RESPEITO AOS IDOSOS
Em pleno século 21, pessoas idosas ainda são alvos frequentes de preconceito nas relações de consumo. Para o Idec, situação precisa mudar urgentemente.
Está no dicionário online da Academia Brasileira de Letras: etarismo é discriminação e preconceito baseados na idade, geralmente das gerações mais novas em relação às mais velhas. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), o termo se refere a estereótipos, preconceitos e discriminação direcionados às pessoas com base na idade que têm. A palavra tem alguns sinônimos, como ageísmo, idosismo, velhismo e idadismo. Este último é o preferido de Egídio Dórea, médico, professor e coordenador do programa USP 60+, da Universidade de São Paulo (saiba mais sobre ele no quadro abaixo). “É um termo mais fácil de ser entendido. Muitas pessoas não conhecem o termo ‘etária’, que deriva de faixa etária. E nós queremos que o conhecimento desse preconceito, que ainda é muito pouco discutido, atinja a população de uma forma muito mais ampla. Por isso, o nome é importante”, ele esclarece.
Iniciativa pioneira
A Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da Universidade de São Paulo criou em 1994 o projeto USP 60+. A ideia é oferecer a pessoas com mais de 60 anos, oportunidades para um aprendizado continuado, convívio com os mais jovens, participação social e melhora na qualidade de vida. Anualmente, são ofertadas, gratuitamente, cerca de 8 mil vagas distribuídas em centenas de atividades agrupadas em três grandes áreas: cultural, esportiva e grade curricular. Neste último caso, os alunos idosos cursam matérias de faculdades dos mais diversos segmentos, inclusive de Direito e Direito do Consumidor, junto com os estudantes jovens. Segundo o coordenador, Egídio Dórea, essa mistura de gerações é importantíssima no combate ao idadismo. “Porque esses meninos e meninas de 17, 18 anos, têm contato com pessoas de 70 que estão altamente produtivas e interessadas em aprender. Então, eles começam a questionar os estereótipos deles”, reforça.
Mais informações podem ser obtidas em https://prceu.usp.br/usp60/, pelo telefone (11) 3091-9183 ou no Anfiteatro Camargo Guarnieri, na Cidade Universitária da USP, em São Paulo (SP). As matrículas são feitas de acordo com o número de vagas e a ordem de inscrição.
Dórea, que é autor do livro Idadismo – um mal universal pouco percebido, explica que esse tipo de preconceito está por toda a parte e afeta a vida das pessoas das mais diversas formas, inclusive como consumidoras. E em um cenário em que a população está mais longeva, o problema é gritante. “O número de pessoas mais velhas nas propagandas não é condizente com a relevância demográfica, muito menos com a relevância econômica. E quando elas são retratadas em propagandas, elas estão ou numa posição secundária ou misturadas com pessoas mais jovens”, pontua o professor. Ele salienta, ainda, que quando um idoso está em papel de destaque, é em peças publicitárias de produtos tipicamente estereotipados, como medicamentos, fraldas geriátricas ou instituições de longa permanência. “Isso faz com que esses estereótipos se tornem cada vez mais fortalecidos. E aí fica muito difícil romper esse ciclo vicioso”, ele analisa.
Números impactantes
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2021, 14,7% da população brasileira era formada por gente com 60 anos ou mais. E em 2050 serão 68 milhões de idosos no país, segundo estimativas da OMS. Hoje, o público idoso é responsável por cerca de 20% do consumo nacional, de acordo com o Sebrae, ultrapassando R$ 1,6 trilhões, de acordo com o Instituto Locomotiva. Só que tudo isso não se reflete no respeito adequado a esses consumidores.
“Ainda estamos devendo a esse grande contingente de brasileiros idosos um atendimento mais amigável, mais respeitoso e mais digno”, declara Gisele Grangeiro Castro, professora de Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e pesquisadora em envelhecimento e longevidade. Para o professor Dórea, o motivo para o desrespeito é bem conhecido. “Os diretores, CEOs e gerentes sabem desses números. Só que o preconceito faz com que a razão fique enfraquecida”, ele afirma.
