EMERGÊNCIA CLIMÁTICA
Não é de hoje que cientistas alertam para os perigos das mudanças climáticas. E se antes falávamos de uma possível crise no futuro, hoje já usamos os verbos no presente, pois a crise já chegou, e lidar com ela se tornou uma emergência. Isso porque ela afeta todos nós, cidadãos desse mundo, no nosso dia a dia, seja por conta do aumento do preço de alimentos, porque a seca ou as inundações dificultam a produção; seja pelas tragédias que pode causar, como a que ocorreu recentemente no Rio Grande do Sul.
Para entender os impactos das mudanças climáticas em nossas vidas e o quão grave é a situação atual do planeta, conversamos, por vídeochamada, com Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima.
Confira a seguir!
SUELY ARAÚJO é urbanista, advogada e doutora em Ciência Política. Foi presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de 2016 a 2018. Hoje, é professora no mestrado e doutorado em Administração Pública do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), e atua como coordenadora de políticas públicas no Observatório do Clima.
Como as mudanças climáticas afetam o custo de vida dos consumidores?
Suely Araújo: A crise climática já está configurada. Estamos vendo as maiores temperaturas já registradas. O mundo inteiro está sofrendo com a maior frequência e a maior intensidade dos eventos extremos. Isso dificulta, em geral, toda a dinâmica da sociedade e afeta diretamente as relações de consumo.
Quando temos situações em que é mais difícil produzir, com secas prolongadas, áreas inundadas, calor excessivo, com certeza os alimentos tendem a ter os preços majorados. Há também a tendência a problemas crescentes na prestação de serviços públicos, inclusive com possível aumento das tarifas. Mas as empresas concessionárias que prestam esses serviços não podem colocar a responsabilidade por esses problemas nas mudanças climáticas. Elas têm de ter plenajamento para situações de emergência, e isso precisa ser regulado por ajustes nos contratos com as agências reguladoras.
Isso é um desafio não apenas no setor de energia elétrica, mas também no de abastecimento de água, com a tendência de diminuição da disponibilidade hídrica. A Agência Nacional de Águas tem um estudo, deste ano, que mostra que até 2040 a situação vai ficar muito crítica na maior parte das bacias do país. O poder público e seus concessionários têm de dar um jeito de se planejar para prestar os serviços de forma adequada.
Quais setores da economia têm sido mais impactados pelas mudanças climáticas?
SA: O agro é um dos mais afetados diretamente, mas também faz parte da causa, porque no Brasil, o desmatamento responde por 48% das emissões de gases de efeito estufa, e o agro por 27%. Ou seja, 75% das emissões brasileiras vem da área rural. O setor de energia gera apenas 18% das emissões brutas.
A tendência é uma dificuldade cada vez maior para produzir. Algumas regiões do país tinham três safras, agora, só duas. Elas têm uma dependência cada vez maior de recursos hídricos e não gerenciam isso. E vão ter cada vez menos recursos disponíveis, até porque a prioridade é o abastecimento humano. Isso está no artigo 1o da Lei no 9.433. O agro está tendo de trabalhar com sementes mais resistentes ao calor, o que não é barato. Com certeza vai repercurtir no preço dos alimentos. Isso é um pouco amenizado pelo fato de que quem produz alimentos para a mesa dos brasileiros são os pequenos agricultores e agricultores familiares, que respondem por mais da metade do fornecimento. E os pequenos agricultores trabalham, em geral, em condições mais adequadas de relação com a natureza. Desmatam menos, degradam menos. Isso não é regra absoluta, mas é a realidade, em média. Mas de qualquer forma, as mudanças climáticas também estão afetando os pequenos, e eles têm menos condições de responder à crise.
Existem outros setores afetados, principalmente quando se tem desastres como o do Rio Grande do Sul ou como a seca no Amazonas. Isso afeta diretamente as pessoas em tudo o que elas fazem, não somente lá, mas também em outras partes do país. E no caso do Rio Grande do Sul, a recuperação vai levar mais de uma década. E não estamos isentos da possibilidade de ocorrerem outras inundações enquanto estiverem reconstruindo.
A ciência tem alertado, há pelo menos 30 anos, sobre a ameaça das mudanças climáticas. Porém, parece que muito pouco foi feito ou compreendido pela sociedade. Por que isso acontece?
