÃO DOS ALIMENTOS
O Guia Alimentar para a População Brasileira, lançado em 2014, separa os alimentos em quatro categorias:
In natura: alimentos frescos obtidos diretamente da natureza, como frutas, vegetais, legumes, carnes, ovos, leite, entre outros;
Minimamente processados: são submetidos a alterações mínimas, como a retirada de partes não comestíveis, moagem, lavagem, pasteurização e outros processos que não envolvam a adição de ingredientes. Ex: arroz, feijão e outros grãos;
Processados: ingredientes como açúcar, sal, gordura etc. são adicionados em alimentos in natura ou minimamente processados, para aumentar a validade. Ex: alimentos em conserva, queijos, molho de tomate pronto etc.;
Ultraprocessados: feitos a partir de diversas técnicas de processamento industrial e a adição de açúcar, sal e gordura, dentre outras substâncias. Ex: sorvetes, biscoitos, salsichas etc.
Encabeçado pelo ex-relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à alimentação, o belga Olivier De Schutter, o International Panel of Experts on Sustainable Food Systems (Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis, em português), ou Ipes Food, publicou em 2017 o relatório "Unravelling the food-health nexus" (em português, "Desvendando o nexo comida-saúde"), que faz uma ampla revisão da produção científica sobre os impactos desse sistema agroalimentar. Os dados são alarmantes. Em todo o mundo, estima-se que cerca de 200 mil pessoas morram todos os anos por intoxicação aguda por agrotóxicos. A exposição aos chamados desreguladores endócrinos – produtos químicos que interferem no sistema hormonal – representa atualmente um dos maiores problemas mundiais de saúde pública. Eles estão presentes nos agrotóxicos e em compostos químicos utilizados como conservantes nos ultraprocessados. Estudos conduzidos pela OMS e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente relacionaram a exposição aos desreguladores endócrinos como um dos principais fatores de risco para doenças crônicas, como cânceres e patologias que afetam o desenvolvimento do sistema neurológico. Especificamente com relação aos ultraprocessados, além de citar inúmeros artigos científicos que apontam para a relação entre o consumo desses produtos com a obesidade, hipertensão e doenças do coração, o Ipes Food alerta ainda para os aditivos alimentares amplamente utilizados pela indústria alimentícia, como o dióxido de titânio, utilizado como antiaglomerante, que recebeu da Agência Internacional de Pesquisa sobre Câncer da OMS a classificação de "possivelmente cancerígeno" para os seres humanos.
"Nossa pesquisa é muito objetiva, porque a gente precisa afunilar e ter alguns dados concretos para fazer uma discussão que é mais densa, mas que precisa ser feita", pondera Arantes, para quem esses problemas não podem ser encarados separadamente. "Não é só o ultraprocessado, não é só o agrotóxico. No fundo, a gente está falando da transição para sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis, em respeito à saúde da população e aos limites do planeta. Para isso, precisamos de um conjunto de medidas. E o Idec vem, cada vez mais, olhando para isso de forma estrutural e sistêmica, mas sem deixar de atuar por ações de curto prazo", conclui.
Saiba mais
- Mapa das Feiras Orgânicas: https://feirasorganicas.org.br/
- Entrevista com Boyd Swiburn sobre sindemia global para a Revista do Idec: https://idec.org.br/materia/sindemia-global