Idec faz 35 anos!
Julho é um mês de festa no Idec, pois celebramos seu "aniversário". E este ano ele apagou 35 velinhas! Ao longo dessas três décadas e meia, o Instituto se envolveu em incontáveis lutas pela defesa dos direitos do consumidor e conseguiu vitórias importantíssimas, sempre com o apoio fundamental de associados e associadas de todo o Brasil. Mas o início, lá no fim dos anos 1980, não foi nada fácil. E para lembrar o quanto foi preciso caminhar para chegar até aqui, conversamos com uma das idealizadoras do Idec (hoje, presidente do Conselho Diretor), Marilena Lazzarini. Num bate-papo superdescontraído por vídeoconferência, ela fez uma viagem no tempo para relembrar, com brilho nos olhos, fatos e histórias sobre a criação e fundação do Idec. O resultado você confere nas páginas a seguir.
MARILENA LAZZARINI é graduada em Engenharia Agrônoma pela Universidade de São Paulo (USP). Foi diretora do Procon-SP nos anos 1980 e uma das principais articuladoras da sociedade civil para a criação do Código de Defesa do Consumidor. De 2004 a 2007, foi presidente da Consumers International – organização não governamental que congrega entidades de defesa do consumidor em 115 países. É uma das fundadoras do Idec, tendo sido presidente e coordenadora executiva e institucional. Hoje, é presidente do Conselho Diretor.
O Idec foi oficialmente fundado em 21 de julho de 1987, num evento no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo (SP). Mas quanto tempo demorou das primeiras discussões sobre a ideia de se criar uma instituição de defesa do consumidor e isso de fato acontecer?
Marilena Lazzarini: Eu fui diretora do Procon de São Paulo (SP) de 1983 a 1986 e delegada da Sunab [Superintendência Nacional de Abastecimento] durante seis meses. Então, essa percepção de que era necessária a criação de uma associação independente no Brasil já existia, não só da minha parte, mas de outras pessoas que trabalhavam no Procon, na Vigilância Sanitária e em órgãos que atuavam direta ou indiretamente na defesa do consumidor.
O Procon era filiado à Consumers International, que na época chamava Ioco (International Organization of Consumers Union), e tive a oportunidade de participar, como diretora do Procon, de congressos e reuniões internacionais, onde conheci organizações não governamentais de defesa do consumidor dos EUA e de países europeus.
Saí da Sunab em fevereiro de 1987 e comecei a me reunir com alguns colegas para definir o projeto do Idec. E a concretização se deu em cinco meses, porque já tínhamos clareza de quais eram os objetivos. O Procon, naquela época, trabalhava basicamente com o atendimento de reclamações. E algo que era muito claro para nós é que as questões que afetam os consumidores têm em sua maioria absoluta uma natureza coletiva, por isso não queríamos atender casos individuais, porque isso não resolve a raíz do problema (muitas vezes, a solução é a mudança da prática de uma empresa e, para que isso aconteça, é preciso criar uma lei ou uma política pública). ´Tínhamos de construir esse modo de praticar a defesa coletiva dos consumidores. E o Idec foi pioneiro nisso.
Quem participou dessas discussões?
ML: Participavam das reuniões na casa da socióloga Maria das Graças Cavalcanti, além de mim e dela, a engenheira-agrônoma Maria Cândida Peres, a advogada Elici Bueno, a socióloga Fátima Pacheco Jordão, o promotor de Justiça Vidal Serrano e os economistas Adriano Campos e Sérgio Dedecca, entre outros. Mas o número de fundadores é maior do que o número de idealizadores, porque convidamos muita gente para participar. Por exemplo, o jurista Walter Ceneviva nos ajudou a formular o Estatuto do Idec.
O que uniu o nosso grupo foi a experiência de fazer direito do consumidor com base numa legislação esparsa, pois a palavra consumidor nem existia nas leis. As leis que tratavam de alimentos, medicamentos etc. protegiam o consumidor de forma indireta. Outro ponto que tínhamos em comum era a luta pela retomada da democracia, pois participávamos das Diretas Já. Era uma época de construção da cidadania, da participação social, e o Idec fez parte disso.
Qual era a ideia principal do grupo?