SA: Os cientistas já falavam das mudanças climáticas antes mesmo da Rio92, onde foi aprovada a Convenção-Quadro das Ações Unidas sobre a Mudança do Clima. Já o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas [IPCC, na sigla em inglês], da ONU [Organização das Nações Unidas], foi fundado em 1988 com a funcão de alertar para a situação das mudanças climáticas. O IPCC é composto de centenas de cientistas, os maiores do mundo, habilitados a colocar para a gente a gravidade da crise. Eles já publicaram seis séries de relatórios. A última foi de agosto de 2021 a março de 2023. Então, alerta não faltou.
Mas a resposta a tudo isso ficou muito aquém do necessário. Tivemos no plano internacional o Protocolo de Quioto e o Acordo de Paris, com resultados muito precários. Na verdade, ainda estamos aumentando o uso de combustíveis fósseis, quando deveríamos estar com urgência numa curva decrescente de descabonização. E se todos os países cumprirem seus compromissos frente ao Acordo de Paris, o aumento de temperatura será de cerca de 2,5°, acima do limite adequado, que é de 1,5°. E eles não estão cumprindo. Temos de dar um jeito de reduzir isso, porque essa situação já está gerando muita dificuldade. Quando ocorreu a inundação do Rio Grande do Sul, em maio, ao mesmo tempo tínhamos velhinhos morrendo de calor no México, inundações em outros países, furacões, tufões.
A crise já chegou. Antes a gente conjugava a crise climática no futuro, agora, no presente. Talvez, com a crise posta, haja um aprendizado de que não dá tempo de ficar discutindo minúcias diplomáticas. A burocracia internacional dos acordos não tem tido a velocidade necessária para dar respostas. E no lugar de melhorar, as coisas estão piorando. A dimensão da crise vai ajudar um pouco, mas tem que ter uma coordenação federativa – da União, dos estados e municipios – muito forte para que a gente tenha efetividade tanto nas medidas de mitigação quanto nas de adaptação. Mas não adianta fazer planos e não garantir meios de implementação, porque planos a gente já tem. Temos um plano de 2016, que não é ruim, mas ficou no papel. Essa crise toda tem de motivar ações efetivas, que vão muito além do Ministério do Meio Ambiente. A questao climática tem de estar em todos os ministérios.
Você acredita que a população está bem informada sobre as mudanças climáticas?
SA: Temos alguns sinais [de que a população está mais bem informada]. Algumas pesquisas de opinião mostram uma preocupação com a crise climática. No Brasil Participativo, que está elaborando o plano plurianual, o tema número 1 foi emergência climática. Quando ocorreu a tragédia no Rio Grande do Sul, as pequisas mostraram que 100% das pessoas entendiam que o que estava acontecendo era decorrência das mudanças climáticas. Por isso, eu acho que a consciência sobre o problema está melhorando, mas não ao ponto de impactar a decisão em quem votar. E em quem você vota, seja na Câmara dos Veradores, na Prefeitura, no Governo Estadual, na Assembleia Legislativa, no Governo Federal, faz muita diferença.
Eu acredito que a geração mais nova virá mais preparada. O duro é que não temos muito tempo para arrumar tudo isso. E quem está no poder de decisão hoje não passou a vida toda em situação de crise climática, por isso tem mais dificuldade de entender que o mundo mudou. A esperança é que os mais novos, que já estão inseridos nessa realidade, quando puderem decidir, sejam melhores do que nós.
E as pessoas entendem os desafios enfrentados para combater a crise climática?
SA: Acredito que não entendem o quanto é difícil e quanto dinheiro está envolvido. Para realmente atuar em adaptação, nós temos de ter o tema “clima” inserido nas políticas habitacional, de saúde, de energia, de transportes etc. O Plano Clima Adaptação, que está sendo elaborado pelo Governo, vai ter 16 planos setoriais, envolvendo praticamente mais da metade da Esplanada dos Ministérios. Acho que essa complexidade, a população não entende.
E, muitas vezes, quem está no Governo também não entende. Por exemplo, o Governo Lula está reconstruindo a governança ambiental e climática, colocando o tema “meio ambiente” em todos os ministérios (e “clima” em vários deles); controlando o desmatamento na Amazônia etc. Mas o mesmo Governo quer se tornar o quarto maior produtor de petróleo do mundo em plena crise climática. Isso é totalmente contraditório. Ou você é um lider ambiental na esfera internacional ou você comanda um grande petroestado. O Brasil já é o oitavo maior produtor de petróleo. No ano passado, produzimos 3.400.000 barris por dia. É muito petróleo. Mas quer competir com a Arábia Saudita num momento em que o petróleo vai atingir seu ápice de demanda no mundo (por volta de 2030, segundo a Agência Internacional de Energia) e, então, vai cair. Em termos de negócio, isso não faz sentido. E mesmo que esse petróleo seja todo para exportação, ele vai queimar em algum lugar (80% das emissões se dão na queima). E não existe petróleo sustentável. São duas palavras que não combinam. Essa contradição mostra a insuficiência do conhecimento da questão climática no próprio Governo Federal.
