Criança, publicidade e justiça
Em março de 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), corte máxima do País para assuntos infraconstitucionais, julgou pela primeira vez um caso sobre publicidade infantil. A decisão, contra uma campanha da Bauducco, deixa claro que a prática é ilegal. Um ano depois, o STJ voltou a julgar o tema e condenou uma campanha de outra grande marca de alimentos, a Sadia.
As decisões reforçaram que a publicidade infantil é abusiva, como diz o Código de Defesa do Consumidor (CDC), a Constituição Federal e a Resolução no 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança (Conanda), de 2014. No entanto, na avaliação de Adalberto Pasqualotto, professor e pesquisador de direitos do consumidor, esses julgamentos ainda não são suficientemente impactantes para impedir as empresas de direcionar anúncios aos pequenos.
Nesta entrevista, realizada por telefone no fim de agosto, Pasqualotto aposta que a saída para o problema não está no Judiciário, e sim em um órgão administrativo que tenha força para fazer cumprir a lei e proteger as crianças.
Qual é o impacto das recentes decisões do STJ contra a Bauducco e a Sadia, que consideraram abusiva a publicidade dirigida a crianças? Elas devem afetar o comportamento das empresas?
Adalberto Pasqualotto: Há um movimento em todo o mundo no sentido de respeitar mais as crianças, e a indústria está tomando consciência de que deve respeitar certos limites. Porém, como não temos um movimento interno forte de controle e de autorregulação da publicidade – que existe em outros países, como França e Inglaterra –, as decisões do Judiciário ainda não são suficientemente impactantes, porque elas tendem a ser levadas em consideração apenas em casos concretos (“no caso Bauducco”, “no caso tal”) e não como uma norma geral. Então, a questão também envolve um raciocínio muito calculista de custo-benefício: como leva muitos anos para que o STJ se pronuncie sobre um caso concreto, a empresa fica totalmente à vontade para fazer exatamente o contrário do que já foi decidido, pois, até que julguem seu caso, ela tem uns 10 anos de atividades no mercado.
Então, para as empresas, ainda é vantajoso correr o risco de manter anúncios para crianças?
AP: Acho que sim, pois o risco que as empresas correm é muito pequeno. Normalmente, as ações judiciais sobre publicidade abusiva não geram indenização, então, o pior que pode acontecer para a empresa é parar de veicular o anúncio. Mas, enquanto veiculou, ela se aproveitou da publicidade tal como foi feita. O problema no Brasil é a falta de atuação da esfera administrativa [para coibir a publicidade infantil]. Basicamente, temos o Procon em São Paulo, que é bastante atuante [nesse tema], que aplicou multas contra Grendene e McDonald’s, por exemplo, com valores consideráveis. Fora isso, quem autua no Brasil? Um ou outro caso. No entanto, a publicidade está no país inteiro. Os demais Procons não autuam porque são fracos, e não por culpa deles, mas porque não existe política de governo efetiva para defesa dos consumidores. Se houvesse imposição de sanção administrativa, que poderia ser uma multa ou até suspensão da atividade ou do produto, isso certamente levaria as empresas a mudar seu comportamento. Lei nós temos, o que não temos é seu cumprimento.
A atuação da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) também deixa a desejar?
AP: A Senacon sofre do mesmo mal que os Procons: ela é subordinada ao regime político. Quantos ministros da Justiça tivemos nos últimos meses? Na última troca, o diretor da Senacon permaneceu, mas ele tinha assumido o cargo havia pouco tempo. Antes disso, a maior permanência ocorreu durante o governo do PT, mas a atuação da secretaria, a meu ver, ficou comprometida com a tentativa de desenvolver um programa mais político do que técnico. A Senacon tem um papel muito importante, é responsável pela coordenação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, de acordo com o CDC. Ela tem algumas iniciativas, como o Sindec [sistema que integra os registros dos Procons] e a plataforma consumidor.gov, mas atua muito pouco como órgão de definição de políticas e de normatização do sistema.
A secretaria poderia ser quase que uma agência reguladora da publicidade. Por exemplo, a resolução do Conanda poderia ter sido uma resolução da Senacon. As atribuições previstas no CDC me parecem suficientes para que ela regulasse efetivamente a publicidade. Porém, precisa de vontade política e, talvez, de mais competência técnica. Mas o Governo não investe nisso, essa é a verdade.
Se o risco de punição é baixo, o senhor acredita que existe algum tipo de dano à imagem das marcas envolvidas nesses casos de publicidade infantil?
