Vacinas salvam vidas
Dados divulgados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que a taxa de vacinação infantil contra tétano, coqueluche e difteria sofreu uma queda brusca no Brasil, de 96% em 2016 para 68% em 2021. Mas esse não é um problema exclusivamente brasileiro. Muitos outros países estão enfrentando essa situação, que é bastante preocupante, já que recentemente casos de poliomielite – doença erradicada no Brasil desde 1994 – foram registrados nos Estados Unidos e no Reino Unido.
Para entender o quão grave é esse cenário, quais os motivos e o que pode ser feito para mudá-lo, conversamos com a pediatra norte-americana Lynn Silver, que morou por 15 anos no Brasil e tem vasta experiência em saúde pública. A entrevista foi feita por teleconferência, em português, dias antes do segundo turno das eleições presidenciais brasileiras. Confira a seguir:
LYNN SILVER é pediatra formada pela Universidade Johns Hopkins e defensora da saúde pública. Atualmente, é conselheira sênior no Public Health Institute, instituição sem fins lucrativos com sede na Califórnia (EUA), e professora clínica da Universidade da Califórnia. No Brasil, foi professora associada da Universidade de Brasília, de 1997 a 2004, e coordenou os trabalhos do Idec na capital federal, de 1997 a 2002.
Qual a importância histórica dos programas de imunização?
Lynn Silver: Imensa. O progresso da imunização é um dos grandes avanços da saúde mundial no último século. Nós eliminamos a varíola mundialmente, e a poliomielite e o sarampo em quase todos os países. Foram vitórias extraordinárias, mas as pessoas se esquecem do quão grave eram essas doenças, de quantas pessoas ficaram paralisadas por causa da poliomielite. Quando eu comecei minha carreira na saúde pública, em 1979, na Nicarágua, teve uma epidemia de sarampo na região rural onde eu trabalhava e estima-se que morreram em torno de 1 mil crianças. Era um período pós-guerra, com altos índices de desnutrição, e as crianças estavam vulneráveis, não imunizadas. Foi dramático.
Recentemente, os Estados Unidos registraram um caso de poliomielite, e o Brasil está em alerta para seu retorno. Qual é o impacto dessa notícia e o que ela significa?
LS: Nos Estados Unidos temos uma taxa relativamente alta de vacinação em geral, mas não tão elevada como deveria ser. A taxa para a pólio é de 96%, mas há alguns grupos religiosos que resistem à vacinação, além de pessoas que acreditam na desinformação e não vacinam seus filhos.
E o caso registrado no estado de Nova York mostra que a poliomielite pode voltar a qualquer momento, se houver uma comunidade ou um grupo de crianças ou adultos não vacinado. Em Nova York, a poliomielite detectada nas água de esgoto é a da variante derivada de vacinas com o vírus vivo, ainda usadas em alguns países. Mas no Paquistão e no Afeganistão ainda há casos da poliomielite tradicional. Isso é preocupante nos Estados Unidos, mas deve preocupar muito mais o Brasil, que já foi orgulho mundial na cobertura vacinal, com um trabalho maravilhoso. Até 2015, as taxas de vacinação para a poliomielite eram de 98%, mas de 2016 em diante as taxas caíram drasticamente, para 72%; depois subiram um pouco em 2018, para 85%; e baixaram de novo na pandemia, chegando a 68% em 2021. Esses dados são do Unicef.
Os números sugerem que durante os últimos seis anos, o Programa Nacional de Imunização (PNI) não alcançou a infância brasileira com a mesma eficácia de antes e que é essencial que, independentemente da barreira – operacional, financeira ou de informação –, o programa receba o apoio do Governo e da população para corrigir a situação. Os números também revelam que as crianças brasileiras estão vulneráveis ao retorno da pólio e do sarampo, doenças eliminadas no País, mas não do mundo, e de outras doenças infecciosas que tinham se tornado raras no território brasileiro, como difteria, tétano e coqueluche. Essa situação mostra o perigo da desinformação, que se intensificou durante a pandemia de Covid-19, influenciando o ponto de vista da população sobre vacinação e aumentando a desconfiança não justificada.
