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Modelo em transição

Kamyla Borges Cunha, do Iema, fala sobre os impactos socioambientais da produção de energia elétrica no Brasil.
Kamyla Borges Cunha é advogada formada pela Universidade de São Paulo (USP), com mestrado e doutorado nas áreas ambientais energéticas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Coordena a área de Energia e Clima do lema.
 

A energia elétrica é um serviço essencial para os consumidores, e também está diretamente relacionada ao desenvolvimento produtivo de um país. Ela está tão intimamente ligada ao nosso modo de vida que dificilmente paramos para pensar de onde vem e, principalmente, quais impactos deixa pelo caminho.

No Brasil, apesar do grande potencial para o uso de diversas fontes renováveis, a produção de energia ainda é fortemente centrada em grandes usinas hidrelétricas (cerca de 70%) e complementada com termelétricas. Esse modelo está em transição, segundo Kamyla Borges Cunha, coordenadora da área de Energia e Clima do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema). Ela diz que é inexorável que usinas eólicas e painéis solares passem a fazer cada vez mais parte do cenário brasileiro. Porém, lembra que não existe energia 100% limpa, e que cabe aos consumidores conhecer os impactos e usar o recurso de forma mais consciente. Veja, a seguir, sua análise.

Quais são as principais consequências, do ponto de vista socioambiental, do modelo de produção de energia adotado no Brasil, centrado em hidrelétricas e termelétricas?

Kamyla Borges Cunha: Até pouco tempo atrás, as hidrelétricas eram baseadas em grandes usinas com barragens, que causam o deslocamento de populações. Há usinas construídas nas décadas de 70 e 80 que removeram uma cidade inteira. Além disso, muitas vezes, há inundação de áreas significativas, que poderiam ser usadas para outros fins econômicos, como agricultura, e também áreas com potencial de preservação da biodiversidade. Essa lógica de grandes usinas está mudando. Mas, atualmente, o problema é que os potenciais hidrelétricos que ainda existem estão nas bacias da região Norte. Ainda que as novas usinas – chamadas de fio d'água – tenham barragens menores, elas também demandam o deslocamento de populações ribeirinhas, indígenas, quilombolas etc. presentes na região. Além disso, há também impactos provocados pela explosão populacional decorrente da demanda por mão-de-obra na etapa de construção das usinas. De repente, cidades sem estrutura de saneamento, educação, saúde etc., veem a população duplicar, provocando aumento de casos de violência e de outros problemas sociais.

Já na geração termelétrica, as grandes usinas costumam ser construídas próximas aos centros urbanos para reduzir custos de operação. Isso é problemático porque, em geral, a térmica emite poluentes que agravam problemas respiratórios, cardiovasculares etc. na população que vive no entorno. Outro problema é que a maior parte das usinas adota um sistema de resfriamento que usa muita água. Uma térmica [com potencial de geração] de cerca de 500 megawatts pode chegar a demandar água equivalente a uma cidade de 70 mil habitantes. E o pior é que muitas usinas estão localizadas em regiões com escassez hídrica, como nos arredores de Fortaleza, entrando em conflito com o abastecimento público [de água].
 

O ideal seria diversificar mais as fontes de energia?

KBC: Sem dúvida. A diversificação das fontes é ideal não apenas sob a perspectiva ambiental, como também de segurança energética. Nos últimos anos, passamos por um período de seca rigorosa no Sudeste e no Nordeste. Com isso, foi preciso disparar as termelétricas, mas elas têm um custo de operação mais alto, porque o combustível é comprado a preço de mercado internacional. Com a diversificação de fontes, seria possível fazer um uso mais equilibrado das diferentes possibilidades. A dependência de um modelo muito centralizado traz riscos à segurança operacional. Tivemos sorte de que a crise hídrica, em 2014 e 2015, coincidiu com a crise econômica no Brasil. Se o País estivesse em um período de crescimento econômico, não sei se teríamos energia elétrica para atender à demanda.
 

As energias eólica e solar são alternativas de fato mais limpas?

KBC: É preciso desmistificar o termo "energia limpa". As energias renováveis, como a eólica, a solar e a biomassa, são consideradas limpas em relação à emissão de gases de efeito estufa. Mas não existe energia 100% limpa. Já existem problemas com a geração de energia eólica no Nordeste, por exemplo, com a disputa entre arrendatários para a construção de usinas e pessoas que viviam naquele local e tiveram de sair. Na cadeia produtiva da energia solar tem mineração, necessária para os componentes eletrônicos do painel. É importante o consumidor saber que a energia que chega a sua casa provoca impactos, pois assim pode passar consumir de maneira mais responsável.
 

É comum ouvir que o Brasil desperdiça seu potencial para essas alternativas. Quais são as principais dificuldades para as energias eólica e solar de fato avançarem?

