EM DEFESA DA EQUIDADE
As leis que estabelecem os direitos das pessoas com deficiência são relativamente novas no Brasil e ainda desconhecidas por grande parte da população. Conheça alguns direitos relacionados ao lazer e a viagens
Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Ministério da Saúde em 2019, cerca de 17,3 milhões de brasileiros (8,4% da população com mais de dois anos de idade) têm algum tipo de deficiência. Mas embora o número seja bastante expressivo, o Brasil ainda está muito longe de ser um país inclusivo. Laís Lacerda, 24 anos, tem paralisia cerebral e sabe bem disso. Ela recebeu muitas respostas negativas em processos seletivos até ser contratada pelo Idec, em agosto de 2022, para trabalhar em suas redes sociais.
E se hoje as pessoas com deficiência, chamadas de PcD, ainda enfrentam muitas dificuldades, é importante lembrar que o cenário era bem pior há algumas décadas, quando as leis que estabeleciam os direitos desses cidadãos eram esparsas, muitas delas estaduais. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146) foi promulgada apenas em 2015. "O Estatuto da Pessoa com Deficiência [como também é conhecida a Lei nº 13.146) foi um reflexo da Convenção Internacional de Direitos das Pessoas com Deficiência [da Organização das Nações Unidas, ONU] e um clamor da própria Constituição Federal, de 1988, que fala da inclusão e da não discriminação de forma geral. Ficamos até 2015 sem uma lei que trouxesse disposições mais específicas, com definições, parâmetros, obstáculos e princípios (direito ao trabalho, ao desporto, à educação, à cultura, à liberdade de locomoção etc.)", explica David Douglas Guedes, advogado da área de Relacionamento com o Associado do Idec. Ele explica, ainda, que até 2015, as pessoas com deficiência intelectual eram automaticamente consideradas incapazes, pois isso estava previsto no Código Civil de 2002. "Com o Estatuto isso caiu por terra. A princípio, a pessoa é considerada capaz. Apenas as que não têm condições cognitivas e psicológicas para tomar decisões sozinhas podem ser amparadas ou representadas, caso queiram. Ou seja, essa lei permitiu à pessoa com deficiência ser protagonista de sua vida", ele declara, completando: "O Estatuto não é perfeito, mas garante autonomia e dignidade à pessoa com deficiência".
Infelizmente, os direitos das PcD ainda são desconhecidos pela maioria dos brasileiros. Foi por isso que decidimos fazer essa reportagem, focando em lazer (eventos culturais, restaurantes etc.) e viagens, pois como canta a banda Titãs: "A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte (…). A gente não quer só comer, a gente quer prazer pra aliviar a dor".
DIREITO DE SE DIVERTIR
Todas as pessoas, tenham ou não deficiência, têm o direito de se divertir. Mas, infelizmente, para uma PcD nem sempre isso é possível. "Por conta da deficiência, muita gente acaba ficando mais em casa", afirma Guedes, que tem uma irmã de 24 anos com deficiências física e intelectual. "Ela teve hidrocefalia quando era bebê e ficou com sequelas. Ela não anda nem interage com ninguém, é totalmente dependente da minha mãe e da minha outra irmã", ele conta. E relata, ainda, que a cidade onde elas moram, Mongaguá, no litoral de São Paulo, é zero acessível. A rua da casa delas é de paralelepípedo e não tem rampa para a cadeira de rodas. Assim, a irmã raramente sai de casa. Lacerda passa pelo mesmo problema: "Minha rua não é acessível, ela é estreita, e o asfalto está quebrado".
QUEM SÃO AS PcDs?
Segundo o artigo 1º da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2006, "pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interações com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas". Assim, são consideradas PcDs, pessoas ostomizadas ou que tenham paraplegia, tetraplegia, ausência de um membro, dentre outras deficiências que limitam o movimento; nanismo; paralisia cerebral; membros com deformidade adquirida ou congênita; deficiências visuais (cegueira, baixa visão ou visão monocular); deficiências auditivas; Síndrome de Down; Transtorno do Espectro Autista, entre outras deficiências intelectuais.