Exemplo negativo
Um setor bastante hostil para o consumidor idoso é o de produtos e serviços ligados à saúde. Lucas Andrietta, coordenador do Programa de Saúde do Idec, explica que há muitas demandas específicas desse público, que é mais vulnerável em muitos aspectos. “Alguns problemas que chegam até nós são relacionados ao envelhecimento, como diversas práticas abusivas praticadas por operadoras de planos de saúde, cancelamentos unilaterais de contratos, negativas de cobertura e reajustes exorbitantes”, exemplifica.
Mas os desafios vão além. O aposentado Carlos Ernesto Lohmann, de Curitiba (PR), está indignado com o seu plano. Aos 88 anos, ele reclama que apesar de estar com todos os pagamentos em dia, sofre para conseguir fazer consultas, exames e procedimentos. “Porque agora eu preciso ter um smartphone e gerar pelo aplicativo um itoken para mostrar à atendente, para ela liberar no plano”, desabafa o aposentado, que, por conta de um problema de visão, tem dificuldade para operar os aparelhos mais modernos. “Agora eles implantam [novas tecnologias] de uma hora pra outra. Passo nervoso pela discriminação”, lamenta.
Lohmann enviou um email para seu convênio médico cobrando uma solução. “Eu tenho um contrato de adesão, e ele não prevê que eu sou obrigado a ter smartphone. Eu não me deixo dobrar por causa disso aí, não. Eu sou bem conhecedor dos meus direitos”, orgulha-se. Segundo ele, a operadora respondeu que a medida não tem volta, até por questões de segurança. A filha, Lilian Lohmann, que ajuda os pais nesses entraves do dia a dia, diz que vai ter de arrumar tempo para ir pessoalmente à empresa. “Mas pela resposta que meu pai recebeu, não tenho muita esperança, não. Acho que tinha de haver um plano B para atender quem não tem ou não consegue mexer no smartphone, como muitos idosos”, comenta.
Segundo Andrietta, do Idec, ninguém pode ser impedido de acessar recursos assistenciais por questões de ordem administrativa ou burocrática. A operadora deve adaptar o procedimento de forma a viabilizar o atendimento às necessidades de cada consumidor. “Criar obstáculos para a autorização ou liberação de atendimentos pode caracterizar uma prática abusiva e discriminatória, vedada pelo artigo 39, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor [CDC]”, ele informa, e complementa: “As pessoas podem recorrer ao canal de atendimento da ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] mais adequado às suas necessidades: telefone, presencial, e-mail ou carta”.
Alvos de golpes
Outro setor que costuma dar dor de cabeça para os consumidores mais velhos é o financeiro. Segundo dados da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), os golpes contra idosos aumentaram 60% desde o início da pandemia do coronavírus. A economista Ione Amorim, consultora do Programa de Serviços Financeiros do Idec, explica que o isolamento imposto pela pandemia aumentou a demanda pelo uso de serviços em plataformas digitais, acelerando um processo que já estava em evolução, mas reduziu o tempo de adaptação aos novos meios eletrônicos, afetando fortemente os consumidores idosos. “As novidades tecnológicas, como aplicativos móveis de bancos e o Pix, facilitaram e agilizaram as transações. Mas também trouxeram insegurança para os usuários, como golpes e fraudes, com grande impacto na população idosa”, ela pontua.
Amorim alerta que, infelizmente, os golpes nunca morrem, eles se adaptam ao ambiente digital. Trapaças antigas, como a do bilhete premiado, continuam fazendo vítimas, enquanto novos métodos, como pedidos de Pix por falsos familiares, falsas centrais telefônicas dos bancos, empréstimo consignado não solicitado, entre outros tipos de fraudes, brotam quase que diariamente causando prejuízos financeiros. “Não se pode responsabilizar o idoso por ter sido vítima de um golpe. Quem oferece serviços em plataformas virtuais não pode pensar somente no público jovem. Toda a sociedade tem que ser representada. Os fornecedores de serviço devem desenvolver ferramentas que alcancem todos os perfis de consumidores”, declara a economista do Idec.