KBC: dificuldade para essas alternativas avançarem tem a ver com a ausência de políticas públicas estruturadas. No caso da energia eólica, ela começou a consolidar-se em 2009 em função de programas de incentivo a fontes alternativas, a leilões de energia e a programas de financiamento do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] com juros diferenciados para que a indústria se estabelecesse. Já a solar ainda está engatinhando, pois praticamente todos os componentes do painel são importados. O Brasil perdeu a oportunidade de aproveitar a inserção das energias renováveis também como um meio de desenvolvimento tecnológico, de geração de empregos etc., que foi o que ocorreu na Alemanha, nos Estados Unidos, na Índia e na China. Aqui, isso não aconteceu, e ficamos dependentes de tecnologias importadas, o que torna essa alternativa mais cara. Essas fontes vão entrar na matriz elétrica brasileira com ou sem incentivo, pois essa é uma tendência mundial, uma questão de mercado internacional de energia. Mas seria mais rápido se houvesse uma política pública estruturada.
 

Muito se diz também que falta "vontade política" para essas fontes alternativas deslancharem. Quais são os interesses econômicos por trás disso? As grandes construtoras, responsáveis por obras de grandes usinas hidrelétricas, por exemplo, estão entre os interessados em manter o status quo?

KBC: Acho que sim, e a própria Lava Jato [operação da Polícia Federal que investigacorrupção e lavagem de dinheiro, principalmente em contratos da Petrobras] já demonstra isso. O setor elétrico brasileiro hoje é um misto: há empresas estatais do grupo Eletrobras, como Eletronorte e Chesf, que dominam as principais hidrelétricas, mas tem a entrada cada vez maior de empresas privadas. Entre os acionistas dessas empresas estão Odebrecht Energia, Camargo Corrêa Energia etc. A lógica delas, no geral, é baseada em grandes empreendimentos, que demandam alto investimento. Mas estamos falando de um mercado que vê a energia elétrica como ativo financeiro. Então, há um movimento de adaptação. A CPFL, por exemplo, que é uma grande empresa de geração e distribuição de energia elétrica, criou há alguns anos o grupo CPFL Renováveis. O negócio dessas empresas é energia, não importa muito [o modelo], e sim o que está dando dinheiro.
 

O modelo de geração de energia solar pelo consumidor, em seu próprio telhado, é o mais utilizado no Brasil? Ele é interessante para a realidade brasileira ou o ideal é que seja combinado com formatos centralizados?

KBC: Em 2012, foi aprovada uma resolução pela Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] que define as regras para o funcionamento de mini e microgeradores de energia. Com ela, os consumidores passaram a ser autorizados a gerar energia elétrica, podendo instalar um painel solar no telhado de sua casa ou uma pequena hélice eólica. Se produzir mais do que consome, ele pode devolver para a distribuidora e receber um desconto na conta de energia elétrica. Na solar, esse é o modelo mais utilizado, e não tenho dúvida de que essa é a vocação dessa forma de energia. O problema está no custo e na burocracia. Temos relatos de pessoas [interessadas em ter painéis solares] que acessam o site das distribuidoras de energia elétrica e não encontram informações de como fazer. Além disso, tem a barreira do custo. O payback [retorno do investimento] caiu bastante, mas a última informação que tive é que pode chegar a 10 anos.
 
NÃO EXISTE ENERGIA 100% LIMPA. É IMPORTANTE O CONSUMIDOR SABER QUE A ENERGIA QUE CHEGA A SUA CASA PROVOCA IMPACTOS, POIS ASSIM PODE PASSAR A CONSUMIR DE MANEIRA MAIS RESPONSÁVEL

Esse modelo é interessante para a distribuidora? Porque com ele, ela deixa de lucrar com a venda de energia.

KBC: O papel das distribuidoras está sendo repensado no mundo inteiro, mas em outros países é diferente, pois a distribuição é descentralizada. No Brasil, os consumidores residenciais não têm a opção de escolher a distribuidora. Na Alemanha, por exemplo, o mercado é totalmente livre. O consumidor pode inclusive vender a energia que gera e não consome. Em alguns estados americanos, idem. Existem alguns projetos de lei no Congresso que propõem uma mudança regulatória para possibilitar esse modelo livre no Brasil, mas há prós e contras, principalmente em termos de tarifa. Se por um lado poderia permitir mais competitividade entre as distribuidoras e baixar as tarifas, por outro, não há garantia de que o mercado seria de fato competitivo sem regulação. Hoje, o setor é muito regulado, cada item que compõe a tarifa é milimetricamente definido.
 

Desde 2015, o aumento do custo da produção de energia (normalmente quando as térmicas são acionadas) é repassado mês a mês ao consumidor por meio das bandeiras tarifárias. Qual é a sua opinião sobre essa política?

KBC: A bandeira é coerente com o custo da geração e mostra ao consumidor que é preciso usar a energia elétrica de forma maisconsciente. Somos pouco educados para isso, então, acho que é uma sinalização necessária. Esse aumento é decorrente de uma série de erros de planejamento, de problemas relacionados ao sistema como um todo, mas o consumidor também tem um papel. No fim das contas, ele também é responsável pelos impactos socioambientais e pelos custos associados a toda a cadeia de produção, geração e transmissão de energia, e tem a função, inclusive, de demandar outra forma de planejamento, de definição dos custos e de organização da cadeia. O consumo consciente é o ponto de partida para que o resto da cadeia seja transformado.

 


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