O mundo deprimido
Mais de dois anos se passaram desde que o novo coronavírus foi detectado pela primeira vez na China e muitas adaptações precisaram ser feitas em nosso estilo de vida, principalmente na forma como trabalhamos. Escritórios permaneceram fechados até pouco tempo, e muita gente passou a trabalhar de suas casas – o chamado home office –, dividindo as tarefas profissionais com as domésticas e com os filhos, que também ficaram meses sem ir para a escola, tendo aulas online. Não é de se estranhar que temos ouvido com muito mais frequência que alguém de nosso círculo social – quando não nós mesmos – está sofrendo algum transtorno mental. Para entender quais são esses transtornos e o que os trabalhadores podem fazer para manter ou recuperar a sua saúde mental, conversamos, por telefone, com o especialista em Psicologia do Trabalho Wanderley Codo, que defende que falar sobre o tema, quebrando tabus, é o melhor caminho.
WANDERLEY CODO é psicólogo graduado pela Universidade de Mogi das Cruzes, mestre em Psicobiologia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Psicologia do Trabalho, é professor titular da Universidade de Brasília (UnB) e autor de vários livros sobre o tema.
Falar de saúde mental ainda é um tabu ou as coisas estão mudando?
Wanderley Codo: Sim, é mais fácil falar de saúde mental hoje, e as pessoas estão menos preconceituosas. Parte disso devemos à luta de psicólogos e psiquiatras contra o tabu desse tema, e parte porque os transtornos relacionados à saúde mental acabam sendo o principal problema de saúde do século 21. Hoje, depressão, ansiedade, entre outros, são universais e cada vez mais frequentes. Por isso, é menos tabu do que antes. Mas também é verdade que saúde mental continua sendo um assunto sobre o qual não é fácil conversar.
A pandemia mudou drasticamente a forma de se trabalhar (algumas profissões mais do que outras), com as pessoas tendo de se adaptar ao home office. Dados da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho apontam que em 2020 houve 30% mais afastamentos do trabalho do que em 2019. Quais os principais transtornos mentais detectados durante a pandemia?
WC: Faltam estudos sobre isso. Não porque ninguém tenha tido a iniciativa de pesquisar, mas porque essas pesquisas são longas e, no caso dessa variável, do trabalho doméstico x trabalho in loco, é mais complicado conseguir uma população epidemiológica, ou seja, um número de pessoas suficiente para chegar a alguma conclusão. Os estudos de saúde mental no trabalho são muito complicados e demorados. E no caso da pandemia temos um tempo relativamente curto. Não adiantava nada medir os efeitos do home office na saúde mental das pessoas dois meses depois do começo da pandemia. É preciso de um tempo para que uma patologia se instale e mostre a cara.
Existem alguns estudos importantes em andamento. Se você me fizer essa pergunta novamente daqui a três meses, eu terei respostas mais conclusivas. Mas o que podemos afirmar hoje é que há aumento de depressão, porque ela está ligada ao controle sobre o trabalho e isso mudou muito. As coisas ficaram mais complicadas no Brasil devido à postura que o nosso Governo teve em relação à pandemia. Ele desprezou o trabalho em casa, a ideia da vacina (lutou para não ter vacina; se não fosse a CPI, estaríamos ainda mais atrasados). Tivemos um índice de mortes muito alto, um medo de contaminação muito alto, e isso aumenta a insegurança e intervém na saúde mental.
Se estudarmos os impactos da pandemia na saúde mental das pessoas em diferentes países o resultado será diferente?
WC: Depende do suporte que as lideranças do país dão aos cidadãos. Em vários países, o Governo deu apoio, além de implementar medidas de segurança. Sem dúvida, esse pessoal sofreu menos problemas de saúde mental do que no Brasil, onde temos um presidente que diz que se você tomar vacina vai virar jacaré, e homens vão falar com a voz fina.
E quais eram os transtornos mentais mais comuns pré-pandemia?
WC: Vivemos o século da depressão, porque no final do século 20 e início do 21 tivemos um processo de transformação brutal nas condições e relações de trabalho. Por exemplo, o que está sendo chamado de precarização do trabalho ou uberização do trabalho. Os trabalhadores estão numa situação totalmente diferente da de seus colegas do século passado. No século 20, eles tinham um lugar para trabalhar, horário de expediente, direito a férias e a 13º salário etc. Um engenheiro hoje está dirigindo um carro nas ruas, sem direito nenhum, tendo que trabalhar 14 horas por dia, porque o trabalho dele sumiu. E isso evidentemente é um problema que aumenta a depressão. Temos uma pandemia de depressão.
Nunca ouvimos falar tanto em burnout. Os casos realmente aumentaram ou apenas estamos falando mais sobre o assunto?
WC: Eu tenho um livro sobre burnout: Educação: carinho e trabalho – burnout, a síndrome da desistência do educador, que pode levar à falência da educação (Editora Vozes). Nele, eu falo de uma pesquisa enorme, com 50 mil sujeitos do Brasil todo.
É preciso esclarecer que burnout não é uma doença mental. Ele foi tratado erroneamente como doença mental passível de afastamento do trabalho. Na minha avaliação isso é um erro. Não se trata de uma doença mental, mas de um sofrimento psíquico. A diferença é: se sua mãe morre e você fica triste, isso é um sofrimento, não uma doença mental. Doença seria sofrer pela morte da sua mãe, mas ela ainda estar viva.
O burnout é um sofrimento que vem da dificuldade nas relações de trabalho, na formação e no tratamento dos vínculos afetivos no trabalho. De fato, o home office dificulta as relações afetivas. Então, sem dúvida, temos uma pandemia de burnout. E a solidão provocada pelo home office propicia o aumento dos casos.