A organista e cantora Carolina Rúbia Zattar de Carvalho, 44 anos, tem mais sorte nesse sentido. Cega de nascença, ela tem muitas amigas, a maioria das igrejas onde trabalha, com quem costuma sair para tomar café ou um lanche. "Acabo não tendo muitas dificuldades porque nunca ando sozinha, e em restaurantes as pessoas leem o cardápio para mim. Então, não preciso dele em braille", ela diz. "O cardápio em braille é um direito das pessoas com deficiência visual, mas não é todo restaurante que tem. Felizmente, hoje, os cegos contam com a tecnologia, por exemplo, aplicativos que leem o texto e o transformam em áudio", informa Camila Varela, secretária da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP). E completa: "O mundo ainda não está preparado para as pessoas com deficiência, por isso precisamos cobrar melhores condições".
CONHEÇA ALGUNS DIREITOS
MEIA-ENTRADA EM EVENTOS
Pessoas com deficiência podem comprar ingressos para shows, exposições, cinema, teatro, espetáculos circenses e de dança, eventos esportivos etc. com 50% de desconto. Esse direito é garantido pelo Decreto Federal nº 8.537/2015, que regulamenta a Lei nº 12.933/2013 (Lei da Meia-Entrada).
Para conseguir o benefício é preciso apresentar um documento que comprove a deficiência, como a carteira de identidade PcD, que pode ser útil em outras situações, principalmente para as deficiências invisíveis, como o autismo. "Muitas vezes, os autistas não têm seus direitos respeitados, porque as pessoas duvidam da deficiência", diz Varela, que recomenda que essas pessoas tenham também a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea), criada pela Lei nº 13.977/2020, que ficou conhecida como Lei Romeo Mion (filho do apresentador Marcos Mion). "Com essa carteirinha, os autistas são identificados e fica mais fácil fazer valer os seus direitos", reforça a advogada.
Caso a pessoa com deficiência necessite de um acompanhante, ele também terá direito à meia-entrada.
BARES E RESTAURANTES ACESSÍVEIS
Diferentemente de idosos e gestantes, a pessoa com deficiência não tem prioridade na fila de espera de bares e restaurantes. Os direitos nesses locais estão restritos à acessibilidade arquitetônica, por exemplo, rampa para que a pessoa acesse o estabelecimento e o banheiro, que deve ser adaptado. "Eu encontro muitos banheiros com o vaso sanitário muito baixo, que não são ideais para mim", conta a funcionária pública aposentada Lília Raquel Souza, associada do Idec desde 2013, que tem Síndrome Pós-Pólio e anda com duas muletas.
Já para Lacerda, a maior dificuldade é colocar a comida no prato em restaurantes self-service. "É difícil segurar o prato com uma mão e pegar o feijão com a concha usando a outra, por exemplo. Se a mesa fosse mais baixa ou se tivesse um lugar para eu apoiar o prato me ajudaria".
Para a estudante Analiz Pinto Carôso Souza, 21 anos, que tem nanismo, em restaurantes e bares, o problema é que a mesa e a cadeira costumam ser altas e, por conta da baixa estatura, ela tem dificuldade para se sentar. Mas o que a incomoda mais é o preconceito, não dos garçons, mas dos clientes. "Em São Paulo é super de boa, mas na minha cidade [Jequié, BA], as pessoas são muito preconceituosas", ela desabafa.
HOTÉIS ACESSÍVEIS
Hotéis também precisam ser arquitetonicamente acessíveis, segundo a Lei Brasileira de Inclusão para Pessoas com Deficiência. Os hotéis novos já seguem as diretrizes impostas pela legislação, o problema é que a rede hoteleira do Brasil é bem antiga. "Muitas vezes, o hotel tem rampas, o quarto é espaçoso, mas quando chega no banheiro, ele é apertado e com trilho no boxe, o que dificulta o acesso", exemplifica Varela. Ela sugere: "Se não der para reformar o espaço inteiro, que pelo menos reserve uma porcentagem dos quartos para as pessoas com deficiência".
Lília lembra que muitos hotéis não têm piso antiderrapante no banheiro nem barras de apoio ao lado do vaso sanitário. "Cada deficiência tem as suas necessidades. Eu preciso de um apoio para sentar e levantar, e essas barras ajudam muito".
Analiz, que costuma viajar bastante com a família, diz que não costuma encontrar hotéis acessíveis. Por outro lado, viajar de avião é tranquilo. "Viajei sozinha em outubro de 2022 e não tive problema. A companhia aérea disponibilizou uma pessoa que me levou de cadeira de rodas do check-in até a porta do avião e, quando eu cheguei lá, do avião até o táxi".
