Marco Legal de Garantias
Marco Legal de Garantias, que regula empréstimos, permite que imóvel e outros bens sirvam de garantia em diversas operações de crédito. Idec alerta para os riscos.
Nada é tão ruim que não possa piorar. No Brasil, a modalidade de empréstimo bancário chamado de home equity já permitia que as pessoas oferecessem um imóvel, um automóvel e até um telefone celular como garantia para conseguir juros mais baixos (pelo menos na teoria). Mas havia um limite: só era autorizado comprometer até 60% do valor do imóvel. Ou seja, se ele custasse R$ 1 milhão, a garantia poderia chegar somente a R$ 600 mil. O problema é: se o consumidor deixar de pagar a dívida, o banco pode tomar o bem. “Tem muita gente perdendo casa? Tem. Tem muita gente se dando mal porque não entende como o crédito com garantia de imóvel funciona? Tem”, diz Ione Amorim, economista e coordenadora do Programa de Serviços Financeiros do Idec.
No entanto, desde 31 de outubro de 2023, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 14.711, mais conhecida como Marco Legal de Garantias, é possível usar o mesmo bem como garantia em diversos empréstimos simultaneamente, com instituições diferentes. Assim, a pessoa que tem, por exemplo, um imóvel que vale R$ 1 milhão, pode pegar um empréstimo de R$ 300 mil com um banco, de R$ 200 mil com outro e de R$ 100 mil com outro. E por que isso é ruim? “Porque o sistema financeiro está protegido, já que os bancos e demais instituições de crédito criaram uma política muito robusta de retomada do bem dado em garantia com a securitização, distribuindo os riscos nas operações internas entre bancos, cartórios de imóveis, empresas de cobrança e seguradoras”, responde Amorim. Ou seja, todo o risco é transferido para o consumidor, que é a parte mais vulnerável. “A pessoa pode ter um imóvel de R$ 1 milhão, que foi herdado, e não ter condições de pagar um crédito de R$ 500 mil, porque a renda não é compatível”, ela pondera.
RISCO DE CRISE
O Idec atuou ativamente junto ao Congresso para que o Projeto de Lei (PL) no 4.188/2021, que propunha o Marco de Garantias, não avançasse, mas a lei foi aprovada. “Qualquer governo que entrasse iria aprovar, porque os bancos estavam pressionando, alegando que o potencial de crédito poderia ser expandido com base nas garantias”, comenta a economista. Para ela, a flexibilização proposta pela nova lei pode se converter numa crise, com base em múltiplas operações de crédito com o mesmo bem em garantia, como ocorreu nos Estados Unidos em 2008. “Alguns especialistas dizem que é exagerado comparar a situação do Brasil com a dos EUA, mas não é. A crise do subprime foi causada por esse tipo de prática: as pessoas colocavam seu imóvel como garantia em vários empréstimos e quando perdiam a capacidade de pagamento, perdiam também o bem”, afirma Amorim. A professora Maria Paula Bertran, da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP), concorda e reforça que a ideia de que o aumento do crédito, apoiado em mais garantia aos credores, é uma coisa boa é um paradigma teórico muito arraigado na cultura brasileira, mas teoricamente ultrapassado. “O crédito pode ser bom. Mas o crédito pode ser péssimo. Construímos a ideia de que se créditos forem oferecidos à população, as pessoas estudarão mais, preparar-se-ão, empreenderão, farão a economia crescer. Na verdade, desde a crise de 2008 nos EUA, sabe-se que o aumento coletivo do endividamento da população pode exaurir a capacidade coletiva das famílias de manter a capacidade de consumo. De forma cíclica, o aumento do endividamento estimula o consumo para, logo em seguida, inviabilizá-lo”, ela argumenta.
