Planos frustrados
Ao completar duas décadas, a Lei de Planos de Saúde (Lei no 9.656) não cumpriu a missão de pacificar um cenário problemático. Houve avanços desde que foi sancionada, em 3 de junho de 1998, mas os conflitos não se atenuaram – pelo contrário, ganharam novas formas. As empresas do setor lideram, há seis anos, o ranking de reclamações do Idec. Em 2017, representaram 23,4% de todas as queixas, por problemas como reajustes abusivos e negativa de cobertura.
Os planos de saúde tiveram um ciclo de expansão nos anos 1980 e 1990, em paralelo à criação do Sistema Único de Saúde (SUS). As deficiências deste e o encarecimento dos procedimentos médicos estimularam a adesão aos serviços privados, o que fez saltar à vista os vários problemas. Atualmente, são 47 milhões de usuários, praticamente um quarto da população brasileira.
O “NASCIMENTO” DA LEI DE PLANOS DE SAÚDE E DA ANS
Em 1990, o Idec moveu 14 ações judiciais contra operadoras do setor e, em 1993, ao avaliar dezenas de contratos, encontrou uma situação caótica. Ficou clara, então, a necessidade de regular o setor. Em 1997, o Instituto promoveu um ato, no centro de São Paulo, para cobrar a criação de uma lei, que veio no ano seguinte. A demora ilustra a dificuldade de conciliar interesses tão diferentes. De um lado, os usuários. De outro, as empresas. E, no meio, hospitais, clínicas, médicos e o poder público. “O principal efeito da lei foi a institucionalização. O mercado passou a ter uma visibilidade diferente, a sociedade passou a debater mais as garantias, e os conflitos ficaram mais claros”, resume Ligia Bahia, professora de Medicina Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Essa institucionalização garantiu a definição de padrões mínimos de cobertura, dando fim ao famoso “Plano Melhoral”, assim chamado porque, no máximo, resolvia uma dorzinha de cabeça. Também foram estabelecidos critérios para a entrada e o funcionamento de empresas no setor, e ficou proibida a rescisão unilateral de contratos individuais. Contudo, o Estado cobrou o direito de definir as regras, inclusive para reajustes.
Logo ficou clara a necessidade de um órgão regulador. E foi assim que, em 2000, foi criada a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Desde então, a ANS é o palco principal dos desentendimentos. “A agência não quer levar o mercado para outro patamar. Ela entende que seu papel é simplesmente deixar como está”, afirma Ana Carolina Navarrete, advogada e pesquisadora em saúde do Idec.
Na visão do pesquisador Marcello Fragano Baird, o problema está na gênese do órgão regulador, que precisa contrabalançar visões conflitantes sobre saúde: direito e mercadoria. A tese de doutorado dele, defendida em 2017 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, analisa as redes que influenciam a ANS, num mapeamento inédito. Essa tensão concretiza-se no cotidiano da agência em uma disputa entre os que tentam garantir o caráter assistencial dos planos de saúde e os mais favoráveis a deixar nas mãos do mercado a definição de regras centrais. “A Lei de Planos de Saúde é muito detalhada e define proteções ao consumidor, o que impede maior liberalização”, diz Baird. “Devido a esse grau de detalhamento, a ANS não tem competência para tomar decisões estruturantes sobre o setor, seja para defender as empresas, seja para reforçar a proteção aos consumidores” ele completa.
PRINCIPAIS PROBLEMAS
Alguns dos maiores problemas residem na interpretação da lei. A ANS entende que o texto legal não lhe dá autorização para regular os reajustes e a rescisão unilateral de contratos coletivos. Para o Idec, trata-se de uma leitura equivocada.
Em 2007, o instituto lançou, em parceria com o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), um relatório que já vislumbrava o que viria pela frente. O documento avisou que, ao não regular os planos coletivos, a agência causaria o fim dos contratos individuais. Quando a ANS surgiu, o número de planos individuais era quase igual ao de coletivos. Em 2005, os coletivos já representavam mais que o dobro. Em 2010, o triplo. Hoje, o quádruplo, ou 80% do total de contratos.
A isso se soma a interpretação de que a lei não abrange os contratos firmados antes de 1998. No começo de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalmente reconheceu a constitucionalidade da legislação, mas reiterou o entendimento de que os usuários antigos – 10% do mercado – não estão protegidos.
