Democracia garantida
Estudo do Idec comprova que o passe livre adotado em 394 cidades no segundo turno das eleições de 2022 levou a um aumento do uso de transporte coletivo
Em 2022, pela primeira vez na história do Brasil, 394 municípios de norte a sul do país, incluindo todas as capitais, disponibilizaram transporte gratuito para seus cidadãos nas eleições, beneficiando 100 milhões de pessoas. Embora o acesso aos locais de votação sejam um requisito essencial para a efetivação do direito de votar, ele não é garantido a toda a população. "Ao ter que pagar para usar o transporte público, muitos eleitores encontram uma barreira financeira para o exercício do voto na grande maioria das cidades brasileiras, com exceção daquelas onde ele é gratuito o ano todo. E isso ocorre de forma desigual, pois prejudica sobretudo a parcela mais pobre da população, para quem pagar a tarifa pode ser um impeditivo", declara Aline Leite, pesquisadora do Programa de Mobilidade Urbana do Idec. Em São Paulo, por exemplo, onde a tarifa custa R$ 4,40, quem precisa pegar ônibus e metrô pode gastar até R$ 15,30. A multa pra quem não vota nem justifica a ausência custa R$ 3,51. O que os cidadãos de baixa renda vão preferir?
Incentivado pelo ineditismo do passe livre nas eleições, o Idec realizou um estudo no qual analisou o quanto essa medida impactou o uso de meios de transporte público no domingo 30 de outubro e se houve aumento da frota. Foram avaliadas 12 capitais, nas cinco regiões brasileiras (saiba mais sobre a metodologia no quadro abaixo). "Para o Idec, a tarifa é uma barreira social. Com o passe livre, mais gente teve acesso aos meios de transporte coletivo e puderam votar. Ou seja, a tarifa zero contribuiu com a democracia", afirma Leite, que é a responsável pela pesquisa. André Veloso, pesquisador de mobilidade urbana e integrante do movimento Tarifa Zero BH concorda e acrescenta: "As eleições do ano passado foram as primeiras da Nova República com um comparecimento maior no segundo turno do que no primeiro. É claro que o acirramento entre os candidatos e a importância histórica dessa eleição explica isso, mas é fato que o passe livre permitiu esse aumento, principalmente em municípios grandes, em periferias. Temos certeza de que o passe livre incentivou as pessoas a saírem de casa para votar".
PASSE LIVRE PELA DEMOCRACIA
Se mais brasileiros puderam exercer seu direito/dever cívico em 2022 é graças ao trabalho do Movimento Passe Livre – que conta com cerca de 100 organizações, incluindo o Idec. A luta pela tarifa zero nas eleições começou em setembro de 2022, quando, às vésperas do primeiro turno, a prefeitura de Porto Alegre (RS) cancelou a gratuidade no transporte público em dia de sufrágio, que vigorava há mais de 20 anos. A notícia gerou grande comoção da sociedade. Com a repercussão negativa dessa notícia, a prefeitura do Rio de Janeiro (RJ) decidiu liberar as catracas dos ônibus em 2 de outubro. Logo em seguida, o partido Rede Sustentabilidade entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) argumentando que o passe livre nas eleições deveria ser adotado em todo o país. O STF não acatou o pedido, mas recomendou que todas as cidades que pudessem adotassem a tarifa zero. Paralelamente, o movimento Passe Livre pela Democracia pressionava prefeitos e governadores para que garantissem transporte público gratuito a toda a população no segundo turno. A reivindicação surtiu efeito: quase 400 cidades não cobraram tarifa. "O Passe Livre pela Democracia foi uma grande campanha em defesa do direito à circulação nas cidades brasileiras, buscando ampliar ao máximo o direito à cidadania e à participação no sistema eleitoral", comenta Roberto Andres, urbanista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
COMO FOI FEITA A PESQUISA
Pedimos as informações sobre o passe livre aos órgãos responsáveis pelos sistemas de transportes de 12 capitais (Belém-PA, Belo Horizonte-MG, Brasília-DF, Curitiba-PR, Recife-PE, Fortaleza-CE, Goiânia-GO, Manaus-AM, Porto Alegre-RS, Rio de Janeiro-RJ, Salvador-BA e São Paulo-SP) por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Enviamos quatro pedidos para cada cidade, por meio de transporte (ônibus municipal, ônibus metropolitano, metrô, trem etc.): no primeiro, perguntamos o número de passageiros transportados; no segundo, se houve passe livre; no terceiro, se houve aumento da frota; e no último, de onde vieram os recursos para remunerar as empresas de transporte. No total foram mais de 150 solicitações.
