Alimentação saudável
O Brasil pós-pandemia é um país com muitos ansiosos, deprimidos, sedentários, obesos, consumidores de álcool e tabaco em excesso e viciados em telas, especialmente os mais jovens, que já estão sendo diagnosticados com diabetes, hipertensão, colesterol entre outras Doenças Crônicas não Transmissíveis (DCNTs). Isso porque os hábitos dos brasileiros – especialmente na faixa etária de 18 a 24 anos – piorou muito durante a pandemia. Essa é a conclusão do Covitel, inquérito telefônico que substituiu o Vigitel – realizado pelo Ministério da Saúde – em 2022 e 2023, e que tem como objetivo monitorar os fatores de risco para doenças crônicas no Brasil.
A pesquisa foi realizada entre 2 de janeiro e 15 de abril pela organização Vital Strategies Brasil, em parceria com a Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Umane. Foram ouvidas 9 mil pessoas nas cinco regiões do país.
Conversamos, pelo Zoom, com Luciana Monteiro Vasconcelos Sardinha, gerente sênior de DCNT da Vital Strategies e uma das coordenadoras do Covitel, que nos contou mais sobre o estudo. Confira.
LUCIANA MONTEIRO VASCONCELOS SARDINHA é nutricionista, mestre em Saúde Pública e doutora em Epidemiologia, tudo pela Universidade de Brasília (UnB). Atua há quase 30 anos com políticas públicas relacionadas a Doenças Crônicas não Transmissíveis (DCNTs), alimentação e nutrição. Foi Coordenadora Geral Nacional de Doenças e Agravos não Transmissíveis do Ministério da Saúde e consultora para doenças crônicas não transmissíveis do escritório brasileiro da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Hoje, é gerente sênior de DCNT da organização global de saúde pública Vital Strategies.
O que é o Covitel? Qual é o objetivo da pesquisa?
Luciana Monteiro Vasconcelos Sardinha: O Covitel é um inquérito por telefone. Fizemos entrevistas no Brasil inteiro, nas cinco regiões, com o objetivo de conhecer os fatores de risco para as Doenças Crônicas não Transmissíveis (DCNTs) na população com mais de 18 anos. Estamos saindo de uma pandemia e queríamos entender como o estilo de vida afetou e está afetando a prática de atividades físicas, a alimentação, o consumo de álcool e tabaco, a saúde mental etc.
O Covitel é muito semelhante ao Vigitel. Porque ele foi criado em 2022 e por que é anual?
LMVS: Pensamos em fazer o Covitel no ano passado porque o Ministério da Saúde não tinha conseguido finalizar o processo licitatório para realizar o Vigitel. Achamos que era importante nos unir para colher informações sobre os fatores de risco para as DCNTs.
A ideia não era repetir [o inquérito telefônico] este ano, mas com a transição de governo, o Ministério da Saúde (MS) ainda não tinha sinalizado claramente se faria ou não o Vigitel. Para não perdermos a continuidade do levantamento, fizemos novamente em 2023. Mas parece que o MS está se organizando para retomar o inquérito* (*após a entrevista, realizada no início de agosto, o Ministério da Saúde lançou o Vigitel 2023), com a nossa ajuda para implementar inovações metodológicas.
O que vale destacar da metodologia?
LMVS: Ligamos para números fixos (50%) e móveis (50%). Observamos que quem atende o celular são pessoas mais jovens, e o fixo, mais idosas.
Incorporamos alguns novos blocos de perguntas. No ano passado, usamos basicamente o questionário do Vigitel. Neste, a partir das discussões dos resultados de 2022, colocamos perguntas sobre cigarro eletrônico, que está sendo muito falado e se tornando um grande problema no Brasil; consumo de álcool e poluição do ar, que é o quinto fator de risco para doenças crônicas. E ampliamos o bloco sobre saúde mental.
O Vigitel e o Covitel têm praticamente o mesmo padrão. A diferença está na amostra. O Vigitel coleta informações apenas nas capitais. O Covitel também o faz em cidades do interior.
Por que vocês optaram por estudar indivíduos com mais de 18 anos? Por que não incluir crianças e adolescentes?
LMVS: Optamos por estudar pessoas com mais de 18 anos porque a nossa escolha metodológica é perguntar para quem atende. Por questões éticas, eu posso ligar e fazer perguntas para um adulto, se ele aceitar conceder a entrevista. Com adolescentes não é possível, pois até 15 anos, um responsável precisa tutorear a conversa. Então, a entrevista teria de ser presencial.