“Há uma persistência de práticas abusivas por parte das operadoras de planos de saúde, há falhas na legislação e omissão da ANS”, opinou o professor Mario Scheffer, membro do Conselho Diretor do Idec e coordenador do Observatório da Judicialização da Saúde Complementar da Faculdade de Medicina da USP, em entrevista recente à Rádio USP.
Desde que o observatório foi criado, o número de decisões judiciais em primeira instância envolvendo operadoras no Estado de São Paulo aumentou de 2.602 – em 2011 – para 19 mil – em 2016. A negativa de atendimento e a exclusão de procedimentos foram os motivos mais comuns. “O desfecho tem sido o endividamento de famílias para o pagamento daquilo que é negado pelo plano ou a busca pelo SUS, que tem problemas, mas acaba por assumir parte dos tratamentos negados”, observa Scheffer.
Quando um usuário de plano de saúde usa o SUS, o governo federal pode pedir ressarcimento às empresas. Esse processo, embora tenha melhorado nos últimos anos, graças à pressão da sociedade, ainda apresenta falhas. De 2013 a 2017, a ANS repassou ao SUS R$ 1,6 bilhão, três vezes menos do que poderia arrecadar, R$ 4,6 bilhões. Procedimentos em avaliação e contestações judiciais são os principais obstáculos.
HÁ UMA PERSISTÊNCIA DE PRÁTICAS ABUSIVAS POR PORTE DAS OPERADORAS DE PLANOS DE SAÚDE, HÁ FALHAS NA LEGISLAÇÃO E OMISSÃO DA ANS
Mario Scheffer, membro do Conselho Diretor do Idec
SETOR LUCRATIVO
Uma das vantagens da lei foi garantir um dimensionamento dos lucros desse mercado, ainda que falte avançar em termos de transparência. A ANS divulgou que, no ano passado, as receitas somadas das empresas foram de R$ 132 bilhões, três vezes mais que na década anterior. O número de contratos também avançou rapidamente no período, chegando a dez milhões, apesar de uma redução nos últimos anos devido ao aumento do desemprego.
Conforme previu o estudo do Idec e do Cremesp, a concentração de mercado também avançou. Em 2006, havia 1.239 empresas, mas as sete maiores concentravam 20% dos usuários. Hoje, são apenas 760, mas as sete maiores contam com 33% dos consumidores. No ano passado, a revista Exame colocou a Amil como a 17a empresa com a maior receita líquida do Brasil, R$ 5,2 bilhões.
Ainda assim, as operadoras se queixam de custos elevados na hora de pleitear reajustes acima da inflação. Mesmo os contratos individuais, regulados pela ANS, apresentam aumentos superiores. No ano passado, a elevação foi de 13,55%, frente à inflação mais baixa dos últimos 20 anos. No caso dos planos coletivos, sem regulação, a situação é ainda pior. O Idec mostrou recentemente que três em cada quatro ações judiciais sobre reajustes abusivos saem vitoriosas. Mas o ideal seria que o consumidor não precisasse ir à Justiça.
A POLÊMICA DOS PLANOS COLETIVOS
A ANS apoia-se na ideia de que os planos coletivos são firmados entre uma empresa de saúde e uma empresa ou uma entidade de classe, que negociam em pé de igualdade. Mas a grande maioria dos contratos tem menos de 30 beneficiários. “Há empresas com cinco empregados e empresas com cinco mil. O poder de barganha é muito diferente”, compara Navarrete.
A ANS definiu que os reajustes desses planos devem ser feitos em conjunto, ou seja, que a operadora deve aplicar um mesmo índice a todos os contratos com menos de 30 usuários. Mas isso não resolveu a questão.
No começo do ano, entrou em vigor uma nova regra para microempreendedores individuais. Na falta de oferta de planos individuais, tornou-se prática comum abrir uma microempresa apenas para ter direito ao plano de saúde coletivo. Agora, essas pessoas terão de esperar seis meses após a abertura do CNPJ e comprovar uma atividade empresarial antes de contratar um plano coletivo. “A responsabilidade da ANS é regular esse mercado. É uma relação entre uma pessoa física e uma jurídica. Não é uma relação igual. Em vez de resolver esse problema, a ANS criou um paliativo”, critica a advogada do Idec.
