DO SONHO AO PESADELO
Agências de viagem online, como Hurb e 123milhas, têm recebido milhares de reclamações por desmarcarem viagens e não reembolsarem os consumidores. Saiba o que fazer antes de contratar esses serviços e, caso tenha sido vítima, como receber seu dinheiro de volta.
O que era para ser uma pausa na rotina virou dor de cabeça para a consultora de marketing digital Luize Machado. Em 2021, ela e o companheiro compraram no Hurb, antigo Hotel Urbano, um pacote de três dias em Maceió (AL), com voo saindo de Curitiba (PR) e hospedagem. O plano era embarcar no segundo semestre de 2022, no esquema de pacote flexível, carro-chefe da empresa (a pessoa compra a viagem e solicita algumas opções de data, mas não sabe exatamente quando embarcará). O Hurb adiou a viagem de Machado para 2023, mas em julho, informou que o passeio teria que ser remarcado para 2024. Caso não estivesse de acordo, a cliente poderia optar por ficar com créditos na plataforma ou pedir o reembolso, a ser pago em até 60 dias úteis. "Vou pedir a devolução do dinheiro. Se vão devolver e se será rápido ainda não sei", diz a consultora.
A insegurança de Machado faz sentido. Desde o ano passado, o Hurb, que é a maior agência de viagens online do Brasil, tem recebido uma enxurrada de reclamações em redes sociais e sites especializados. No Reclame Aqui foram 46.756 queixas só no primeiro semestre deste ano. Muitos consumidores também relataram problemas em órgãos oficiais. Segundo levantamento do Idec com dados da plataforma Consumidor.gov.br, do Ministério da Justiça, apenas no primeiro trimestre de 2023, a empresa acumulou 7.737 reclamações, o que equivale a cerca de 86 por dia.
Por meio de nota enviada à Revista do Idec, a Senacon informou que a Hurb está impedida de vender pacotes flexíveis desde 29 de maio de 2023 e que a empresa apresentou recurso contra a decisão, que está sob análise do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC). Ainda segundo a Senacon, a medida foi adotada como forma de proteção aos consumidores e busca garantir a resolução das milhares de reclamações já existentes, antes que novas vendas sejam realizadas. Também em maio, o Procon-SP autuou o Hurb por descumprimento de ofertas e abusividade em cláusulas contratuais, o que resultou numa multa de aproximadamente R$ 4 milhões. O recurso da empresa está sendo analisado.
O Hurb nāo é a única agência de viagens que tem tirado o sono dos viajantes neste pós-pandemia. No fim de agosto, a 123milhas anunciou que as passagens da linha Promo, válidas entre setembro e dezembro, não seriam mais emitidas e, alegando "persistência de fatores econômicos e mercado adversos", informou que os clientes receberiam vouchers. Uma semana depois, a agência entrou em recuperação judicial, deixando milhares de consumidores sem viagens e sem saber quando e se receberão seu dinheiro de volta. Acompanhe as atualizações do caso em https://bit.ly/44ziKuC.
A notícia caiu como uma bomba para a jornalista Helena Arnoni, que já estava com as malas prontas para ir a Portugal. Ela havia comprado, em agosto de 2022, bilhetes São Paulo-Lisboa com embarque entre 1 de setembro e 30 de setembro de 2023. Para manter as férias, acabou comprando outra passagem. "Eu paguei quase R$ 12 mil. Se eu tivesse comprado há um ano, eu não pagaria os R$ 1.500 da promoção, mas também não gastaria tudo isso". Arnoni pretende entrar na Justiça para reaver o dinheiro, não só o da passagem promocional, mas também o da que precisou comprar de última hora.
Mas os problemas com a 123milhas não são novidade. Em agosto de 2022, o Procon-SP já havia notificado a empresa por cancelamento de viagens, falhas no atendimento e falta de emissão de passagens aéreas. O órgão informou que esse processo administrativo está em curso e que a depender do resultado, a empresa pode receber penalizações previstas no artigo 56 do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
DESCONFIE SEMPRE
Para fugir dos possíveis contratempos é preciso ser cuidadoso na hora de contratar prestadores de serviço. E com agências de viagens online não é diferente. O diretor de Relações Institucionais do Idec, Igor Rodrigues Britto, adverte que o setor de turismo ainda tenta se recuperar da crise gerada pela pandemia. Por isso, é preciso ter muito cuidado com ofertas de empresas desconhecidas ou promoções incríveis, porque dificilmente uma empresa desse ramo conseguirá preços muito abaixo dos de seus concorrentes.
Desconfiar é a palavra de ordem na hora de pesquisar um pacote turístico. Britto ressalta que essa "pulga atrás da orelha" é o ponto de partida para uma compra mais segura. "Quem desconfia pesquisa de forma mais detalhada, conferindo todos os termos da promoção que está sendo oferecida, olhando as ofertas e os preços dos concorrentes, e o mais importante: verifica a reputação da empresa nas plataformas de reclamação de consumidores e em diversos sites especializados", ele declara.
