Moderna, mas pouca inclusiva
Projeto-piloto da Anvisa que autoriza que alguns medicamentos sejam vendidos apenas com a bula eletrônica, sem a versão impressa, preocupa Idec.
Quando o seu médico receita um remédio que você não conhece, provavelmente, antes de tomá-lo pela primeira vez, você abre a bula e olha os efeitos colaterais, a dosagem, as interações medicamentosas e orientações de uso. Certo? E se de repente as bulas de papel, como estamos acostumados, fossem trocadas por bulas digitais, ou seja, disponíveis apenas na internet? Pois essa pode ser a realidade num futuro próximo. A Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou, em 10 de julho, a Resolução 885/2024, que autoriza que diversos medicamentos (veja quais são no quadro abaixo) sejam vendidos sem a bula impressa, apenas com a versão eletrônica, acessada por meio de um QR Code.
A proposta foi apresentada como um projeto-piloto, que valerá até 31 de dezembro de 2026. Mas a própria diretoria da Anvisa, alinhada com representantes da indústria, já adiantou a intenção de expandir a ideia para todos os medicamentos. “Não somos contra a inovação e as novas tecnologias, mas defendemos que as bulas impressas precisam continuar existindo. Ou seja, as bulas digitais não podem ser a única forma de os cidadãos brasileiros acessarem informações importantes sobre medicamentos”, declara Lucas Andrietta, coordenador do Programa de Saúde do Idec. Debora Raymundo Melecchi, coordenadora geral da Comissão Intersetorial Ciência, Tecnologia e Assistência Farma- cêutica do Conselho Nacional de Saúde (CNS), tem a mesma opinião: “Muitos idosos têm dificuldade de acessar a internet e podem não estar familiarizados com recursos online para obter informações sobre medicamentos, cruciais para evitar erros na administração e garantir que os tratamentos sejam eficazes. Assim, manter a bula impressa é uma medida inclusiva e sensível às necessidades de toda a população. Além de garantir o acesso às informações independentemente da conectividade”.
Cadê a inclusão?
Talvez você ache que as bulas digitais são uma mão na roda. E elas realmente podem ser muito úteis para quem tem acesso à internet e familiaridade com ela. Mas não podemos nos esquecer dos milhões de brasileiros que não têm. A aposentada Anita Maria Barbosa, de São Paulo (SP), pertence a esse grupo. Aos 71 anos, ela costuma ler as bulas dos medicamentos, mas não sabe como fará se a versão impressa for extinta. “Eu tenho bronquite asmástica, então sempre olho a bula para saber se posso tomar o remédio receitado pelo médico. E como não sei mexer direito na internet, vai ficar complicado se não tiver mais a bula de papel”, ela diz.
Remédios autorizados a ter somente a bula digital
- Amostras grátis;
- Medicamentos vendidos diretamente a hospitais, clínicas, ambulatórios e serviços de atenção domiciliar.
- Medicamentos vendidos sem prescrição médica em diferentes tipos de embalagem;
- Medicamentos vendidos por meio de programas do Governo, com a marca do Ministério da Saúde na embalagem.
Barbosa não é a única brasileira que tem dificuldade com a internet. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), em 2023, 22,4 milhões de pessoas não usavam a rede mundial de computadores no Brasil (12% da população). A maioria desses cidadãos (75,5%) não estudou ou não completou o Ensino Fundamental, e mais da metade são idosos. A pesquisa revelou, ainda, que o principal motivo para não acessar a Internet é não saber usar a tecnologia (resposta de 46% dos entrevistados). O Idec já tinha alertado sobre esse problema em 2021. A pesquisa “Barreiras e limitações no acesso à internet móvel e hábitos de uso e navegação na rede nas classes C, D e E”, feita pelo Instituto Locomotiva a pedido do Idec, aponta que o celular é o principal dispositivo utilizado pelas classes CDE (91%), mas que o pacote de internet dura, em média, somente 23 dias no mês. Assim, muitas pessoas dependeriam de Wi-Fi para acessar a bula eletrônica.
Para o Idec, há dois problemas paralelos. Um é a falta de letramento digital, ou seja, um enorme número de pessoas que têm dificuldade para usar tecnologias; e o outro são obstáculos ao acesso à internet, que podem estar relacionados com questões socioeconômicas, mas também de infraestrutura num país grande e diverso como o Brasil, com enormes desigualdades regionais, intraurbanas etc., além da própria qualidade da conexão. “Você ou um profissional de saúde pode estar no centro de São Paulo (SP) ou numa UBS na periferia e, no momento em que precisar acessar a bula digital, não conseguir”, exemplifica Andrietta, completando: “Isso ressalta a importância da bula impressa, que favorece o acesso qualificado à informação. A sua dispensa pode ampliar as desigualdades em saúde, porque grupos populacionais tradicionalmente mais vulneráveis e moradores de regiões com menos acesso à internet serão desfavorecidos”.