BENEFÍCIOS PARA AS EMPRESAS,RETROCESSOS PARA O CONSUMIDOR
Embora os grandes planos tenham conseguido colocar seus representantes na diretoria da agência, eles nem sempre conseguiram ditar uma agenda favorável às operadoras. Em parte, dizem alguns dos entrevistados por Baird para a sua tese de mestrado, pelo constrangimento criado por essa relação pregressa. Além disso, constata o pesquisador, o corpo técnico da agência, em muitos momentos, foi capaz de conter mudanças pró-mercado, mesmo quando os representantes empresariais eram maioria.
Para Baird, porém, são as pressões externas que representam a maior ameaça à atuação da ANS. “No geral, o empresariado está perdendo na ANS, em menor medida, e, em maior medida, no Judiciário. Apesar disso, ele tem conseguido atuar com sucesso por fora da agência, especialmente junto à Presidência da República e ao Congresso Nacional, para obter benefícios ao setor e concentrar o mercado”, ele declara. Ricardo Barros, deputado pelo PP que deixou o Ministério da Saúde recentemente, queria a criação de “planos populares”, com cobertura reduzida e que poderia ser extremamente prejudicial aos consumidores. Antes dele, uma medida provisória franqueou a participação estrangeira no setor. Foi a legitimação de um processo de atrelamento ao mercado financeiro do qual já participava a Amil, líder do mercado. Só neste ano, Hapvida e Notre Dame Intermédica, terceira e quarta maiores operadoras, decidiram abrir-se ao mercado financeiro. Para Ligia Bahia, esse processo agrava a pressão por lucros e dificulta o controle das empresas.
O que também pode piorar a vida dos consumidores é um Projeto de Lei (PL) que está em discussão em uma comissão especial da Câmara dos Deputados. Sob o argumento de harmonizar 153 propostas existentes, o texto apresentado pelo deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) coloca a perder vários dos avanços da Lei de Planos de Saúde. “É uma modernização às avessas. Com a aprovação do projeto, retornaremos ao patamar em que estávamos antes da lei. A gente não vê medidas que sejam efetivas para o consumidor. Pelo contrário”, lamenta Navarrete.
Uma das ideias do PL é limitar atendimentos de urgência e emergência aos contratos hospitalares ou de referência, numa volta ao “Plano Melhoral”. Em caso de processo, o juiz só poderá determinar o atendimento de casos urgentes depois de ouvir um perito. As empresas ficariam ainda autorizadas a reduzir a rede de cobertura sem autorização da ANS. E as penalidades em caso de descumprimento ficariam mais brandas. Scheffer considera que o debate legislativo exclui setores importantes. “Não foram contempladas as ponderações das entidades de saúde e de defesa do consumidor. Assim, essa nova lei atende apenas aos planos de saúde”, finaliza.
Como se vê, as operadoras têm tudo para seguir liderando o ranking de reclamações por muitos e muitos anos. Infelizmente.
NO GERAL, O EMPRESARIADO ESTÁ PERDENDO NA ANS, EM MENOR MEDIDA, E, EM MAIOR MEDIDA, NO JUDICIÁRIO. APESAR DISSO, ELE TEM CONSEGUIDO ATUAR COM SUCESSO POR FORA DA AGÊNCIA, ESPECIALMENTE JUNTO À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA E AO CONGRESSO NACIONAL, PARA OBTER BENEFÍCIOS AO SETOR E CONCENTRAR O MERCADO
Marcelo Baird, pesquisador
O QUE DIZ A ANS
Em comunicado por escrito, a ANS disse considerar normal a existência de críticas por parte da sociedade e do setor privado. A agência ressaltou que aposta nos mecanismos de conciliação como ferramenta para resolver a maior parte das queixas – 90,4 mil em 2017, segundo seus dados. O comunicado esclareceu ainda considerar inócua a promoção de esforços para que as operadoras aumentem a oferta de planos individuais e que, por isso, o órgão “vem trabalhando em outras frentes, de modo a estimular a concorrência no setor, aprimorando, por exemplo, a portabilidade de carências, medida que pode induzir a comercialização de planos individuais”. A respeito da falta de regulação do reajuste de planos coletivos, reiterou o entendimento de que, “como a contratação se dá por intermédio de pessoas jurídicas, há um poder de barganha para discussão da avença entre as partes”.
A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) e a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) não responderam aos pedidos de entrevista.