Quais ações de educação e conscientização podem ser tomadas para que mais e mais cidadãos fiquem cientes dos perigos das mudanças climáticas e dos desafios para combatê-la?
SA: Além da educação nas escolas, que está muito focada em meio ambiente e deveria ter um componente clima mais forte, eu acho que deveria haver campanhas do Governo deixando clara a dimensão da crise climática. Eu não gosto de alarmismo, mas você se assustar com a gravidade da crise pode motivar a ação. Tem que ter toda uma técnica para as pessoas não acharem que o mundo está acabando, existem formas corretas de fazer toda essa comunicação. Deixar clara a dimensão da crise ajuda as pessoas a se prepararem.
Como as mudanças climáticas podem impactar a infraestrutura urbana no futuro e o que isso significa para os consumidores em termos de transporte, moradia e acesso a serviços essenciais?
SA: O planejamento urbano tem que ser impactado. Temos de rever a forma como faremos o parcelamento e a ocupação do solo nas áreas urbanas e rurais, mas vou focar nas cidades. Nas cidades costeiras é preciso afastar o potencial construtivo da linha de costa e priorizar as moradias considerando os grandes eixos de transporte e a distância entre casa e trabalho. Essa lógica de planejamento urbano não está sendo feita.
É importante ter um sistema de áreas verdes planejado, que funcione não só para a o bem-estar da população – amenizando a temperatura, garantindo recreação – mas que consiga tornar as cidades mais permeáveis. Fazemos drenagem urbana de uma forma totalmente inadequada. As cidades têm de conversar mais com as águas. Os urbanistas têm trabalhado muito com o conceito de cidades-esponja. Quando chove muito, a água precisa ter tempo de penetrar e precisa ter como fazer isso. Se colocamos uma infraestrutura de drenagem, ela vai levar rapidamente a água para algum ponto que vai alagar.
Um desafio são as ocupações informais, como as comunidades (não gosto de chamar de favelas). Muitas vezes elas estão em áreas frágeis. Mas essas situações de risco não podem ser transformadas em desculpas para jogar seus habitantes em guetos da periferia. Se tiver de remover, tem de garantir que a população esteja perto do trabalho. E há casos em que o risco está majorado pelas mudanças climáticas. Isso não pode ser desculpa para promover a remoção maciça de milhões de pessoas. Esse é um desafio gigante nas nossas grandes cidades.
O que os consumidores podem esperar em termos de custos de energia nos próximos anos devido à transição para fontes de energia mais limpas e ao impacto climático nos sistemas atuais?
SA: Nossa matriz de energia é privilegiada, baseada essencialmente em recursos renováveis, mas problemas virão, porque metade da geração elétrica ainda é baseada em hidrelétricas, e teremos piora de disponibilidade hídrica em diversas bacias. Talvez seja o grande nó a ser resolvido. Acredito que as hidrelétricas continuarão importantes, mas tem de haver expansão das eólicas, solares, do uso de biomassa nas áreas rurais. Tudo isso tem de ser feito com muita atenção aos efeitos socioambientais desses empreendimentos. Não podemos deixar a nossa matriz elétrica se carbonizar em plena crise climática. Isso não faz sentido.
Em outubro, lançamos um estudo sobre transição energética. E pelos dados que levantamos, se mantivermos a nossa matriz elétrica como está, os consumidores podem ficar tranquilos. Já se formos na linha de construir terméletricas para queimar fosseis por aí, eles devem começar a se preocupar. Mas precisamos arrumar algumas contradições nas políticas públicas, que vem de outros governos, como os jabutis da Lei de Privatização da Eletrobras, que previram térmicas no país inteiro; ou uma lei do Governo Bolsonaro que garantiu a compra antecipada de geração elétrica advinda de carvão mineral em Santa Catarina até 2040. Carvão, que não representa nada na nossa matriz elétrica, 1,2%. Quem tá pagando essa compra antecipada? Todos os consumidores.
Qual o papel dos governos e das empresas em proteger os consumidores dos impactos econômicos das mudanças climáticas, como inflação de alimentos e interrupções de serviços?