A pesquisa, que começou a ser feita em novembro de 2022, com o envio das primeiras demandas, se estendeu até julho de 2023. Um dos motivos para o longo período de execução foi a demora de alguns órgãos para responder nossos questionamentos (algumas cidades levaram quase 100 dias). É importante destacar também que,além da demora, muitas vezes as respostas não eram claras, exigindo que enviássemos novas questões.
Aline Leite, pesquisadora do Programa de Mobilidade Urbana do Idec.
Apesar de muitos municípios não terem computado a quantidade de passageiros nos ônibus, porque liberaram a entrada das pessoas por qualquer porta do veículo, o Idec identificou que o transporte público nas cidades recebeu, no segundo turno, de 50% (Salvador) a 281% (Manaus) mais usuários do que num domingo comum (veja todos os resultados na tabela abaixo). "Esses números são relevantes e comprovam o impacto social da iniciativa" diz Leite. "A pesquisa do Idec confirmou o que nós, pesquisadores de transportes, já sabemos: a retirada da tarifa libera o uso do transporte público para milhões de pessoas que não o usariam se tivessem de pagar, por conta do alto custo", declara Andres.
Um ponto que chamou a atenção do Idec foi que somente três das 12 cidades estudadas relataram ter aumentado a frota em 30 de outubro: Belo Horizonte, Goiânia e Salvador. E esse aumento não foi feito em todos os meios de transporte disponibilizados. Isso porque a gestão não é unificada, ou seja, a concessionária responsável pelos ônibus não é a mesma do metrô. Então, pode ter havido passe livre em um meio de transporte e no outro não. "Achávamos que as empresas que administram o transporte público em cidades que adotaram o passe livre no segundo turno disponibilizariam mais veículos, já que sabiam que haveria mais demanda. Mas não, elas mantiveram a frota de um domingo comum, o que é um absurdo, porque um domingo qualquer é uma coisa, um domingo de eleição com passe livre é uma situação completamente diferente", critica Leite.
Quando houve aumento da frota, ele foi muito pequeno. Apenas em Belo Horizonte (MG) e Salvador (BA) ele foi significativo: 46,18% e 139,26% respectivamente. "A política pública da tarifa zero é boa, mas precisa ser muito melhor gerida. As empresas poderiam ter mantido pelo menos a frota de um dia útil", opina a pesquisadora do Idec.
DIREITO GARANTIDO EM LEI
Diante dos bons resultados do passe livre nas eleições 2022, o Idec e as outras organizações envolvidas no movimento Passe Livre pela Democracia querem que esse direito seja consolidado, ou seja, que ele seja previsto em Lei. Assim, o movimento elaborou o Projeto de Lei (PL) nº 2.928/2022, que está tramitando na Câmara dos Deputados.
Enquanto a Lei não é aprovada, acompanhamos as novas cidades que adotam o passe livre não apenas em dia de pleito, mas o ano todo, para todos os habitantes. Hoje, 80 municípios oferecem transporte gratuito a seus cidadãos. Veloso, do Tarifa Zero BH, acredita que esse número vai aumentar, pois o transporte público está em colapso do ponto de vista do financiamento tarifário, e os municípios estão buscando soluções. "Muitas cidades notaram que há pouca diferença de gastos entre subsidiar todo o sistema ou apenas uma parte, mas os resultados são concretos, e as vantagens, muito boas", ele conta. "É preciso investir em outras formas de remunerar as empresas que administram o transporte coletivo que não apenas as tarifas pagas pelos passageiros", defende Leite, do Idec. E o que está faltando para que isso se torne realidade? De acordo com Veloso, o desafio é possibilitar que municípios sem recurso para implementar o passe livre consigam fazê-lo. "Para que o Sistema Único de Mobilidade seja efetivo no Brasil, o financiamento precisa ser dividido entre União, estados e municípios", ele recomenda.
De acordo com Leite, do Idec, o impacto social do passe livre nas eleições precisa ser comemorado. "Esperamos que a tarifa zero se torne uma política pública adotada em todas as eleições no Brasil, inclusive nas municipais que acontecerão daqui a um ano", ela finaliza.
Saiba mais
- Campanha Passe Livre pela Democracia: https://www.passelivrepelademocracia.org/
- Para entender o Sistema Único de Mobilidade (SUM): https://idec.org.br/sum