Em abril de 2020, o administrador de bens e associado do Idec Marcelo Porto comprou um pacote do Hurb para viajar ao Japão com a esposa em 2021. Ele pesquisou e, naquele momento, não encontrou reclamações. "A gente sabia que os preços estavam baixos, mas com a pandemia, ninguém estava viajando, então não parecia irreal. Era uma oportunidade", avalia.
Com a extensão da pandemia, ele entendeu os primeiros reagendamentos. Mas em 2022, começou a perder a paciência. "Eles continuaram a descumprir as datas que eles mesmos sugeriam. Eu sempre segui as regras", conta. Porto tentou negociar diretamente com a empresa e registrou queixa no Reclame Aqui, na Consumidor.gov.br e no Procon. Mas o problema não foi resolvido. "Eu tenho o pacote pago desde 2020. Não sei mais o que fazer", declara o associado.
QUANDO SÓ RESTA O JUDICIÁRIO
Britto, do Idec, é taxativo: "Quando a empresa já descumpriu a oferta e o contrato, o consumidor pode pedir a rescisão contratual e a devolução imediata de todos os valores pagos, com atualização monetária." Ele lembra, ainda, que não existem mais as regras emergenciais que protegiam empresas do setor de turismo durante a pandemia. Por isso, se elas não indenizarem imediatamente os consumidores lesados, estes podem recorrer ao Judiciário. Britto alega que aceitar um acordo é uma opção para quem confia no prestador de serviço ou quer evitar uma ação judicial. Porém, alerta: "Se uma empresa em crise pede recuperação judicial ou declara falência, os consumidores costumam ser os últimos a receber. Isso se sobrar algum recurso".
A advogada Luciana Atheniense, especialista em Direito do Turismo, informa que os documentos básicos para entrar com uma ação são o contrato e o comprovante de pagamento. Mas ela orienta que o cliente acesse primeiramente a Consumidor.gov.br, porque as empresas cadastradas têm um prazo para responder, o que pode dar bons resultados. Além disso, o acesso à plataforma também pode ser usado numa ação futura. Segundo Atheniense, os juízes estão aplicando a "teoria do tempo perdido" na hora de condenar as empresas por danos morais. Isso significa que eles têm considerado o tempo que o consumidor perdeu ligando para a empresa, enviando e-mails e mensagens, registrando reclamação em plataformas de defesa do consumidor, indo ao Procon, procurando a Justiça etc.
Em janeiro deste ano, a advogada Francineide Marinho processou o Hurb no Juizado Especial Cível (JEC) em Salvador (BA). O motivo foi uma viagem para a Tailândia que ela comprou em 2022. O pacote era flexível (podia ser utilizado de março a novembro de 2023), mas ao preencher o formulário, ela e o companheiro escolheram apenas datas em março. Em dezembro, foram informados de que não seria possível viajar no mês indicado. A partir dali, Marinho tentou negociar com o Hurb, porque não poderia sair de férias em outro período. Como não foi ouvida, ela reclamou na Consumidor.gov.br e no Procon, antes de ingressar na Justiça. Em maio, o juiz deu sentença favorável à consumidora, obrigando a empresa a cancelar a compra do pacote e a devolver o valor pago, corrigido monetariamente, de acordo com o artigo 35 do CDC. O pedido de indenização por danos morais também foi aceito pelo juiz, mas o Hurb recorreu, e a decisão final ainda não saiu.
O QUE AS EMPRESAS DISSERAM
Procurado pela Revista do Idec, o Hurb respondeu aos questionamentos por meio de uma nota. Nela, reconheceu os problemas enfrentados nos últimos meses; afirmou que todas as questões já foram mapeadas e estão sendo sanadas por meio de diversas iniciativas; e informou que está em força-tarefa para a normalização das operações. Em relação à abertura de processos administrativos divulgados por órgãos públicos, a empresa disse que, por questões legais, não comenta ações em andamento e reitera seu comprometimento com a realização das viagens adquiridas na plataforma, assim como com a devolução de valores solicitados por clientes afetados pela "indisponibilidade promocional".
A 123milhas também foi procurada por telefone, e-mail, pela central de clientes e pelo Instagram, mas não se pronunciou até o fechamento desta edição.
"A falta de transparência e de respostas é péssimo indicativo de confiança para empresas que se relacionam com consumidores. Quando uma empresa não se manifesta sobre reclamações nem informa o que está fazendo para resolver os problemas, transmite a todos nós, consumidores e seus defensores, um péssimo sinal sobre a qualidade de seus serviços. Como consumidores, devemos avaliar fornecedores de bens e serviços a partir da forma como lidam e solucionam as demandas de seus clientes", finaliza Britto.