E quais os principais sinais que as pessoas com esse transtorno apresentam?
WC: Um processo de despersonalização, ou seja, a pessoa não consegue enxergar seus clientes ou pacientes como indivíduos, estes passam a ser apenas um número. Além disso, ela foge de vínculos afetivos. Outra característica é o que a literatura chama de cinismo, ou seja, não se importar com nada e não se envolver com o trabalho. Outro nome para isso é falta de envolvimento. A pessoa detesta qualquer reunião, porque ela vai te obrigar a pensar no trabalho e se envolver com ele. Ela vai para reunião e fica fazendo jogo da velha no celular.
A pessoa também sente falta de energia, levanta da cama já cansada, fica rezando para chegar as férias e para ela não acabar, olha no relógio esperando pelo fim do expediente.
O burnout pode ser confundido com depressão?
WC: Sim, eles se confundem. E um burnout forte e prolongado pode levar a pessoa à depressão. Existem escalas de domínio público que medem burnout. A mais usada tem 26 itens e pode ser aplicada em 10 minutos.
Os profissionais de saúde certamente foram os mais impactados. O que precisa ser feito para que essas pessoas recuperem sua saúde mental após mais de dois anos de pandemia?
WC: Os profissionais de educação também. Porque o burnout é um sofrimento que está ligado aos vínculos afetivos no trabalho, e tanto profissionais de saúde quanto de educação são obrigados a desenvolver afeto. Você, como jornalista, desenvolve afeto em seu trabalho, mas não depende dele pra trabalhar. Médicos, enfermeiros, educadores, precisam desse vínculo afetivo, eles não conseguem trabalhar sem ele. E a pandemia causou uma ruptura nas relações.
A primeira coisa é receber suporte e compreensão, além de condições para que se sinta seguro, o que é muito dificil enquanto [Jair] Bolsonaro estiver no poder. Então, algo essencial é mudar o Governo.
No plano dos vínculos afetivos e da saúde mental no trabalho, a intenção vale tanto quanto o gesto. Quando eu digo que te apoio e que vou te apoiar, essa intenção já dá alivio. E o contrário também é verdade. Se eu digo "dane-se você", eu não preciso te matar. Essas palavras têm valor. Todo mundo que trabalha com saúde e educação sabe disso: que o profissional precisa se sentir acolhido.
Uma psicóloga me procurou para saber o que ela fazia com os casos de burnout que estavam muito alto na escola onde ela trabalhava. Eu respondi: faça reunião sem pauta, para as pessoas falarem, e você ouvir o que elas falam; acene a cabeça concordando. Mostre para elas que você está por perto.
E o que as próprias pessoas podem fazer em prol de sua saúde mental?
WC: Se você está com problemas com seu marido, você tem de conversar com ele e tentar entender as causas. Com a saúde mental é a mesma coisa. O trabalhador tem de falar, tem de ter espaço nas reuniões para discutir o problema. É preciso criar esse espaço para os funcionários que estão trabalhando de casa.
É papel da empresa e dos gestores criar esse espaço?
WC: Da empresa e da imprensa. Você, por exemplo, quando faz essa entrevista, está dando suporte para a luta do trabalhador pela sua saúde mental. "Ah, mas eu não fiz nada". Fez sim. Você chamou atenção para o problema, iluminou a questão, e o indivíduo se sente apoiado, pois tem alguém preocupado com ele. E esse apoio pode vir de todo lugar, incluindo família, amigos etc.
Em junho de 2020, entrevistamos o psiquiatra Jair de Jesus Mari, da Unifesp, e ele disse que "no pós-pandemia, teremos o equivalente a um território devastado, com um número muito alto de cidadãos que desenvolveram transtornos mentais. Toda a população sofrerá com a crise econômica (aumento do desemprego, desigualdade social etc.), além da crise política, e muita gente terá perdido pessoas próximas que contraíram a doença. Eu prevejo um cenário muito complicado". Dois anos depois, como o senhor vê o cenário pós-pandemia?
WC: Vejo exatamente como ele previu, com aumento grande de doenças mentais e de sofrimento psíquico, uma profunda desesperança e um profundo desamparo da sociedade. E desgraçadamente esse não é um problema do Brasil, o mundo está passando por essa fase. Essa pandemia deixa marcas indeléveis em nossa sociedade. Eu não sei se a pandemia acabou, eu espero que ela esteja terminando. Eu sei que o mundo não será o mesmo.
E como sair desse cenário?
WC: Fazendo isso que estamos fazendo: tentar entender o problema, qual a dimensão dele e as formas que as pessoas estão encontrando para resolvê-lo. Além disso, precisamos de uma forte participação política, porque a aversão pela atuação política é muito perigosa e piora todos os sintomas que a gente está vivendo. Eu estou preocupado, por exemplo, com a baixa adesão dos jovens nesta eleição (poucos jovens estão se inscrevendo para votar), o nível mais baixo que já tivemos no Brasil. Isso é gravíssimo.
Quando a pandemia começa finalmente a ser controlada e as pessoas se sentem confiantes para voltar a viver mais normalmente, os russos invadem a Ucrânia. Como essa guerra pode impactar a saúde mental dos brasileiros, que já estão enfraquecidos pela pandemia e pelas crises econômica e política que assolam o País?
WC: Eu sei que teremos efeitos a nível mundial, mas ainda não sei quais efeitos são esses. Como eu disse na primeira pergunta, é pouco tempo para avaliarmos. Faça ela novamente daqui a um ano.