Telemarketing abusivo
Com regras cada vez mais eficazes, Brasil busca barrar o telemarketing abusivo
O dia nem amanheceu quando o publicitário Lucas Malfa recebe a primeira ligação. Sem olhar o número, ele ignora. Um pouco mais tarde, outro número aparece na tela de seu celular, e ele também não atende. As chamadas continuam ao longo de todo o dia, acumulando-se na lista de não atendidas. "É o dia inteiro assim, ligam sem parar, e quando atendo, logo desligam ou oferecem um produto de que nunca ouvi falar", comenta Malfa.
As ligações insistentes parecem ser uma herança de família. Seus pais sempre receberam muitos telefonemas na linha fixa, e para conseguirem ter um pouco de sossego tiravam o telefone do gancho. Agora, é Malfa que cria técnicas para não ser importunado. "Meu celular vive no silencioso. Quem me conhece e quer falar comigo liga pelo WhatsApp", ele conta.
O publicitário e sua família não são exceção. Em 2019, uma pesquisa realizada a partir de dados da plataforma Consumidor.gov.br, criada pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), mostrou que as operadoras de telefonia foram líderes de reclamações (36,9%), seguidas por bancos, financeiras e administradoras de cartão de crédito (24,3%), que também utilizam o telemarketing para oferecer seus produtos por telefone. A secretaria também divulgou, na época, que 92% dos consumidores afirmaram não ter relação com a empresa da qual recebem ligações e 99% não tinham autorizado o recebimento de ligações para oferta de produtos e serviços.
A advogada do Programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec Camila Leite explica que o telemarketing é um serviço lícito desde que a pessoa tenha autorizado o recebimento de ligações ou tenha relação prévia com a empresa. Por exemplo, o banco em que você tem conta ou a companhia de telefonia a que seu número está vinculado. "A abusividade ocorre quando as ligações são insistentes e em horários inoportunos; quando você não sabe como conseguiram o seu telefone e quando não há consentimento prévio", ela explica.
A situação também é abusiva quando se aproveitam da vulnerabilidade de alguns consumidores, como é o caso do assédio a idosos e aposentados para que contratem empréstimos consignados. "Essa situação é tão extrema que é consenso que existe abusividade. Obviamente, a gente não quer acabar com o telemarketing lícito, mas está mais do que na hora de termos regras mais claras para o setor e maior proteção para os consumidores", avalia Leite.
O INÍCIO DAS MUDANÇAS
A Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) possuem artigos que podem ser aplicados no combate ao telemarketing abusivo, como o princípio que zela pela intimidade e privacidade. Mas como não há uma lei unificada que consolide a regulação do setor, ainda há muita abusividade.
Felizmente, as denúncias e a pressão feitas pelo Idec e outras organizações têm surtido efeito em prol de maior proteção aos consumidores. Nos últimos anos, surgiram leis e listas de bloqueio para minimizar a importunação. A mais famosa é a Não me Perturbe, criada em 2019 pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Nela, o consumidor indica quais empresas de telecomunicações e instituições financeiras que oferecem crédito consignado não podem contatá-lo.
O QUE FAZER PARA NÃO RECEBER LIGAÇÕES
Cadastre-se em sites de bloqueio de telemarketing, como o Não me Perturbe;
Entre em contato com o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) e a ouvidoria da empresa para fazer uma reclamação formal;
Registre suas reclamações e denúncias no Procon de seu município, na plataforma Consumidor.gov.br e nos canais de atendimento da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel);
Acesse https://bit.ly/3HxySoz para denunciar ao Ministério da Justiça e Segurança Pública;
Caso tenha tentado todos esses canais e continue sendo importunado, uma possibilidade é entrar com uma ação judicial por dano moral.
De acordo com Cristiana Camarate, superintendente de relações com consumidores da Anatel, mais de 10 milhões de pessoas estão cadastradas nessas listas de bloqueios. Entretanto, para Leite, do Idec, a eficácia dessas listas é muito limitada: "As listas são importantes, mas as reclamações continuam altas, pois apenas dois setores são contemplados [telecomunicações e crédito consignado], e a abrangência é pequena, já que nem todo mundo sabe que elas existem".
Camarate reconhece que ainda há muito a ser feito. "De fato, as listas não resolveram o problema do telemarketing abusivo de modo geral, mas posso falar com segurança que em relação ao setor de telecomunicações houve sim uma melhora", ela afirma.