E para crianças seria outra metodologia. Teríamos de entrevistar não necessariamente os pais, mas a babá, a professora, os avós ou quem cuida da criança e conhece seus hábitos. Por telefone também não funciona.
Os resultados de 2023 foram muito diferentes dos de 2022?
LMVS: A gente não esperava que houvesse diferenças. Teve mudanças em uma coisa ou outra. Por exemplo, consumo de refrigerante teve uma sutil queda, e o consumo de frutas e legumes, um pequeno aumento, mas nada muito significativo e fora do esperado.
As últimas edições do Vigitel mostraram que o tabagismo, que vinha tendo uma queda consistente no Brasil nos últimos anos, parou de cair em algumas faixas etárias. E agora, quando incluímos o bloco do cigarro eletrônico/narguilé/cigarro de palha, vimos que são consumidos pelo público mais jovem.
O que aumentou bastante foi a obesidade entre jovens, mas não foi do ano passado para cá. Quem estava com sobrepeso por conta da pandemia, se engordou 1 kg, 2 kg ou 3 kg mudou de faixa, de excesso de peso para obesidade.
E quais as diferenças mais relevantes entre os resultados de 2023 e os de antes da pandemia?
LMVS: No ano passado, perguntamos para os entrevistados: "Como era seus hábitos antes da pandemia e agora, no primeiro semestre de 2022?". O que vimos foi que a saúde mental piorou bastante, com um grande aumento de casos de depressão; a prática de exercícios físicos caiu; e o consumo de ultraprocessados aumentou. Pensamos que em 2023 as pessoas voltariam para as atividades físicas. Mas não, elas continuaram com os hábitos ruins. A pessoa deprimida ou ansiosa pode comer demais, deixar de fazer atividade física, não prestar atenção na alimentação e consumir mais álcool e tabaco. É um ciclo vicioso.
Quais foram os resultados mais alarmantes?
LMVS: Os dados referentes à população jovem. Essa foi a faixa etária em que os casos de obesidade aumentaram mais, de 9% para 17%. Isso significa que em 2023 cerca de 3 milhões de pessoas com idade entre 18 a 24 anos estão obesas. Eles também estão consumindo álcool abusivamente. Eles sentam e tomam pelo menos quatro doses (mulheres) e cinco doses (homens). E praticam pouca atividade física (somente cerca de 37% faz algum esporte). Esse grupo também é o que menos come frutas e verduras e o que mais toma refrigerantes. Os diagnósticos de depressão e ansiedade também são altos.
Tá tudo errado. Eles comem mal, não fazem atividades físicas, bebem álcool, fumam. Antes dizíamos: "O que vai ser dessa população no futuro?". Não é no futuro. Já é o presente. Temos 8% de diagnóstico de hipertensão nessa faixa etária e 2,2% de diabéticos. Se não controlar, imagina como será daqui a 10, 15, 20 anos, no auge do mercado de trabalho dessa população. Isso tem um impacto grande na economia do país.
Os fatores de risco estudados são mais prevalentes em determinada faixa etária, gênero, escolaridade, cor da pele etc.?
LMVS: Cada indicador tem uma característica. A bebida alcoólica é sempre mais consumida por homens, mas quando olhamos a série histórica, o consumo por mulheres está crescendo muito mais rápido. Então, rapidamente ficarão no mesmo patamar. A mesma coisa para o tabaco. De acordo com a pesquisa que o Ministério da Saúde fez com adolescentes, a idade média de iniciação, que tinha uma diferença de três anos entre meninos e meninas, já igualou.
Os homens fazem mais atividade física do que as mulheres. Já o consumo de frutas e verduras é maior entre as mulheres.
Tanto homens quanto mulheres (76%) ficam expostos a telas por mais de três horas, desconsiderando o tempo dedicado ao trabalho/estudo.
Estamos num mundo de ansiosos, deprimidos, sedentários e viciados em telas. É o caos.
Os resultados são assustadores?
LMVS: É um grande sinal de alerta, principalmente por ser uma população muito jovem. Precisamos mudar o rumo rapidamente. E como se faz isso? Com políticas públicas sustentáveis. Porque não são apenas escolhas individuais. A pessoa precisa ter condições de fazer melhores escolhas. Por exemplo, sabemos que é importante caminhar todos os dias, mas uma pessoa que passa três horas no ônibus, chega em casa às 21h, sem comer e cansada, mora num bairro sem iluminação pública, calçadas regulares e segurança vai sair para caminhar? É pouco provável. Assim, uma mobilidade urbana mais articulada estimularia escolhas mais saudáveis.