AP: É difícil dizer. Acho que elas não sofrem com isso, porque, de modo geral, as empresas alegam liberdade de expressão comercial. Essa tese é muito acolhida na Suprema Corte dos Estados Unidos, mas não é uma unanimidade em outros lugares, como na Europa. Ainda assim, se há uma decisão contrária a elas aqui no Brasil, é comum que digam que foram injustiçadas ou que no Brasil a jurisprudência está muito atrasada, porque nos Estados Unidos a liberdade de expressão é garantida etc. Além disso, convenhamos, qual é o reflexo disso no mercado da esquina? Tudo isso de que estamos falando diz respeito a julgamentos que são conhecidos por meia dúzia de pessoas e não chegam na gôndola do supermercado. O consumidor vai ao supermercado porque se interessou pela propaganda e compra.
Ambas as decisões do STJ envolvem marcas de alimentos. Considerando o aumento da obesidade infantil no Brasil e no mundo, o Estado deveria priorizar a regulação da publicidade de produtos não saudáveis com apelos a crianças?
AP: Tem dois sistemas [de rotulagem de alimentos] que estão sendo cotejados no mundo: um é o semáforo [nutricional] e o outro é o sistema chileno, de selos de advertência, que me parece muito mais avançado. No Chile, o produto que tem dois selos ou mais fica automaticamente proibido de fazer publicidade. Ou seja, eles conseguiram uma proibição legal indireta, ligada à qualidade do produto. Acho esse sistema fantástico, porque não deixa margem para discussão: se o produto não é bom, a empresa não pode fazer propaganda dele.
Além de reforçar que a publicidade infantil é abusiva, a resolução do Conanda especifica critérios para enquadrá-la. Ela melhorou a base jurídica para coibir a prática no Brasil?
AP: Melhorou, pois o que está no CDC sobre publicidade abusiva é um conceito jurídico indeterminado. No caso de crianças, a lei diz que é abusiva a publicidade que se prevalece da falta de conhecimento e de experiência delas. É preciso pegar um comercial e avaliar se ele se enquadra nesse conceito. Já a resolução do Conanda especifica situações concretas de aplicação dessa norma abstrata: ela diz que, se um comercial utiliza personagens infantis, música infantil etc., isso significa se prevalecer da falta de capacidade de julgamento da criança. O próprio código de ética do Conar [Conselho de Autorregulação Publicitária] também traz exemplos assim.
Na província de Quebec, no Canadá, há uma lei que proíbe publicidade infantil para crianças menores de 13 anos. O regulamento – que equivaleria a um decreto ou à resolução de uma agência aqui no Brasil –, diz o que é proibido e o que não é, inclusive com pontos muito parecidos com o texto do Conanda. O fato de uma norma administrativa explicitar o que está na lei não acrescenta nada a ela, apenas exemplifica situações que a lei prevê em abstrato, ou seja, só enriquece sua interpreta- ção. Então, nesse sentido, a resolução do Conanda contribuiu muito.
Estudo recente do Instituto Alana aponta que a publicidade infantil na internet, principalmente nas redes sociais, é um dos maiores desafios para a proteção das crianças dos apelos de consumo – entre outros motivos, porque a exposição é ilimitada. Como regular e fiscalizar a publicidade infantil nas redes sociais?
AP: Acho impossível regular a internet. Não existem mais limites muito nítidos entre conteúdo e publicidade, uma coisa está entranhada na outra. Então, creio que não conseguiríamos estabelecer uma norma de cumprimento seguro. Por isso, na minha opinião, deveria existir uma regulação social, um consenso em torno da publicidade, especialmente a dirigida a crianças, estabelecido por um corpo transdisciplinar – pedagogos, psicólogos, sociólogos, juristas, educadores, comunicadores etc. Os blogueiros, por exemplo, são veículos de publicidade nas redes sociais hoje em dia, mas atuam com base na liberdade de expressão, que é um direito fundamental assegurado na Constituição. Mas, dependendo do conteúdo expressado, é possível estabelecer limites. Só que, por regra legal, esses limites são muito difíceis de controlar, por isso deveriam partir de um consenso social. Isso precisaria ser institucionalmente construído.
No fim de 2016, o Ministério Público Federal entrou com ação contra o Google, responsável pelo Youtube, por conta de publicidade infantil na plataforma de vídeos. O senhor concorda que a empresa é responsável por controlar os posts na rede social?
AP: Sim, mas a responsabilidade pode variar de acordo com o nível de controle que o Google ou o provedor tenha sobre o conteúdo veiculado. Embora haja muitas controvérsias, não acho ruim a regra prevista no Marco Civil da Internet de que o provedor, uma vez notificado, é obrigado a interditar o site ou retirar o conteúdo do ar, sob pena de ser responsabilizado. Isso não se aplica somente à publicidade, mas também a casos de difamação. Se o provedor não tinha condições de controlar e evitar a publicação, precisa ser notificado para tomar providência adequada.