NOVAS ONDAS
Camarate gosta de classificar as mudanças do setor de telemarketing como "ondas". Após o lançamento das listas, a Anatel percebeu que era preciso ajudar o consumidor a identificar as empresas que ligam insistentemente para oferecer produtos e serviços. A agência iniciou, então, uma nova onda, obrigando as empresas do setor a utilizarem o prefixo 0303, para deixar claro ao consumidor que aquela é uma chamada de telemarketing. O órgão também determinou o uso do prefixo 0304 para as chamadas de cobrança, com o mesmo objetivo. Apenas instituições que solicitam doações não precisam usar esses códigos.
Pouco tempo depois iniciou-se a terceira onda. Em junho, o Conselho Diretor da agência aprovou, por unanimidade, a revogação da gratuidade para chamadas com duração de até três segundos, a fim de dificultar a ação de empresas que usam robôs para discagem em massa. "Até então, qualquer chamada que durasse três segundos não era cobrada. Isso era bom para o consumidor, o problema é que as empresas de telemarketing usam robôs para ligar para vários números e desligam antes dos três segundos pra não serem tarifadas", destaca Leite.
Na mesma época, a Anatel baixou uma medida cautelar para barrar a prática abusiva das robocalls ou chamadas automáticas, iniciando a quarta onda. O órgão determinou que as companhias de telecomunicações informassem quais empresas fizeram 100 mil chamadas por dia com até três segundos, para que fossem alertadas a cessar a prática sob pena de bloqueio e multa, que pode chegar a R$ 50 milhões. "Chamadas acima da capacidade humana de discagem são consideradas indevidas, inadequadas e sobrecarregam o serviço de telecomunicações. E para a Anatel elas são consideradas telemarketing abusivo", diz Camarate.
A Anatel não está sozinha na busca por melhores regras. Em julho, a Senacon suspendeu, por meio de uma medida cautelar, 180 empresas suspeitas de realizarem telemarketing abusivo. Em parceria com os Procons, a decisão mencionou contribuições do Idec que mostram a ineficácia das listas de bloqueio instituídas por órgãos de proteção de defesa do consumidor e por empresas de alguns setores. "A decisão da Senacon é uma importante demonstração de preocupação com a origem dos bancos de dados de telefones e um relevante reconhecimento da defesa histórica do Idec por um telemarketing com consentimento prévio", enfatiza Leite.
Já em novembro, uma nova medida cautelar da Anatel entrou em vigor, com critérios mais precisos para barrar práticas abusivas. Ela determinou que as linhas telefônicas de uma empresa sejam bloqueadas se fizerem ao menos 100 mil chamadas por dia (somando todas as linhas) e se 85% das 100 mil chamadas tiverem duração de zero a três segundos. A agência também se comprometeu a divulgar mensalmente, a partir de dezembro, o nome das empresas que mais perturbarem o consumidor. "Eu posso garantir que as empresas de teleserviço estão muitíssimo preocupadas, porque a média é de 10 ligações para um atendimento, e o que estamos propondo são 10 ligações para 8,5 atendimentos", destaca Camarate, completando: "Não somos contra eficiência, mas a eficiência não pode ser perturbadora".
CENÁRIO IDEAL
Com a chegada de novas tecnologias, a perturbação foi migrando das chamadas telefônicas para o SMS e, agora, para aplicativos como o WhatsApp. "As pessoas podem não ter noção da dimensão porque ainda estamos nesse movimento migratório, mas exatamente por isso temos de nos atentar e criar regras também para SMS e aplicativos", defende Leite, do Idec.
Está tramitando na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) nº 8.195/2017, que cria um cadastro nacional para o bloqueio de ligações de telemarketing de setores não contemplados pelo Não me Perturbe. Caso aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, o PL segue para o Senado. O texto também impede o contato com o consumidor cadastrado por meio de mensagens de texto. O Idec tem atuado na criação desse projeto, que é uma forma de regulamentar esse setor.
Para o Idec, a solução tem de ser mais abrangente: se a pessoa não tem relação prévia com a empresa e não demonstrou interesse em receber oferta de produtos e serviços, o telemarketing deve ser proibido. "A legislação vigente (em especial, a Constituição Federal, o CDC e a LGPD) já deveria levar a uma interpretação mais protetiva dos consumidores. Mas uma lei unificada do setor de telemarketing pode ser a solução definitiva contra a abusividade a que grande parte da população vem sendo submetida", conclui a pesquisadora do Idec.