AVIÕES ADAPTADOS
Pessoas com deficiência têm direito a comprar passagem de avião com 80% de desconto para o seu acompanhante, de acordo com a Resolução nº 230/2013, da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac). "Uma pessoa com multiparalisia, por exemplo, que só se movimenta do pescoço para cima, não consegue colocar a máscara de oxigênio sozinha no caso de uma emergência", ela justifica.
Para conseguir esse benefício é preciso requisitar à companhia aérea o Medical Information Form (Medif), indicado para autistas e pessoas com deficiência visual que viagem com cão-guia, ou o Frequent Traveller Medical Card (Fremec), indicado para pessoas com deficiência física, auditiva, visual ou intelectual. Enquanto o primeiro precisa ser solicitado a cada viagem, o segundo vale por um ano.
Pessoas com deficiência devem ter preferência no check-in, no embarque e no desembarque, o que nem sempre acontece. "É comum cadeirantes serem esquecidos dentro da aeronave quando precisam de ambulift (aquela plataforma que os leva até o avião), porque em alguns aeroportos há pouquíssimos desses equipamentos. Se ele já estiver sendo usado em outro voo, a pessoa fica lá esperando", pontua Varela.
Um problema sério enfrentado por cadeirantes em viagens de avião é a ida ao banheiro. "Hoje, os corredores dos aviões são estreitos, e as cabines do toalete minúsculas, não dá para passar uma cadeira de rodas, que precisa ser despachada. Essas pessoas precisam usar fraldas, o que é um atentado à dignidade", critica Varela. A repaginação das aeronaves (principalmente, corredores mais largos e banheiros acessíveis) é imperativo. Porém, as empresas alegam que é economicamente inviável adaptá-las. "Outro dia, recebi uma denúncia na OAB de uma pessoa que teve de se arrastar pelo corredor do avião para chegar ao banheiro. Um absurdo", lembra a advogada. Lília conta que só consegue ir ao banheiro quando a aeronave está no solo: "Como o corredor e o banheiro são muito apertados, quando está voando eu tenho medo de cair".
Por fim, cães-guia não são considerados PET, mas um apoio necessário a deficientes visuais, portanto não pagam passagem. A entrada deles é autorizada não apenas em aviões, mas em lojas, restaurantes, hotéis etc. Embora algumas ONGs treinem e doem cães-guia, o processo é bastante burocrático. Além disso, o custo com ração, banho e vacinas é alto. "É meu sonho ter um cão-guia, mas já me conformei que não será possível", lamenta Carvalho.
PASSE LIVRE EM VIAGENS INTERESTADUAIS
Pessoas com deficiência que comprovem que a renda mensal é de até um salário mínimo por membro da família podem viajar de ônibus, trem ou barco gratuitamente entre estados do País, por exemplo, de São Paulo (SP) a Belo Horizonte (BH). O passe livre é garantido pela Lei nº 8.899/1994, regulamentada pelo Decreto nº 3.691/2000, e pode ser requerido no site da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) – http://bit.ly/3ELqM9A – ou pelo correio.
O benefício também vale para um acompanhante (que também precisa comprovar baixa renda), mas é preciso um atestado médico (um dos documentos obrigatórios) alegando que a pessoa não consegue se locomover sozinha.
Para viagens entre municípios do mesmo estado, as regras variam porque são determinadas por leis municipais.
CIDADES ACESSÍVEIS
Em fevereiro, o estado de São Paulo promulgou a Lei nº 17.624/2023, que cria o Selo de Acessibilidade, um tipo de certificado que será oferecido aos municípios que adotarem medidas que garantam a acessibilidade de pessoas com deficiência. "Esse selo vai incentivar os prefeitos a criarem condições de inclusão em suas cidades", acredita David Douglas Guedes, do Idec.
Saiba mais
- Cartilha do Passe Livre: https://bit.ly/3ENSHFT
- Cartilha Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista, da OAB-SP: https://bit.ly/3Y4UVHO
- Cartilha Conheça os direitos das pessoas com deficiência, da OAB-SP e da Casa de David: https://bit.ly/3kznGi0