1 milhão de vidas no escuro
Quem vive em grandes cidades pode até já ter passado horas ou alguns dias sem luz, mas não imagina o que é viver constantemente sem ela. Infelizmente, muitas comunidades quilombolas, extrativistas e indígenas da Amazônia conhecem bem esse desafio. Viver sem energia é não poder conservar e armazenar alimentos, é lidar com salas de aula quentes, é perder oportunidades de trabalho e de geração de renda. A ausência de luz não se limita à escuridão física, é a exclusão do mundo conectado, uma injustiça que amplia a vulnerabilidade das pessoas e a sensação de desamparo.
E se a gente te contasse que há mais de uma década você tem contribuído financeiramente para viabilizar programas sociais em prol do acesso à energia em todo o território nacional? Sim, quando você paga a sua conta, uma pequena parte do valor é direcionada para que as distribuidoras levem energia para quem ainda não tem, por meio do Programa Luz para Todos. O problema é que o Governo Federal e as distribuidoras falharam em cumprir com essa responsabilidade na Amazônia Legal. Conheça nossa campanha contra esse descaso em https://idec.org.br/amazonia-sem-energia.
Para entender melhor as dificuldades que essas comunidades amazônicas enfrentam e quais os principais desafios para que a realidade delas mude, conversamos com o extrativista José Ivanildo Gama Brilhante.
JOSÉ IVANILDO GAMA BRILHANTE é graduado em Etnodesenvolvimento pela Universidade Federal do Pará e atua como articulador social no Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).
Quem vive em grandes cidades não sabe o que é viver constantemente sem energia elétrica. Quais as principais dificuldades que as pessoas que vivem sem luz em áreas remotas na Amazônia enfrentam no seu dia a dia?
José Ivanildo Gama Brilhante: Viver sem energia é viver numa outra conexão. O ritmo de vida é outro, o acesso à comunicação é diferente, a educação é reduzida, existe dificuldade de acesso à saúde e desperdício de alimentos, porque não tem como conservá-los. A falta de energia pode causar fome, porque não dá para armazenar alimento. A falta de energia coloca as pessoas em vulnerabilidade econômica.
Não ter energia é não poder jantar à noite, tem que jantar de dia ou usar uma luz que não ilumina o suficiente. Ou comer no escuro se for comer à noite. Não ter energia é não poder estudar à distância, tem de sair do território para estudar. Não ter energia é não poder fazer uma pesquisa na rede mundial de computação [Internet]. Não ter energia é ser invisível em seu próprio município, em seu próprio estado, em seu próprio país. Não ter energia é ter uma vida na escuridão (e as crianças podem sentir muito medo!).
Não ter energia é ser vulnerável economicamente e comercialmente. É uma exclusão de serviços: não tem saneamento (não dá para ter saneamento sem energia) e o acesso à água é um desafio. Se tivesse uma bomba, a água seria puxada por ela. Mas é preciso encher baldes com água. E por ser um trabalho doméstico, acaba sobrando para a mulher, devido ao machismo na Amazônia.
Precisamos de energia para produzir, porque com energia apenas nos domicílios não dá para aproveitar as polpas das frutas que a natureza nos dá. Ter energia fotovoltaica revolucionária para domicílios é importante, mas não resolve o atraso no desenvolvimento.
Quais são essas comunidades que ainda não têm energia? Quem vive nelas?
JIGB: A Ilha de Marajó é um dos lugares mais ricos do mundo por conta da sua sociodiversidade, mas também há muita pobreza, porque ela está desassistida de energia. O Baixo Tocantins tem uma hidrelétrica, mas as comunidades rurais não tem energia. No Baixo e Alto Xingu, as comunidades não têm energia. Os municípios de Almeirim, Prainha e as áreas rurais também não têm.
Nessas comunidades vivem populações indígenas, mas também populações tradicionais não indígenas, que chamamos de populações extrativistas ou ribeirinhas.
Como é o dia a dia dessas comunidades? Como as pessoas se viram para conseguir o mínimo necessário para viver sem luz?
JIGB: A jornada de trabalho é difícil. Elas trabalham o dia inteiro e à noite precisam usar a lanterna para pescar, porque o trabalho do dia a dia não é suficiente para comprar comida para a família. Essas famílias vivem às margens da floresta e do rio. Sua jornada de trabalho está associada à lua, às marés, ao tempo bom para pescar e caçar, à época boa para colher madeira e tirar a palha da cobertura das casas, e isso depende de um conhecimento ancestral. Ultimamente, elas têm vendido açaí, que tem melhorado a vida delas.
Você vive numa área sem energia?
JIGB: A casa dos meus pais fica numa área sem energia, mas como sou militante social, eu vivo viajando. Tem dia que estou em uma cidade que tem energia, mas quando estou na casa deles não tem. Lá, eles têm um grupo gerador só para acompanhar o jantar, porque a energia lá é muito cara, porque vem de motor a diesel, de gerador.
Mas eu vivi a vida toda sem energia. Eu tive de sair para estudar, senão eu não estudava.
Você poderia compartilhar como é a vida dos seus pais sem energia?
