Regulação das plataformas
Não há como negar que as plataformas digitais fazem parte do nosso dia a dia: pedimos comida, compramos produtos, contratamos serviços, fazemos cursos, pesquisamos informações, nos distraímos nas redes sociais. E é justamente pela sua onipresença que o estabelecimento de regras claras se torna imprescindível para que os direitos humanos e outros, como liberdade de expressão, acesso à informação e transparência, sejam garantidos. Se nós, adultos, precisamos ser protegidos dos riscos que a internet oferece, quando se tratam de crianças e adolescentes, indivíduos hipervulneráveis, essa proteção é ainda mais imperativa.
A regulaçāo das plataformas digitais vem sendo bastante discutida, e claro que o Idec está envolvido para defender os direitos dos consumidores. Porque, sim, usuários de internet são consumidores.
Para saber mais sobre esse debate tão atual, conversamos com Camila Leite, do Programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec, e Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana. Confira a seguir.
CAMILA LEITE é graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e mestranda em Direito Comercial na mesma universidade. No Idec, atua como advogada e pesquisadora do Programa de Telecomunicações e Direitos Digitais.
MARIA MELLO é graduada em Jornalismo e mestre em Políticas de Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB). Coordena o programa Criança e Consumo do Instituto Alana desde 2021.
Por que a regulação de plataformas digitais tem sido tão discutida e qual a sua importância para a sociedade?
Camila Leite (Idec): A regulação de plataformas digitais se torna mais relevante na medida em que passamos a utilizá-las em diversos aspectos de nossa vida: para entrega de produtos, prestação de serviços e até para formação de opiniões políticas e ideológicas.
Chama a atenção algumas características dessas plataformas, que revelam seu poder indiscriminado, como o modelo de negócio baseado na coleta e no tratamento massivo de dados pessoais para fins de marketing e publicidade direcionada e o monopólio dos mercados em que atuam.
Especialmente em relação à moderação de conteúdo, as plataformas acabam exercendo o papel de Tribunais quando não estão sujeitas a regras claras. Assim, é importante que a regulação garanta direitos humanos e fundamentais, como liberdade de expressão, acesso à informação e transparência.
Importante destacar que diversos setores são regulados pelas legislações vigentes no Brasil, como os serviços de telecomunicação e radiodifusão, o setor de saúde e a prestação de serviços em geral. As plataformas não podem deixar de cumpri-las.
Por que a regulação é importante para os direitos dos consumidores?
CL (Idec): Porque o conceito de consumidor tem se atualizado com o tempo. Consumidores são tanto receptores quanto produtores de conteúdo. Além disso, no ambiente de transmissão de informação, seus direitos podem ser limitados no exercício de sua liberdade de expressão e no acesso à informações.
Então, temos um desafio: consumidores são tanto titulares do direito à liberdade de expressão, podendo exercê-lo pela internet, quanto titulares do direito à informação, tendo o direito de receber informações de interesse individual e coletivo.
Como solucionar essas tensões? Com a regulação.
Por que a regulação das plataformas é importante para o direito de crianças e adolescentes?
Maria Mello (Alana): Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2021, 93% das crianças entre 9 a 17 anos têm acesso à Internet em nosso país, sendo que quase a totalidade a acessa pelo celular – o que, muitas vezes, acaba restringindo a qualidade da navegação. A pesquisa também mostra que grandes redes sociais (que em seus termos de uso vedam a presença de usuários com menos de 13 anos) são consumidas por crianças e adolescentes de todas as idades, de forma crescente: 88% das crianças entre 9 a 17 anos possuem perfil em rede social: 80% estão no WhatsApp; 62%, no Instagram; 58%, no TikTok; 51%, no Facebook; 12%, no Snapchat; e 17%, no Twitter.
O desenho e o modelo de negócios dessas plataformas seguem a mesma lógica de obtenção de lucro baseada na economia da atenção; na coleta e no uso de dados pessoais, com vistas à modulação comportamental; e em outras formas de exploração às quais os adultos também são submetidos. Contudo, as crianças e adolescentes se encontram numa fase única de desenvolvimento biopsicossocial, de intensa atividade cerebral, e respondem de forma diferente a estímulos externos. O desenho das redes sociais aproveita que o controle inibitório está em formação, sobretudo nos adolescentes, para manter sua atenção de forma muitas vezes predatória, oferecendo conteúdos tóxicos que tendem a engajar mais, como desinformação, discurso de ódio e publicidade desenfreada.
