Mais veneno no pacote
Segunda fase de estudo do Idec que detectou resíduos de agrotóxicos em alimentos ultraprocessados tem resultados ainda mais chocantes para produtos à base de carne e leite
Talvez você se lembre que em 2021 publicamos um estudo inédito, que chamamos de "Tem veneno nesse pacote". Nele testamos alguns dos produtos ultraprocessados, de diversas categorias, mais consumidos pelos brasileiros, para saber se eles continham agrotóxicos. E o resultado foi chocante: 59,3% das amostras analisadas continham resíduos. "Cumprimos nosso papel de alertar a sociedade e cobrar regulação, monitoramento e fiscalização adequados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), além de melhores políticas públicas dos poderes Executivo e Legislativo que fomentem a produção de alimentos orgânicos e restrinjam a oferta de ultraprocessados, além de respostas e medidas cabíveis da indústria", diz Rafael Arantes, coordenador do Programa Consumo Sustentável do Idec e responsável pela pesquisa.
Mas não parou por aí. O Idec decidiu fazer uma segunda fase de testes, desta vez com ultraprocessados à base de carne e leite. Outra vez os resultados foram gritantes: em 58% dos produtos (14 de 24) foram encontrados resíduos de agrotóxicos. "É importante informar a população sobre a presença de agrotóxicos também nos alimentos ultraprocessados, pois muitas pesquisas já identificaram essas substâncias em frutas, legumes e verduras in natura, e até na água, o que pode induzir o consumidor a pensar que esses alimentos são menos seguros do que os ultraprocessados", declara Arantes.
Para Karen Friedrich, servidora pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), e membro do grupo de trabalho Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), os resultados são extremamente preocupantes, embora não sejam uma surpresa. "Temos visto o aumento do uso dessas substâncias no País, pois diversas instâncias da fiscalização necessária precisam de estrutura, investimento e autonomia pra verificar o cumprimento da legislação. A liberação expressiva de agrotóxicos nos últimos anos e a falta de políticas de incentivo à agricultura familiar impactam o acesso a frutas, legumes e verduras, estimulando o consumo de produtos cultivados com agrotóxicos, transgênicos e ultraprocessados", ela destaca.
TEM VENENO NA MINHA CARNE
Dos 24 produtos testados, 14 continham resíduos de agrotóxicos, o que equivale a quase 60%. Apenas duas categorias estavam isentas de pesticidas (bebidas lácteas sabor chocolate e iogurte ultraprocessado) e em todas as categorias de carne havia resíduos. Contudo, Arantes alerta que isso não significa que esses produtos estejam livres de agrotóxicos. "O laboratório analisou apenas um lote. É possível que o resultado seja diferente para outros lotes. No entanto, o contrário não é verdadeiro: não existe 'falso positivo'. Ou seja, não é possível que a análise tenha detectado resíduos de agrotóxicos, sendo que, na realidade, o produto não estava contaminado", ele explica.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
"Selecionamos 24 amostras de produtos de oito categorias de alimentos ultraprocessados à base de carne e leite que estão entre alguns dos mais consumidos pelos brasileiros, como salsicha, empanado de frango e requeijão. Para isso, foram considerados dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017/2018 e da pesquisa Top of Mind do Datafolha.
Os objetivos principais da pesquisa foram: 1. verificar a presença de resíduos de agrotóxicos nos ultraprocessados derivados de carne e leite; 2. Determinar a concentração dos agrotóxicos encontrados.
Os produtos selecionados foram enviados para análise em laboratório acreditado pelo Inmetro. Escolhemos um dos testes mais abrangentes, com capacidade de detectar resíduos de até 653 agrotóxicos diferentes.
Todas as empresas foram notificadas, assim como a Anvisa e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa)".
Rafael Arantes, coordenador do Programa Consumo Sustentável do Idec
Os "campeões do veneno" foram, em primeiro lugar, o empanado de frango (nugget) Turma da Mônica, da Seara, com cinco agrotóxicos; em segundo lugar, o requeijão Vigor, com quatro agrotóxicos; e em terceiro lugar, o requeijão Itambé e o empanado de frango (nugget) da Perdigão, ambos com três agrotóxicos. Veja todos os resultados na tabela abaixo. Um dos resultados mais alarmantes foi a presença de cinco tipos de agrotóxico no nugget Turma da Mônica, da Seara, que tem um apelo infantil em sua embalagem. "O uso de personagens para aumentar as vendas de produtos ultraprocessados é uma prática duramente criticada pelo Idec. Que esses produtos ainda apresentem resíduos de agrotóxicos é inaceitável", critica Arantes. Friedrich faz um alerta importante: "O que é muito grave nesse resultado é a existência de misturas de agrotóxicos no mesmo produto. É importante esclarecer que no momento do registro de um agrotóxico, considera-se apenas o efeito tóxico daquela substância, como se cada um de nós só tivéssemos contato com um veneno por vez. E o que vem sendo mostrado pelo Idec e pelas análises realizadas pela Anvisa no passado é que nosso prato de comida contém vários tipos de agrotóxicos misturados. E o efeito combinado dessas substâncias é muito preocupante". E segundo ela, os riscos são ainda maiores para as crianças: "Dependendo do agrotóxico utilizado, os efeitos são ainda mais graves para crianças. Por exemplo, aqueles que têm o potencial de alterar a função dos nossos hormônios são ainda mais impactantes durante o desenvolvimento infantil e podem ter reflexos para o resto da vida, como maior propensão a alguns tipos de câncer relacionados a órgãos sexuais, diabetes e problemas de tireoide".
GLIFOSATO E OUTROS VILÕES
O teste detectou diferentes tipos de agrotóxico de alta toxicidade, ou seja, que oferecem riscos para a saúde humana e para o meio ambiente. O principal é o glifosato, herbicida mais vendido no mundo. "Em 2015, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, da Organização Mundial da Saúde (OMS), após análise de centenas de estudos científicos, alertou que o glifosato pode causar câncer em seres humanos, além de danos renais, problemas hormonais e reprodutivos, dentre outros", informa Friedrich, completando: "Infelizmente, há muita dificuldade das autoridades regulatórias nacional e internacional para retirar esse produto do mercado. No entanto, algumas ações judiciais em vários países têm reconhecido as doenças e a necessidade de pagamento de multa e indenizações às vítimas".
Os outros agrotóxicos encontrados são inseticidas muito usados no País, inclusive em nossas residências, mas não menos perigosos. A cipermetrina e a bifentrina, por exemplo, são consideradas pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos cancerígenos para seres humanos e estão associadas a outros efeitos tóxicos para os sistemas nervoso, reprodutivo e imunológico. Já o firponil foi proibido na Europa por conta da toxicidade elevada para as abelhas, e a lambda-cialotrina deve sair do mercado europeu em breve. "Esse agrotóxico é um dos componentes do produto pulverizado sobre uma escola rural em Rio Verde (GO), em 2013, intoxicando 90 pessoas, entre crianças, adolescentes e funcionários", lembra Friedrich.
Diante de todas essas constatações, o Idec seguirá informando a sociedade e cobrando que a Anvisa comece a testar produtos ultraprocessados a fim de detectar se contêm resíduos de agrotóxicos e que volte a testar produtos in natura (a última avaliação foi feita há três anos), divulgando os resultados de forma contínua e frequente.