Estamos num momento crucial, que é o da revisão da reforma tributária. Temos trabalhado muito pela implementação do imposto seletivo, para que os produtos que fazem mal à saúde (tabaco, álcool e ultraprocessados) paguem mais impostos. Essa é uma política sustentável que pode melhorar as escolhas pessoais, pois já foi provado que se o valor aumenta, o consumo diminui. A reforma tributária é uma oportunidade única. Temos de nos unir (academia, sociedade civil e governo) para aprovar o imposto seletivo, revertendo o dinheiro arrecadado para a promoção da saúde.
E quais os principais desafios para a implementação do imposto seletivo?
LMVS: Estamos ouvindo muito falar do imposto seletivo para o tabaco e o álcool. Para ultraprocessados, ninguém fala. Parece que a indústria está batendo pesado. Então, nós também temos de bater. É senso comum que tabaco e álcool não fazem bem para a saúde. Mas o ultraprocessado cai na discussão da insegurança alimentar: "É melhor comer ultraprocessado ou não comer nada?".
A indústria deve estar fazendo o dever de casa dela, com muitos recursos. A gente tem poucos. Mas estamos trabalhando fortemente junto à ACT Promoção da Saúde e outros parceiros, publicando notas técnicas; apresentando os resultados em seminários, congressos e audiências públicas; e divulgando na imprensa para sensibilização da população, porque queremos que ela se empodere e corra atrás dos seus direitos.
Como o aumento do consumo de ultraprocessados impacta a população adulta brasileira? Ele está relacionado a hábitos ruins na infância?
LMVS: Já temos uma população jovem de hipertensos e diabéticos. A consequência já está chegando. Eu sou nutricionista e sempre defendi a educação alimentar nas escolas, ou seja, ensinar para a criança a importância de se alimentar de forma saudável. Não adianta dizer para alguém que tem 18 anos e foi diagnosticado com hipertensão que ele não pode mais tomar refrigerante e só deve comer frutas e verduras. Mudança de hábitos é difícil. Por isso tem de ser na infância.
E novamente entra a necessidade de políticas públicas. Uma mãe que trabalhou o dia inteiro, muitas vezes cozinhando na casa de outras pessoas, e chega em casa às 21h, cansada, faz o que? Abre um miojo. Ela não vai descascar batata, fazer arroz e feijão. Se tiver um transporte público eficiente, que a ajude a chegar às 19h em vez das 21h, a chance de ela cozinhar aumenta.
Você acredita que os dados de alimentação se conectam, de alguma forma, com o aumento da insegurança alimentar e nutricional?
LMVS: Completamente. Hoje, temos os dois lados da insegurança alimentar convivendo: a desnutrição – que diminuiu, mas começa a voltar em populações específicas, como indígenas e quilombolas – e a obesidade. Aí muita gente pensa: "Obesidade não é insegurança". Mas é, porque a pessoa não está comendo o que é seguro, o que é bom. Temos uma insegurança de micronutrientes.
E a obesidade está relacionada às doenças crônicas. É um atestado de que ela provavelmente vai ter diabetes, hipertensão, colesterol etc. Por isso, tem de ter política pública para os dois, obesos e desnutridos.
Como os resultados da Covitel podem ser usados para a criação de políticas públicas?
LMVS: Eu acredito que a informação serve para a ação. E estamos conseguindo mostrar para diversas áreas que precisamos juntar todo mundo para criar incentivos na saúde, segurança pública, educação etc. a fim de que a população tenha melhor qualidade de vida. Os dados estão servindo para mostrar a realidade e o caminho para mudá-la.
Quais ações devem ser realizadas para combater as DCNTs no Brasil?
LMVS: A educação está sempre em primeiro lugar. Depois vem as políticas de regulamentação de propagandas. No Brasil, propaganda de cerveja é permitida porque ela se encaixa numa legislação por conta do grau alcoólico. A criança cresce vendo que cerveja tem a ver com futebol, com samba, e acha que aquilo é bonito, é legal.
É preciso oferecer melhores condições de segurança pública e criar áreas verdes, como praças e parques, para estimular o convívio entre os jovens e afastá-los das telas. É fundamental taxar o que não faz bem à saúde. E é essencial juntar as pastas. O Brasil é um país continental, com milhares de problemas. Tem de unir todo mundo para discutir soluções. Não é só pagar a conta da saúde. O importante é prevenir as doenças.
Saiba mais
Leia o relatório do Covitel em: https://observatoriodaaps.com.br/covitel/