Preocupações do Idec
É importante deixar bem claro que o Idec não é contra as bulas digitais, apenas defende que elas sejam uma ferramenta adicional, não a única, a fim de facilitar o acesso de pessoas com deficiência às informações sobre medicamentos. Por isso, não concorda com a decisão da Anvisa de liberar que alguns medicamentos sejam comercializados apenas com a bula digital.
É importante lembrar que o uso incorreto ou abusivo de medicamentos é a principal causa de intoxicação no país, de acordo com dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A restrição do acesso de consumidores às bulas impressas não melhora este índice, pelo contrário, pode até piorá-lo. “Problemas de saúde pública podem ser agravados se as bulas impressas forem dispensadas. Porque ter as informações disponíveis em meios digitais não garante que a pessoa use os medicamentos corretamente. As evidências mostram que o documento impresso continua sendo fundamental para garantir a informação e a segurança do paciente, sobretudo num país com as características do Brasil”, afirma Andrietta. Essa é a primeira preocupação do Idec.
A segunda está relacionada ao armazenamento dos conteúdos digitais que serão disponibilizados aos consumidores. Segundo a Resolução 885, eles vão ficar sob responsabilidade dos fabricantes, e alguns conteúdos multimídia não precisarão de aprovação prévia da Anvisa. “Temos receio de como esse material vai ser disponibilizado e se a LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados] será respeitada. O ideal é que esse repositório fosse centralizado pela agência reguladora”, expressa Andrietta.
O CNS também viu a aprovação do projeto-piloto com bastante preocupação. “Em um cenário marcado pelos avanços tecnológicos, é vital equilibrar a modernidade com a acessibilidade. Manter a bula impressa de medicamentos emerge como uma prática inclusiva, vital e sensível às diferenças sociais e econômicas existentes no Brasil. Garantir que todos tenham acesso às informações necessárias para um uso seguro e eficaz de medicamentos é fundamental para promover a saúde pública e a justiça no país”, argumenta Melecchi.
Mudança positiva
Após muita pressão do Idec, o texto da Resolução incorporou algumas de suas preocupações. Por exemplo, ele determina que os pacientes e os profissionais de saúde tenham acesso à bula caso solicitem. “A embalagem pode não ter a bula impressa, mas se alguém pedir, a farmácia tem de oferecer. E a responsabilidade é do fabricante”, informa Andrietta.
O farmacêutico não pode dizer que não há uma versão impressa da bula. Contudo, a nova norma não aponta diretrizes ou punição caso isso aconteça. Barbosa, a aposentada que não vê com bons olhos a decisão da Anvisa, conta que uma vez pediu ao farmacêutico a bula de um remédio para gripe e recebeu uma pasta gigante. “Ele não me entregou a bula, pediu que eu a lesse na pasta”, ela lembra.
Outra mudança positiva no texto da Resolução foi a que obriga farmácias e outros estabelecimentos de saúde a colocarem, num lugar de fácil visualização, uma placa com os dizeres: “Estabelecimento tem bula impressa. Solicite ao nosso atendente”.
Aprovação polêmica
Além das críticas ao conteúdo da Resolução, o Idec também desaprova a forma inadequada como o processo regulatório foi conduzido, sem a Análise de Impacto Regulatório (AIR), ferramenta essencial que deve ser elaborada antes de uma resolução ou uma nova regulação ser aprovada. “É necessário aprofundar as discussões sobre o tema, possibilitando novas rodadas de participação social e incorporando as contribuições da sociedade civil, pois a proposta não tinha maturidade técnica suficiente para ser implementada”, opina Andrietta.
Desde março de 2024, quando foi realizada uma consulta pública – para a qual o Idec enviou as suas contribuições –, a Anvisa aprovou diferentes versões da minuta da Resolução. O grande problema é que a versão final aprovada foi alterada às vésperas da votação, contrariando as diretrizes de qualidade regulatória elaboradas pela própria Anvisa. “Lamentamos que o processo regulatório tenha sido conduzido dessa forma e que demandas legítimas da sociedade não tenham sido consideradas. A versão aprovada indica que o interesse econômico prevaleceu, agravando as desigualdades em saúde no país”, obeserva Andrietta.
O Idec segue acompanhando o caso e mobilizando órgãos e entidades para discutir o conteúdo da Resolução e a condução do processo regulatório, a fim de garantir os direitos das pessoas consumidoras e mitigar os impactos negativos para a população e o sistema de saúde.
Saiba mais
- As contribuições do Idec à Consulta Pública podem ser conferidas aqui - https://www.linkedin.com/posts/idecbr_contribui%C3%A7%C3%B5es-do-idec-pa...
- Explicamos tudo sobre as bulas digitais nesta nota - https://idec.org.br/dicas-e-direitos/o-que-e-bula-digital-entenda-o-que-...
- As recomendações do CNS para a Anvisa podem ser lidas aqui - https://conselho.saude.gov.br/images/Recomendacoes/2024/Reco021_-_Recome...
- Veja a Resolução 885/2024 aqui - https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-rdc-n-885-de-10-de-julho-de...