ML: Era atuar na defesa dos interesses coletivos. E naquele momento, de retomada da democracia no País, víamos que era importantíssimo que houvesse a mobilização do consumidor. Tinha de ser uma construção conjunta. Nosso trabalho previa a participação dos consumidores na defesa dos seus direitos, ou seja, eles teriam um papel ativo.
A senhora pode falar mais sobre os cenários político e econômico da época?
ML: O político era de construção da democracia e da cidadania. A Constituição de 1988 estabeleceu a base para a participação social e as relações entre a sociedade e o Estado. Ao mesmo tempo, na economia, vivíamos um período muito difícil, com a inflação alta e o consumidor sofrendo muito. Era um momento complicado para os cidadãos, sem direitos reconhecidos, porque vínhamos do regime autoritário, que sabia bem como atropelar direitos. Mas por outro lado, as pessoas estavam animadas com a oportunidade de mudar tudo isso.
Existem semelhanças entre o Brasil de 1987 e o de 2022?
ML: A única semelhança é a inflação, que está voltando e assusta todo mundo. Mas eu vejo mais diferenças. Em 1987, o cenário era de construção de direitos, de cidadania, e havia um entusiasmo de construir a participação social, pois estávamos saindo da ditadura. Acreditávamos que as coisas iam melhorar e que o País ia superar a inflação. Infelizmente, o cenário atual é outro, é de destruição, com direitos que foram tão duramente conquistados sendo ameaçados. É uma ameaça de retrocesso atrás da outra, e muitas vezes, perdemos, pois não é fácil.
Teve alguma ideia que acabou não saindo do papel?
ML: Antes de responder, é preciso deixar claro que embora tenhamos nos inspirado em organizações de defesa do consumidor estrangeiras, o Idec não era uma cópia delas, porque sabíamos que precisávamos de algo que estivesse de acordo com a nossa realidade. Essas organizações testavam produtos (carro, máquina fotográfica etc.), e nós queriamos focar na defesa de direitos, principalmente para a população mais necessitada, para que pudessem consumir.
Uma coisa que achávamos que seria fácil no início era conseguir financiamento, considerando que somos uma organização com independência financeira. Está no Estatuto, que nunca seremos financiados com recursos de empresas, partidos políticos ou governos. Mas a independência custa caro. O nosso grande desafio era como sustentar o Idec. No começo, pensávamos que íamos conseguir nos aproximar de financiadores, por conta da nossa experiência em órgãos públicos, mas infelizmente o tema direito do consumidor não fazia parte da agenda das instituições. Então, a gente se frustrou. Foi um começo difícil.
A nossa primeira sede foi uma pequena sala cedida pela Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], na rua Cônego Eugênio leite, em São Paulo (SP). Tínhamos muitos voluntários que trabalhavam por amor à patria. E conforme fomos propondo ações, os consumidores começaram a se aproximar e fomos criando um grupo de apoiadores. Eu lembro que algumas pessoas se uniram e nos deram uma máquina de datilografia moderna, porque nem isso a gente tinha. E depois de um tempo, criamos a modalidade associação. Já em 1992, com a abertura do mercado brasileiro, conseguimos o apoio de programas de qualidade e projetos, e fomos resolvendo a questão financeira.
Quem nos ajudou a sobreviver foram os associados que nos apoiavam e nos ajudavam como voluntários, pagando a mensalidade e fazendo doações. Graças a eles chegamos onde estamos hoje. Eles foram determinantes para viabilizar o projeto.
Nessa época não existia internet. Como vocês conseguiram divulgar o Idec e atrair os consumidores?
ML: Não tinha internet, mas tinha a imprensa. A gente tinha muito apoio dela, mesmo sem ter assessoria de imprensa. Tudo o que o Idec fazia era divulgado. E não podemos esquecer que em 1990 foi aprovado o Código de Defesa do Consumidor, que repercutiu muito na mídia. Então, o tema defesa do consumidor tinha um espaço privilegiado. E soubemos usar isso.
A imprensa confiou na gente desde o início, porque como eu tinha sido diretora do Procon-SP, e tinha um espaço fixo no programa TV Mulher, a imprensa já me conhecia. Essa credibilidade que ganhei no Procon, eu levei para o Idec.
