Risco para endividados?
STF considera constitucional artigo do Código de Processo Civil que permite apreensão de carteira de motorista e passaporte em caso de inadimplência. Veja como isso funciona na prática
No início do ano, os brasileiros foram surpreendidos com uma decisão do Superior Tribunal Federal (STF) que autoriza que carteira nacional de habilitação (CNH) e passaporte de inadimplentes sejam apreendidos. Mas é preciso esclarecer que, para que a pessoa devedora perca um desses documentos, é necessário que haja um processo judicial cobrando a dívida já na fase de execução, quando não existe mais debate a respeito do débito.
Embora pareça uma medida radical, a advogada e professora universitária Maria Elisa Cesar Novais, mestre e doutora em Processo Civil, explica que a decisão do STF – que julgou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) proposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT) –, considerou constitucional o artigo 139, inciso IV, do Código de Processo Civil, que permite que o juiz determine medidas coercitivas e indutivas que assegurem o cumprimento de uma ordem judicial. "O PT questiona a constitucionalidade desse artigo, porque acredita que ele fere a dignidade humana, mas o Supremo o reconheceu como constitucional, ou seja, ele está de acordo com a Constituição Federal", ela informa. Assim, é legal apreender documentos, mas isso não pode ferir a dignidade da pessoa humana. "É preciso ter equilíbrio", resume Novais.
Para a advogada, na prática não vai mudar muita coisa na rotina do Judiciário, pois o consumidor vai continuar podendo entrar com recurso caso o juiz determine a retenção de seu passaporte ou de sua CNH. "O STF ter considerado o artigo 139 constitucional não significa que daqui para a frente sempre que tiver uma execução, CNH e passaporte vão ser retidos. A única mudança é que ninguém mais vai poder alegar que isso é inconstitucional", ela reforça.
IMPACTO NO SUPERENDIVIDAMENTO
A decisão do STF preocupou o Idec, que acompanha muito de perto a questão do superendividamento da população, um grave problema econômico e social. Num país onde 78,3% das famílias estão endividadas [segundo dados divulgados em março pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo], reter a carteira de motorista, principalmente de trabalhadores, é uma medida punitiva que não irá contribuir para a recuperação de crédito e ainda aumentará o desemprego e dificultará o pagamento de dívidas. "Muitos profissionais, como motoristas de ônibus, motoristas de aplicativos, caminhoneiros, motoristas de ambulância, taxistas, entregadores etc., dependem da CNH para exercer seu ofício e, assim, garantir sua sobrevivência", exemplifica Ione Amorim, economista e coordenadora do programa de Serviços Financeiros do Idec. E completa: "O problema é colocar todo mundo na mesma condição. São poucas as pessoas que agem de má-fé, endividando-se sem a intenção de pagar. A maioria se endivida porque não têm escolha".
A economista do Idec destaca que a retenção de CNH e passaporte de pessoas devedoras deve ser feita em conformidade com a Lei nº 14.181/2021, que trata do superendividamento da população. "A busca pelo cumprimento das decisões judiciais, por mais legítima que seja, não pode se sobrepor aos direitos fundamentais dos brasileiros nem atropelar o que está estabelecido na Constituição Federal", ela alerta, e informa: "Considerando o que está previsto na Lei do Superendividamento, apenas em caso de crédito obtido por má-fé, ou seja, quando a pessoa já sabe que não irá pagar; ou para aquisição de bens de luxo, a retenção de documentos se justifica".
Para Novais, a preocupação do Idec é válida, mas hipotética, porque ainda não temos como saber se o Judiciário vai aprender mais CNHs e passaportes a partir de agora. "Não acredito que a situação dos endividados será ainda mais agravada, mas é importante acompanhar essas decisões", opina. E o Idec vai acompanhar!