Desenrola Brasil
Desenrola Brasil, programa do Governo Federal para renegociação de dívidas, é confuso e não traz solução real e definitiva para consumidores endividados.
A psicóloga M.R* (*A entrevistada pediu para nāo divulgarmos seu nome), de Porto Alegre (RS), tem uma dívida de R$ 9 mil com um banco por conta de uma série de erros e cobranças indevidas. O problema começou em 2019, e durante a pandemia ela foi pessoalmente à agência para tentar resolver o imbróglio, mas não obteve sucesso. Este ano, ela soube do Programa Desenrola Brasil, do Governo Federal, e mesmo com a consciência tranquila de que não deve, resolveu ir atrás para evitar mais burocracia e tentar facilitar o processo para limpar o nome sem ter de recorrer à Justiça. "Mas na internet, quando pesquiso, aparece um monte de links patrocinados de bancos, então desisti. Como estou com uma dívida por conta de um erro de um banco, fico com receio. E também achei tudo muito confuso", ela conta.
Entender o Desenrola Brasil não é fácil mesmo. Anunciado em maio pelo Ministério da Fazenda, o programa foi criado por meio de uma Medida Provisória (MP nº 1.176) que deveria ter sido votada na Câmara dos Deputados, mas isso não aconteceu. Às vésperas de perder a validade, a MP passou por uma votação simbólica no Senado, em 2 de outubro. O texto do Desenrola Brasil foi então incorporado ao PL nº 2.685, que seguiu para a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O Desenrola Brasil foi apresentado como uma grande oportunidade para que cerca de 70 milhões de brasileiros com dívidas contraídas entre 1º de janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2022 pudessem limpar seus nomes. Mas entender como ele funciona e todo o processo no qual está envolvido pode dar um nó na cabeça de quem busca sair da lista de negativados. Para a coordenadora do programa de Serviços Financeiros do Idec, Ione Amorim, o Desenrola é, na verdade, bastante enrolado. "Esse programa está bem confuso. São muitas regras e diferentes direcionamentos. Foi e está sendo difícil para os consumidores", ela critica.
DESENROLANDO O DESENROLA
O público alvo do programa foi dividido em duas faixas. A Faixa 1 é voltada para os cidadãos com renda de até dois salários mínimos ou inscritos no CadÚnico e que tenham dívidas de até R$ 5 mil em empresas variadas. De acordo com o Governo, são cerca de 43 milhões de pessoas nessa situação, com uma dívida total estimada em torno de R$ 50 bilhões. Para esse grupo, o serviço começou a ser disponibilizado em 9 de outubro.
Para entrar na Faixa 1, o procedimento é online. A pessoa precisa se cadastrar no site ou aplicativo Gov.br, com certificação prata ou ouro, uma espécie de ranking baseado em uma série de procedimentos e apresentações de documentos. Segundo o economista André Caxeiro, isso pode ser um dificultador, pois nem toda a população está conectada ou tem conhecimentos para atingir esse ranqueamento. "Porém, o ambiente digital tem muitos golpes, e essa burocracia é, infelizmente, necessária para garantir uma transação segura", pondera ele. Só que esse cuidado com a segurança pode, na prática, ser uma barreira para o consumidor. "Pessoas que não possuem familiaridade com a internet podem ter graves dificuldades para o registro e também para decidir sozinhas qual proposta devem ou não aceitar", argumenta Amorim. Caixeiro tem a mesma linha de pensamento: "O modelo adotado não facilita para o cidadão. Entretanto, é importante que os interessados tenham acesso à informação confiável e de fontes oficiais. Na dúvida, ele deve conversar com seu gerente ou com o responsável pela sua dívida dentro da instituição credora", ressalta.
A Faixa 2 está habilitada desde o dia 17 de julho e segue em curso. Ela é voltada para pessoas físicas com renda de dois salários mínimos até R$ 20 mil por mês e dívidas sem limite de valor. Neste caso, os interessados devem tentar negociar diretamente com a instituição, utilizando as possibilidades oferecidas pelo Desenrola Brasil, sem a necessidade de cadastro no site ou aplicativo Gov.br.
Os beneficiados da Faixa 1 podem quitar os seus débitos à vista ou por financiamento bancário, em até 60 meses sem entrada, com taxa de juros de 1,99% ao mês e primeira parcela após 30 dias. A parcela mínima é de R$ 50. O Governo divulgou que o desconto médio é de 83%. Já para a Faixa 2, o prazo para quitação é de 12 meses.
VANTAGEM PARA OS CREDORES
Além dos bancos, empresas de diversas áreas também participam do programa na etapa iniciada em outubro. Elas se cadastraram em uma espécie de leilão, e saíram vencedoras as que ofereceram os melhores descontos. E isso deu a elas a oportunidade de garantir o recebimento dos valores devidos, com os descontos acordados com os clientes inadimplentes.
O interesse em integrar o Desenrola se dá porque o Fundo Garantidor de Operações do Tesouro Nacional (FGO) vai assegurar os pagamentos. Isso significa que, se por alguma razão os clientes não honrarem os seus compromissos, o Governo pagará. O FGO reservou R$ 7,5 bilhões como garantia. "Mas essas empresas precisam se comprometer a excluir os clientes que cumprirem a negociação do cadastro negativo", informa Amorim.
CARTÃO DE CRÉDITO COMO PRIORIDADE
Para o Idec, qualquer programa sobre endividamento precisa priorizar a questão do cartão de crédito. De acordo com um estudo da Confederação Nacional de Dirigentes e Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), em parceria com a Offerwise Pesquisas, divulgado no final de junho, o cartão de crédito responde por 31% das contas em atraso.
Em julho, o Idec manifestou sua preocupação com esse método de pagamento, ponderando que seria necessário a fixação de um teto para a taxa de juros do rotativo. No projeto que passou pelo Senado e foi enviado de volta ao Executivo para finalmente virar lei, foi definido que anualmente o Conselho Monetário Nacional vai fixar os limites para as taxas de juros junto aos emissores de cartão. Porém, já está estabelecido que a dívida pode, no máximo, dobrar no período de 12 meses. Para o Idec, essa mudança é bem importante, mas ainda não é a ideal.
O melhor caminho seria que esses juros tivessem um limite de acordo com a faixa de renda da população. Ou seja, quem ganha menos paga juros menores do que quem possui mais recursos financeiros.
UM CAMINHO PARA DESENROLAR
O Desenrola Brasil prevê um curso de Educação Financeira para os participantes. Porém, Amorim, do Idec, pontua que nem o programa do Governo Federal nem a Lei do Superendividamento, de 2021, discutem a capacidade de pagamento e a análise humana da situação dos negativados, o que é fundamental. "Determinou-se os critérios para os acordos, mas não se aprofundou no processo de tratamento e conscientização dos consumidores sobre a gestão financeira e as consequências do uso do crédito", ela critica.
A coordenadora do programa de Serviços Financeiros do Idec ainda destaca que é primordial a definição de um órgão responsável pela gestão do superendividamento, que acompanhe negociações e acordos, e monitore os resultados. "Se nenhum desses critérios forem definidos, o programa Desenrola será apenas mais um mutirão de renegociação como os outros que existem no Brasil", ela declara.
Amorim entende que uma política imediatista sobre endividamento até consegue reabilitar o devedor para o mercado de crédito, mas sem focar em concessões de empréstimos irresponsáveis e educação financeira eficiente, o resultado será um novo exército de "enrolados". "Se tudo continuar do jeito que está, vamos ficar, mais uma vez, apenas enxugando gelo", ela conclui.