De qualquer forma, o idoso (ou qualquer pessoa vítima de um golpe no sistema bancário) pode e deve ser amparado legalmente. “A segurança do banco tem que evoluir na mesma velocidade com que esses golpistas e exploradores atuam. Conforme o artigo 14 do CDC, é dever e obrigação do fornecedor garantir a segurança dos usuários de produtos ou serviços ofertados”, informa Amorim. Uma vez que tenha se dado conta de que caiu em uma cilada, o consumidor deve comunicar o banco imediatamente e abrir um pedido de contestação da transação. Além disso, é importante juntar o máximo de provas possíveis. “Pequenas informações; um print da tela; o horário em que sofreu o golpe; imagens da câmera do prédio, se for uma entrega que deu problema; a página do Instagram, do Whatsapp etc. O banco deve investigar, reconhecer falhas e admitir que a pessoa tem direitos e que foi vítima do golpe”, salienta.
Outra dica valiosa é que, nem sempre, o melhor caminho é procurar ajuda de forma presencial, nas agências bancárias. O Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) é a ferramenta ideal, porque, por meio dela, o consumidor consegue ter o registro de tudo o que foi falado, e isso pode ser primordial para resolver o caso. “Os bancos são obrigados a oferecer o SAC e a ouvidoria. Além disso, pelo Decreto do SAC [nº 11.034/2022], os bancos são obrigados a disponibilizar atendimento humano, número de protocolo e direito de resposta em até 10 dias”, informa Amorim. Se o SAC não resolver, o caso pode ir para a esfera superior, da ouvidoria. Se não resolver, recorra ao Banco Central ou à plataforma Consumidor gov.br. Em último caso, procure a Justiça.
Preconceitos corriqueiros
Existem outras diversas situações de idadismo nas relações de consumo que são bastante triviais. “Por exemplo, uma mulher mais velha entra numa loja para procurar um vestido, e a vendedora pergunta: ‘É pra sua filha?’ ou ‘É pra sua neta?’, jamais pensando que algum vestido daquela loja poderia vestir uma mulher mais velha. Outro clássico são os supermercados, que não oferecem um banquinho para as pessoas idosas repousarem um pouco e descansarem as pernas depois de um período de compras mais extenso”, lembra Castro. A docente da ESPM pondera que para esses casos, as soluções não são muitos complexas. “São pequenos ajustes nos pontos de venda que não custam nada e poderiam ser feitos pra melhorar a experiência de consumo de pessoas idosas naqueles locais”. Dórea, da USP, vai na mesma linha. “São medidas que beneficiariam não somente a população mais velha, mas todos os consumidores. Porque uma cidade que é amiga do idoso, é amiga também da criança, da pessoa que tem uma deficiência física, é amiga de pessoas de forma geral”, acredita ele.
Castro também reforça a importância do preparo dos colaboradores das empresas dos mais diversos segmentos para saber lidar com essa massa crescente de consumidores que já passaram dos 60 anos. “Um funcionário ou uma funcionária que destrata um cliente em função do etarismo, precisa ser rapidamente retreinado ou eventualmente substituído. Porque isso depõe muito gravemente contra a empresa que faz vista grossa pra esse tipo de situação”, ela opina.
Mudanças urgentes
O etarismo nas relações de consumo está entre as pautas de trabalho do Idec. Amorim, do programa de Serviços Financeiros, tem participado de audiências públicas com foco nesse tema. “É preciso fortalecer a legislação e garantir o acesso dos idosos ao ambiente digital de forma segura, respeitando suas limitações e garantindo seus direitos na utilizaçao de serviços financeiros. Para isso, necessitamos de políticas públicas de inclusão financeira e digital mais efetivas e uma política de crédito mais responsável”, defende.
Para Castro, investir em iniciativas contra o preconceito e que auxíliem as pessoas idosas nos mais variados serviços é latente. “Não só é importante do ponto de vista da responsabilidade social das corporações como também no aspecto dos direitos humanos. É importante que a gente viva numa sociedade que seja inclusiva para todas as idades”, conclui.