As plataformas não são meros intermediários passivos, mas empresas que se utilizam de dados dos usuários e influenciam o fluxo informacional, interferindo na experiência deles.
Contudo, as tecnologias digitais também podem atuar como ferramentas democratizadoras, que promovam e ampliem o conhecimento, o entretenimento e o desenvolvimento de crianças e adolescentes, que estão no ambiente digital para fins diversos. Assim, essas plataformas podem ser altamente benéficas para a ampliação de suas relações sociais e seus estudos, por exemplo.
O problema é que as plataformas não estão protegendo crianças e adolescentes dos riscos. Por isso, é importante termos uma regulação que previna violações de seus direitos individuais e coletivos. Essa regulação deve, portanto, priorizar o melhor interesse desses indivíduos hipervulneráveis, conforme previsto na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança; no Comentário Geral n§ 25 sobre os Direitos da Criança no Ambiente Digital - que é, hoje, o documento mais completo sobre os direitos da criança no ambiente digital –; no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Convenção sobre os direitos da criança da ONU [Organização das Nações Unidas], além da legislação consumerista [Código de Defesa do Consumidor - CDC]. Aliás, exigir que as plataformas adotem medidas proativas para garantir e proteger os direitos das crianças e adolescentes alinha-se perfeitamente à ideia de responsabilidade compartilhada trazida pela Constituição Federal, segundo o qual a proteção integral e prioritária dessas pessoas vulneráveis cabe não só às famílias e ao Estado, mas a toda sociedade - o que inclui o setor empresarial e, mais especificamente, as plataformas digitais.
E a regulação não deve se ater só à moderação de conteúdos, mas, principalmente, à arquitetura das plataformas, até porque os principais riscos estão relacionados ao seu design e ao seu modelo de negócio.
Como é a situação atual da regulação de plataformas e quais as principais discussões?
CL (Idec): Atualmente, não temos uma regulação unificada para plataformas no Brasil. O que se quer fazer é justamente isso: criar um marco regulatório que garanta mais explicitamente os direitos de usuários da internet e defina obrigações para as plataformas digitais. O objetivo é trazer maior liberdade, responsabilidade e transparência.
Por enquanto, temos uma norma central, o Marco Civil da Internet (MCI), que define e garante princípios como a liberdade de expressão, a neutralidade de rede, a proteção de dados e a participação multissetorial e participativa no ambiente digital.Em complemento, o CDC também é aplicável. Por exemplo, no caso de plataformas de comércio eletrônico. Além disso, outras leis também protegem grupos específicos, como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Atualmente, a discussão sobre a regulação de plataformas digitais está focada em três frentes: o Judiciário discute a constitucionalidade do atual regime de responsabilidade de provedores de aplicações na internet sobre conteúdos de terceiros, disposto no artigo 19 do MCI; no Legislativo tramita o Projeto de Lei (PL) nº 2.630, que está em fase avançada no Congresso Nacional, mas ainda precisa ser aprimorado; e o Executivo tem atuado em diferentes frentes para regular mais fortemente as plataformas, inclusive contribuindo diretamente com o Legislativo.
No momento, quem está discutindo o tema a fim de apresentar soluções?
MM (Alana): Todos os setores da sociedade têm discutido, de alguma forma, o tema no Brasil e no mundo: sociedade civil organizada, academia, Estado (Governo, Congresso e Judiciário) e empresas.
Parte da sociedade civil brasileira, sobretudo a que atua na pauta dos direitos digitais, vem buscando promover debates em torno de soluções não apenas baseadas em experiências regulatórias de outros países, mas levando em conta as especificidades do Brasil, um país continental marcado por muitas desigualdades. A academia fornece elementos mais interdisciplinares, desde uma dimensão comportamental e educacional, passando pelo campo da economia política, até questões técnicas que podem contribuir para a exigência de mais transparência por parte das plataformas. O Estado, nos últimos anos, tem buscado soluções mais imediatas para problemas profundos, como o crescimento do fenômeno da desinformação e a ausência de responsabilidade das plataformas, por meio da adoção de medidas que resguardem a democracia, como o PL nº 2.630. Além disso, o Ministério da Justiça tem um locus de atuação para contenção de violações a direitos, e a Secretaria de Políticas Digitais da Secom [Secretaria de Comunicação Social] promove a liberdade de expressão e os direitos na rede.