JIGB: Meus pais vivem na floresta, na Ilha do Gurupaí [ou Ilha de São Salvador], onde é realizada produção agroextrativista, mas basicamente extrativista, pesca artesanal. Como não tem energia, eles não podem pescar muito peixe. Mas pode ter dia que você não consegue pescar e, então, pode ficar com fome. Por isso, a energia pode ser uma estratégia de combate à fome. E como estratégia de combate à fome, construímos uma estrutura para ser uma poupança de alimentos. É um açude onde colocamos uma variedade de peixes de rio ou de cativeiro vivos e guardamos eles para o período difícil, que é no inverno, quando a água sobe e tem escassez de alimentos. Quem não usa essa estratégia passa fome sem energia. Nossos vizinhos a gente ajuda com os peixes dessa “poupança”.
Outra coisa: meus pais usam lamparina a querosene, que fica acesa à noite. Quando chega de manhã, a narina está que nem uma descarga de motor, cheia de fumaça. Essa fumaça vai pro pulmão, como se a gente fosse fumante. É muito ruim para a saúde.
O que precisa ser feito para que as comunidades da Amazônia tenham energia?
JIGB: Continuar os programas [do Governo] e colocar essas comunidades como prioridade. O problema é que os programas usam empresas privadas, que querem atender as grandes vilas, locais onde elas podem ganhar mais dinheiro. Elas têm interesse no dinheiro, não em atender as pessoas. Precisava que o programa fosse coordenado socialmente e executado dentro das comunidades, com orçamento público. Isso levaria a uma priorização dos povos que historicamente foram invisibilizados e negados. Acho que seria nobre para o nosso país reconhecer o serviço ambiental que a gente presta voluntariamente para o mundo.
E o que já foi feito, mas não deu certo?
JIGB: Tem muitas iniciativas que levam energia pela floresta sem nenhuma licença. A gente chama de “tigrão”, porque é tão grande que não é um gato. Já morreu muita gente, é perigoso. Eu não colocaria como uma iniciativa exitosa, apesar de terem conseguido energia. Isso é feito por intermediários que conhecem o sistema e que fazem uso político disso. Eles dizem: “Eu que levei a luz pra vocês”. Mas não levou de graça, cada um deu R$ 500, R$ 1 mil.
Quais os principais desafios para que a energia chegue às comunidades amazônicas de uma forma legal, não perigosa?
JIGB: Eu defendo que é preciso envolver a comunidade e os movimentos sociais, para ganhar escala. Essa é uma estratégia mais exitosa, fazendo convênios com os segmentos sociais. É importante ter uma rede grande de boas gestoras que distribua a várias cooperativas e associações para implementar a política. Mas se botar o dinheiro numa empresa privada, ela vai fazer onde dá lucro para ela, e as comunidades que mais precisam vão continuar desassistidas.
Você conhece alguma comunidade que foi atendida pelos programas Luz para Todos e Mais Luz para a Amazônia? As pessoas estão conseguindo pagar a conta de luz?
JIGB: Algumas comunidades de terra firme e algumas comunidades rurais que interligam as estradas foram atendidas por esses programas.
Na Reserva Verde para Sempre, quase toda a reserva recebeu placas solares, e é o município que envia os boletos. Mas como não tem internet na região, as pessoas têm recebido a conta de luz muito tarde, quando já está vencida. Tem sido um gargalo essa questão do pagamento.
Quais os principais desafios que as políticas públicas enfrentam na região amazônica?
JIGB: As políticas públicas são formuladas de forma universal. Quando chega no diferente, ela encontra dificuldade de implementação. As políticas públicas precisam ser feitas considerando a diversidade plural amazônica, feitas com os amazônidas, desde a formulação até a execução. Precisamos superar essa desigualdade.
Você avalia que o Governo e as distribuidoras de energia têm canais adequados para escutar as demandas das comunidades amazônicas?
JIGB: O Governo tem boas intenções, principalmente o atual, de levar energia para essas comunidades, mas as empresas privadas que financiam isso são um desafio, porque os canais deles não levam em conta as demandas sociais e as reivindicações pessoais, não respeitam a participação social. O Governo respeita na instância dos ministérios, do desenvolvimento social, do desenvolvimento agrário. Mas a executora não conhece as comunidades, não tem abertura para ouvi-las.
As comunidades são previamente consultadas sobre quanta energia precisam para desenvolver suas atividades produtivas?
JIGB: Não. Por isso a gente participa de um grupo chamado Energia e Comunidade [do qual o Idec também faz parte], que tem nos permitido, à luz da rebeldia, tentar propor ao Governo que nos escute e nos atenda. Mas não existe um canal fácil para falar com as empresas.
Há interesses em não levar energia para essas comunidades mais remotas? Ou é apenas a questão do investimento que dificulta esse acesso?
JIGB: Não, não há interesse das distribuidoras quando elas não visualizam grande rendimento econômico. Elas fazem quando são obrigadas pelo Governo.
O Governo brasileiro não pode ficar amarrado a uma única empresa privada para levar às comunidades um serviço público. Democratizar o acesso é democratizar a não privatização do serviço. O Estado brasileiro tinha de ser o dono da oferta desse serviço ou, se fosse privatizar, que não fosse para um único grupo. O Pará, por exemplo, que é um estado grande, fica à mercê de um grupo que só pensa em dinheiro e não pensa socialmente. Tem que ter canais para privatizar e financiar cooperativas e associações. E precisa também de um debate mais amplo com a sociedade. Nossas florestas precisam ser vistas e atendidas.