É muito assustador que o Brasil tenha atingido níveis tão baixos e superurgente que ele recupere sua liderança histórica em vacinação.
Quais podem ser os motivos dessa queda em um país com um ótimo histórico de vacinação?
LS: A desinformação e o desprezo à ciência, que caracterizaram as administrações dos presidentes [Jair] Bolsonaro e [Donald] Trump tiveram um efeito bastante preocupante na confiança das populações brasileira e americana nas vacinas, e isso é muito perigoso.
A vacina contra Covid, afortunadamente, tem se mostrado extremamente eficaz e segura, com mínimos problemas, apesar de ter sido desenvolvida rapidamente. Mas foram tantas mentiras circulando nas mídias sociais e na imprensa, como a teoria de que a vacina continha um chip que deixaria as mulheres estéreis, que o que deveria ter sido uma vitória enorme da saúde pública tornou-se uma batalha política imensa nos EUA e no Brasil. As taxas de vacinação contra Covid no Brasil são melhores dos que as dos EUA. Aqui, ainda há muitas mortes, principalmente nos estados republicanos. É realmente triste ver a que ponto chegamos por conta da desinformação.
E o que pode ser feito para mudar essa situação, combatendo a desinformação e aumentando os níveis de vacinação?
LS: Presidentes da República que falam mentiras, promovendo medicamentos ineficazes como hidroxicloroquina e ivermectina, e levantando dúvidas sobre a eficácia de vacinas, são extremamente perigosos para a saúde pública. E vimos os efeitos disso nos últimos dois anos. Então, trocar de governo é importante. Aqui nos Estados Unidos já trocamos o Governo Federal, mas a desinformação continua sendo disseminada por congressistas, governadores e outras lideranças de extrema direita. Espero que com a saída do [presidente Jair] Bolsonaro, essa situação melhore. Mas como o SUS é um sistema descentralizado, é preciso apoio de todos os estados e municípios do País.
Uma reportagem da BBC afirma que a falta de dados confiáveis e atualizados sobre quantos brasileiros realmente tomaram as doses dos imunizantes disponíveis na rede pública de cada município é um problema que pode influenciar as baixas taxas de vacinação. O que você acha dessa "teoria"?
LS: É possível que a falta de vigilância adequada dos serviços de vacinação tenha influenciado as estatísticas reportadas sobre vacinação, mas a queda foi bastante dramática, então duvido que tenha sido só isso. E como disse antes, a piora dos índices de imunizações tradicionais começou antes da pandemia, em 2016.
Quais os riscos que as crianças que não estão com o Programa Nacional de Imunização (PNI) em dia correm?
LS: Os riscos são reais de contrair sarampo, pólio etc. No caso da poliomielite, ela pode retornar a qualquer momento, pois como o vírus está circulando nos Estados Unidos e no Reino Unido – que estava livre de casos desde 1984 –, por exemplo, ele pode ser levado para o Brasil. Além disso, o vírus tradicional também existe no Paquistão e no Afeganistão. O movimento de pessoas que viajam de um país para outro a negócio ou a turismo, além de militares e refugiados, pode reintroduzir doenças, como vimos várias vezes com o sarampo. Então, não podemos dormir no ponto.
E qual o papel do Sistema Único de Saúde (SUS) para reverter essa situação e retomar os bons índices da vacinação infantil?
LS: O SUS é o coração da saúde pública brasileira. Alguns falam que os serviços privados são melhores e defendem a privatização da saúde, mas eu não concordo. Os países com os melhores resultados na imunização são aqueles que têm fortes sistemas de saúde pública e seguro universal de saúde, o que não é o caso dos EUA. Dependendo dos resultados das eleições, espero que o compromisso público com o SUS volte e ele receba o apoio que precisa para retomar seus bons resultados. Os esforços de vacinação requerem liderança, pessoas e orçamento.
É comum ouvirmos que uma doença está erradicada. O que isso significa?