O Judiciário também vem buscando debater formas de enfrentar os desdobramentos da ausência regulatória, promovendo, por exemplo, o debate sobre a constitucionalidade do artigo 19 do MCI, sobre o qual nos posicionamos em audiência pública defendendo que as regras não podem afastar o dever das plataformas digitais diante de crianças e adolescentes.
As empresas de tecnologia e atores da sociedade também apresentam propostas, principalmente sugerindo a autorregulação, que é importante, como já se provou, mas não suficiente para assegurar direitos, sobretudo os das crianças.
O PL nº 2.630 surgiu como uma proposta voltada à moderação de conteúdo por conta da circulação de fake news nas eleições, mas ganhou novos contornos e se transformou numa proposta legislativa mais ampla, ligada à responsabilização das plataformas em termos de transparência, prevenção de abusos e garantia de liberdades. O debate sobre o PL já dura mais de três anos, com mais de 20 audiências públicas realizadas. Com o ocorrido em 8 de janeiro [invasão das sedes dos Três Poderes, em Brasília – DF] e os recentes ataques às escolas, sua aprovação torna-se imprescindível.
Com relação a crianças e adolescentes, o texto atual do PL é bastante bem-vindo, por prever o melhor interesse da criança e a adoção de medidas para assegurar sua privacidade, proteção de dados e segurança, vedando, por exemplo, a criação de perfis comportamentais desses usuários a partir da coleta e do tratamento de seus dados pessoais para fins de publicidade.
Contudo, ainda não temos uma autoridade independente e multissetorial que promova a inspeção do cumprimento da lei.
O que ainda precisa melhorar?
MM (Alana): Devemos ter um olhar bastante cuidadoso para o design das plataformas – que se baseia no desenvolvimento e na concepção de produtos ou serviços que possam ser acessados por crianças de forma segura, que respeite as expectativas dos usuários e não abrigue interesses ocultos –; ao tema da conectividade significativa e ao letramento digital.
O problema da conectividade significativa está intimamente ligado à ausência de políticas de universalização da internet e ao papel das empresas e do Estado. Uma criança ou um adolescente que acessa a internet somente pelo celular terá mais dificuldade para manter uma conexão estável enquanto estuda, por exemplo. E quando seu pacote de dados acabar, ela poderá acessar apenas plataformas parceiras das operadoras - que pela lógica da economia da atenção submetem mais as pessoas à publicidade, a conteúdos tóxicos e à coleta de seus dados, além de as subordinarem a estratégias que acabam por moldar sua visão de mundo.
Por isso, além de regulação, de oferta de conectividade significativa e de compromisso das empresas de tecnologia com a arquitetura adequada a crianças e adolescentes, é fundamental haver investimento em educação para as mídias, para além do que se entende como "letramento digital". Trata-se do desenvolvimento, por meio de processos educacionais, de habilidades críticas e analíticas que envolvam a participação ativa e transformadora e a criação de espaços digitais que garantam a cidadania.
Quais os impactos já sentidos pela sociedade e o que pode se agravar se nada for feito?
MM (Alana): Temos preocupação com a falta de responsabilização por problemas em plataformas de comércio eletrônico. Por exemplo, a venda de produtos ilícitos.
Na discussão do PL nº 2.630, os dois principais impactos são: a retirada indevida de conteúdos online e a disseminação de desinformação. As plataformas têm um poder desenfreado e elas têm ditado, por si só, as regras de moderação de conteúdo, sem uma regulação pública e democrática sobre o assunto. Precisamos de regras mais claras para equilibrar todos os direitos.
Além disso, precisamos avançar no desenvolvimento de uma regulação econômico-concorrencial para controlar o poder das plataformas. Mas isso é cena dos próximos capítulos.