E quanto tempo vocês ficaram no espaço emprestado pela Unicamp?
ML: Ficamos pouco, cerca de um ano. Não pudemos ficar mais, porque congestionamos o escritório – quando a imprensa publicava algo sobre nós, formava uma fila de consumidores na porta. Então, conseguimos uma casa no Parque da Água Branca, na Rua Turiassu.
A senhora pode nos contar alguma história interessante ou curiosa sobre os primeiros anos do Idec?
ML: Algo interessante de contar é que no começo os atendimentos aos consumidores era feito de forma coletiva, com hora marcada. Tínhamos uma sala que cabia cerca de 20 pessoas. Elas assistiam vídeos explicando o que era o Idec e sobre o tema do dia, por exemplo, Planos Econômicos. E depois entrava um advogado para tirar dúvidas. Quando eu lembro disso, eu penso: "Nossa, como a gente era louco". Gravávamos os vídeos porque não tínhamos um monte de advogados que podia explicar tudo.
Outra coisa que eu lembro é que o Josué [Rios] trabalhava como um louco. Ele era professor na PUC [Pontifícia Universidade Católica] e voluntário do Idec, onde coordenava a equipe jurídica. Quando precisava pensar, ele saia andando pelo parque, para encontrar soluções para os problemas que enfrentávamos, porque isso de propor ações coletivas era uma coisa nova. E assim que o CDC entrou em vigor, nós começamos a aplicá-lo. Então, ele tinha muitos desafios e precisava de sossego para trabalhar (a casa era pequena, ninguém tinha uma sala só para si). E uma vez eu encontrei ele trabalhando no porão.
A senhora também tinha outra atividade?
ML: Não. Quando eu saí do Governo, eu passei a me dedicar ao Idec e a usar o dinheiro que eu recebi, porque eu era CLT. Esse era o meu salário. Depois, nos anos 1990, eu me candidatei a uma bolsa da Ashoka – que atua com empreendedorismo social. Eu tinha deixado minha vida profissional por causa do Idec e fiquei meio perdida, sem uma definição. O que eu era? Eu era militante, mas naquela época isso não era comum. Então, quando eu fui aceita pela Ashoka, passei a ser empreendedora social. Recebi apoio deles por três anos. Era um valor pequeno, mas muito importante.
Olhando para trás, como a senhora avalia o Idec ao longo dessas três décadas e meia?
ML: Eu acho que o Idec sempre foi pioneiro em tudo o que ele se propôs a fazer e continua abrindo caminhos. E isso traz uma responsabilidade enorme, porque ele cresceu, está consolidado, tem uma equipe excelente, mas para tudo o que ele se propõe a fazer é pouco em termos de recursos humanos e materiais. O desafio continua sendo grande, principalmente nesse momento de destruição.
Outro ponto é que o Idec conseguiu alcançar seu grande objetivo de atuar na desefa coletiva, criar bases para que a participação social aconteça. Muitos espaços foram criados nesses 35 anos, e o Idec ampliou a sua atuação em diferentes temas, aumentando sua capacidade de participar na construção de políticas públicas.
Sempre incomodamos muita gente e tenho certeza de que incomodaremos cada vez mais. Estamos envolvidos em muitas lutas e é como se estivéssemos num fronte de guerra. Eu acho difícil que um dia o capitalismo alcance um equilibrio e que os interesses de empresas e consumidores fiquem iguais na balança. Pelo contrário, vemos cada vez mais o poder concentrado nas mãos de um pequeno grupo de empresas. Isso torna nosso trabalho muito mais difícil.
Vale destacar também que o Idec nunca estimulou a cultura do consumismo, longe disso, sempre defendeu o consumo responsável.
O sonho da idealizadora Marilena foi concretizado?
ML: Tudo o que foi feito, não só pela Marilena, mas pelo grupo, supera muito o que eu imaginava. É surpreendente. O respeito, o reconhecimento, a legitimidade em todas as esferas – Congresso, Judiciário etc. – é impressionante. Isso demonstra a sua seriedade. Eu tenho muito orgulho de ter tido a sorte de participar disso. Agora, o Idec anda sozinho. Ele tem vida, é um ser iluminado.