MUNDO IDEAL X MUNDO REAL
Para Bertran, da FDRP-USP, no mundo ideal, os consumidores seriam capazes de avaliar os riscos e tomariam empréstimos com garantia imobiliária apenas em circunstâncias planejadas e controladas. Ela dá como exemplo um casal empregado que teve um filho. Um dos cônjuges planeja parar de trabalhar durante os primeiros meses de nascimento da criança, para cuidar dela. Todavia, sabe que terá recolocação profissional garantida em algum tempo. Com o dinheiro do empréstimo, suprirá as despesas com o (a) filho (a) recém-nascido (a), e quando voltar a trabalhar terá recursos para pagar a dívida. “Empréstimos com garantia imobiliária foram pensados para esse tipo de situação. Mas essa não é a realidade. Temos uma população muito vulnerável e ofertantes de crédito muito agressivos. É provável que a garantia venha a atender situações de impulso, como compras com cartão de crédito, por exemplo. Outra possibilidade que me aflige é a substituição de dívidas sem garantia imobiliária por dívidas com garantia. Alguns agentes financeiros serão muito hábeis em oferecer essa troca”, pontua Bertran.
O professor universitário aposentado Rubens Adorno, que é associado do Idec, quase perdeu a casa onde morava em São Paulo (SP), seu único imóvel. Ele tinha uma série de empréstimos, pois nunca cuidou muito bem de seu dinheiro. Em 2014, alguém lhe contou que a Caixa Econômica Federal fornecia créditos com juros mais baixos tomando um imóvel como garantia. “Decidi pegar esse empréstimo para pagar todos os outros que eu tinha. Assim, eu ficaria com apenas uma dívida. Mas minha ideia não deu certo, porque a Caixa demorou quatro meses para depositar o dinheiro na minha conta. E quando recebi, ele não cobria mais 100% das minhas dívidas, apenas 70%. Ou seja, ele se tornou mais um empréstimo e me deixou sem saída”, ele relata, lembrando que ficou com medo de dar a casa como garantia, mas acreditava que ia dar tudo certo. Mas quase não deu. Adorno só não perdeu o imóvel, porque o Idec o ajudou a resolver a questão (a história dele foi contada no documentário No caminho do superendividamento). Para Bertran, a melhor opção para quem quer pagar uma dívida é vender o imóvel pelo melhor preço possível e, com o dinheiro, quitar o débito. “Esse procedimento tende a ser melhor do que dar o imóvel em garantia e correr o risco de perdê-lo”, ela assegura.
O Idec e a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) atuaram junto aos parlamentares durante a tramitação do PL nº 4.188/2021 em defesa do bem único de família, protegendo o direito à moradia e afastando o risco de perder a casa própria. Assim, uma conquista das entidades de defesa dos consumidores foi que no texto final do novo Marco Legal de Garantias não é mais permitido que o tomador de crédito dê seu único imóvel como garantia. Mas com isso, os consumidores que tomaram crédito com garantia antes da lei ser promulgada continuam correndo risco de perder o bem.
MAIS MAL DO QUE BEM
Sim, existem situações em que dar o imóvel como garantia para conseguir um empréstimo pode ser interessante. Por exemplo, você é um lojista, tem um conjunto comercial num prédio e precisa ampliar o seu negócio. Você pode dar o seu imóvel como garantia, pois quanto mais ampliar a sua empresa, maior será o retorno financeiro e a capacidade de pagar o empréstimo. O mesmo não acontece com uma pessoa física assalariada. Não adianta ela pegar mais crédito se ela não conseguir aumentar a renda.
Para Bertran, é positivo que os 30% da população que não têm dívidas possam se beneficiar da nova lei, tomando empréstimos com juros menores. “O problema é que 70% da população já está endividada. A longo prazo, acredito que a lei possa fragilizar muito o patrimônio imobiliário das famílias”, ela alerta.
Amorim adverte que, embora haja promessa de juros reduzidos, os riscos são muito altos, uma vez que os mecanismos para a instituição financeira tomar o bem dado como garantia (casa, carro, moto, celular, joias etc.) foram desburocratizados. “Não é mais necessária uma ação judicial, basta enviar uma notificação ao devedor”, ela informa, e finaliza: “Os consumidores precisam conhecer e entender os perigos que correm ao dar seus bens como garantia. Por exemplo, se ficar um mês sem pagar, já pode perder a casa. E tem mais, se um imóvel for leiloado a um valor abaixo do que o da dívida, a pessoa continua devendo. E sem casa”.
Saiba mais
Documentário No caminho do superendividamento: https://bit.ly/doc-superendividamento