LS: Significa que não foram registrados casos de uma determinada doença em certo país durante um certo período de tempo, mas não quer dizer que o vírus não existe mais no mundo e que não possam surgir novos casos. O sarampo estava erradicado em vários países, mas voltou porque havia grupos de pessoas não vacinadas. Já a varíola, graças a uma imensa campanha global, teve erradicação mundial e não retornou. No caso da poliomielite, o último caso registrado no Brasil foi em 1989, e em 1994 a doença foi declarada erradicada do País.
Será que um dia a Covid-19 será erradicada do mundo?
LS: Os experts em virologia acreditam que a Covid será como a Influenza, ou seja, circulará com novas variantes durante muitos anos. Por isso é tão importante que as pessoas se vacinem e tomem os reforços. Aqui nos EUA, ainda morrem 350 pessoas por dia. A vacina tem diminuído muito a frequência de casos graves, mas o vírus não foi eliminado, ele ainda circula.
Como foi o processo de imunização contra a Covid-19 nos EUA? Há semelhanças com o Brasil?
LS: Tivemos muito sucesso no desenvolvimento das vacinas, pois os EUA apoiaram fortemente a tecnologia para que elas fossem criadas. Que a ciência tenha avançado ao ponto de conseguirmos inventar e aplicar vacinas seguras e eficazes em tão pouco tempo é um ponto muito positivo. Mas a entrega operacional das vacinas para a população foi bastante problemática, porque nos EUA, tradicionalmente, as vacinas são dadas pelos médicos da atenção primária e não por meio de campanhas de imunização com base comunitária. No entanto, esse modelo não era o mais adequado para a vacinação rápida de 300 milhões de pessoas. Era preciso criar estruturas de vacinação de massa, e isso foi parte do problema.
Eu teria levado as vacinas ao povo, ido de casa em casa, feito mais campanhas educativas de massa e entregado vacinas nas escolas e nas comunidades, de forma mais proativa, a exemplo das campanhas nacionais de imunização realizadas durante décadas no Brasil e em muitos outros países. Gostaria que tivesse sido marcada uma consulta para cada pessoa do país se vacinar. Mas não, nós ficamos esperando que as pessoas tivessem a iniciativa de procurar seus médicos ou fossem à farmácia para se vacinarem. A capacidade de responder a uma situação emergencial e rapidamente atingir um elevado nível de vacinação foi muito difícil para os EUA. Isso funcionou melhor em países com sistemas universais de saúde, como o Brasil.
Eu estou organizando campanhas de comunicação para os pais sobre a necessidade de vacinar suas crianças. Mas todo esse esforço tem sido enfraquecido pelo movimento antivacinação. É chocante que um dos países mais ricos do mundo e que participou ativamente da invenção da tecnologia das vacinas não consegue vacinar a população em níveis suficientes. Eu trabalhei muitos anos com o Idec criticando a indústria farmacêutica e muitos produtos inseguros ou ineficazes que eram comercializados no Brasil. A existência de alguns produtos não confiáveis continua sendo um problema. Contudo, as vacinas estão entre os produtos mais seguros e eficazes, cientificamente comprovados. Como alguém que trabalhou muitos anos com o movimento de defesa do consumidor, contra práticas problemáticas da indústria farmacêutica, eu tenho confiança em dizer que as principais vacinas contra a Covid, sejam elas produzidas pelas empresas farmacêuticas, como Pfizer ou Moderna, ou por laboratórios públicos, como a Fiocruz, são seguras e eficazes.
E quais as perspectivas para o futuro?
LS: É uma situação curiosa, porque nunca tivemos tão boas tecnologias para o desenvolvimento de imunizações, mas por outro lado, a confiança pública nessas tecnologias, que realmente salvam vidas, nunca esteve tão abalada. As pessoas estão sujeitas a ondas de desinformação maciça, que quebraram o pacto de confiança dos pais com o sistema de saúde e as vacinas, que são seguras, eficazes e oferecem enormes benefícios aos filhos. Isso é muito assustador.
Tenho medo do que acontecerá no futuro. Precisamos de muita competência dos governos e das entidades de saúde para reconstruir a confiança na ciência e recuperar a fé na vacinação. Vamos ter de investir em comunicação durante décadas para restabelecer essa confiança e também para assegurar que os programas nacionais de imunização sejam financiados e operacionalizados de forma exemplar.