SA: A mudança climática está prevista há muito tempo e já deveria estar assimilada nas políticas governamentais e no planejamento das empresas. Eu não aceito esse discurso, que está se configurando bem claramente, de jogar a culpa por problemas nos serviços públicos e no dia a dia das empresas na questão climática. Eles tiveram tempo para se preparar. A população não pode ser onerada por causa disso. Eles que se virem, a responsabilidade é deles, do Governo e da iniciativa privada. E as agências reguladoras têm um papel fundamental, pois estão lá para proteger os cidadãos e garantir que os serviços sejam executados direito, e não para proteger os interesses das empresas.
Quais práticas e hábitos os consumidores podem adotar para se adaptarem às mudanças climáticas?
SA: Tentar priorizar o transporte coletivo, se for possível; tentar priorizar os alimentos orgânicos, mas reconheço a dificuldade, porque eles são geralmente caros, infelizmente; reduzir o desperdício; reduzir o uso da água; tentar manter o quintal com vegetação para que a água possa entrar; votar preocupado com as questões ambiental e climática (isso é essencial!); e cobrar dos seus representantes eleitos (se tem uma coisa com a qual políticos de qualquer cor ideológica se preocupa é como seu eleitor vai reagir). Passei 29 anos na Câmara dos Deputados redigindo legislação ambiental. O Congresso está muito ruim. O negacionismo alcançou níveis altíssimos. É um ataque contra a legislação ambiental inaceitável. Então, escolher bem os seus representantes, talvez seja a medida número um.
Saiba mais
Leia o estudo “Futuro da energia: visão do Observatório do Clima para uma transição justa no Brasil” em https://www.oc.eco.br/wp-content/uploads/2024/10/OC_Futuro-da-Energia_DI....
POR DENTRO DO CDC
Documentos pré-contrato
Sempre que um consumidor adquire um bem ou contrata um serviço, é extremamente importante que ele receba, antes de assinar o contrato, documentos que apresentem os termos e as condições discutidos no momento da oferta, como orçamentos e promessas feitas por vendedores e corretores. O artigo 48 do Código de Defesa do Consumidor prevê que tudo o que é discutido e oferecido antes da contratação deve estar presente no contrato. Esses documentos prévios podem servir como prova em caso de não cumprimento do que foi estabelecido entre fornecedor e consumidor, cabendo inclusive a exigência de indenização por eventuais perdas e danos em caso de descumprimento.
DE OLHO NOS PODERES
Executivo, Legislativo e Judiciário sob a ótica do consumidor
⬆ TJ-SP e Procon criam centro especializado em superendividamento
Desde 7 de outubro, o Centro Judiciário de Soluções de Conflitos e Cidadania em Matéria Consumerista (Cejuscom) pode ser utilizado por consumidores com problemas de consumo, principalmente relacionados ao superendividamento, como renegociação de dívidas. O novo órgão, criado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e pelo Procon-SP, pode ser acessado por meio do Procon ou pelo Portal de Combate ao Superendividamento do TJ-SP (https://esaj.tjsp.jus.br/petpg-conciliacao/abrirConciliacaoSuperendivida...).
⬆ Hurb recebe multa milionária por ferir direitos do consumidor
No início de outubro, o Hurb (antigo Hotel Urbano) recebeu, do Procon-MG – órgão do Ministério Público de Minas Gerais –, uma multa de R$ 2,5 milhões por ter descumprido dois artigos do Código de Defesa do Consumidor (CDC), ao continuar comercializando pacotes turísticos com datas flexíveis mesmo ciente de suas dificuldades para cumprir os contratos já firmados: o 39, V (que veda exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva), e o 51, XV (que proibe cláusulas contratuais em desacordo com o CDC). Contudo, o Hurb ainda pode recorrer da decisão.
⬇ STF derruba leis que instituíram Código Municipal de Defesa do Consumidor
O Supremo Tribunal Federal (STF) manteve as decisões de segunda instância que derrubaram grande parte dos dispositivos das leis que criaram códigos municipais de defesa do consumidor nos estados de São Paulo (Lei nº 17.109/2019) e Rio de Janeiro (Lei no 7.023/2021). Os ministros consideraram os artigos contestados inconstitucionais, pois não há interesses locais que justifiquem a edição das normas. O parecer do STF foi dado a recursos das prefeituras e câmaras municipais contra as decisões favoráveis obtidas pela Abinee, Acel, Abrafix e FecomercioSP.
Fonte: Valor Econômico.