Consumidores consumidos
Aproveitamos que estamos em ano de eleições no Brasil para conversar com o professor e jornalista Eugênio Bucci. Num bate-papo descontraído por telefone, ele deu uma aula sobre democracia (e o que a ameaça) e o papel da imprensa (e os desafios que terá na cobertura eleitoral). E seu mais recente livro, A superindústria do imaginário (Editora Autêntica), não poderia ficar de fora. Ele explicou o significado do termo que intitula a obra, opinou sobre o uso indiscriminado de nossos dados pessoais pelas empresas e revelou como enxerga o consumidor atual: "As pessoas acham que estão consumindo, mas na verdade estão sendo consumidas pelos conglomerados monopolistas globais das tecnologias digitais".
EUGÊNIO BUCCI é professor e jornalista com mais de 30 anos de experiência nos setores público e privado. Foi colunista e articulista das revistas Veja e Época, e dos jornais Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil. Desde 2008, assina artigos quinzenais na seção "Espaço Aberto", do jornal O Estado de S. Paulo. É especialista em temas como imprensa, comunicação pública, ética na comunicação e nas organizações, gestão da informação, crítica da cultura e indústria do imaginário. É professor titular da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
Como o senhor enxerga o cenário político atual e o futuro da democracia?
Eugênio Bucci: Vimos nos últimos anos tantos ataques à democracia, que quando surge a perspectiva da próxima eleição, temos a sensação de um novo amanhecer. Quando eu me refiro a ataques à democracia, não estou falando apenas de frases, declarações e impropérios pronunciados pelo Presidente da República (ele xingou jornalistas, principalmente mulheres; fez apologia a golpe de Estado; desmereceu o Poder Judiciário; dirigiu agressões a representantes do Supremo Tribunal Federal), mas também às ações que enfraqueceram concretamente instituições da República, como órgãos de fiscalização de crimes ambientais; ao sucateamento do Ministério da Educação; à barbarização que se deu no Ministério da Saúde; ao rebaixamento indescritível que se deu no Ministério das Relações Exteriores no primeiro período do Governo. Tudo isso corrói os fundamentos da democracia no Brasil.
Qual o papel da imprensa hoje?
/EB: A imprensa é uma instituição indispensável. É a partir do iluminismo que surgem os princípios liberais na sociedade, que se manifestam nas vidas econômica e política. A aspiração à liberdade de expressão, à liberdade de reunião, à liberdade de se informar são potências inseparáveis de qualquer concepção de vida que não seja dominada pelo julgo do monarca ou de um poder absolutista.
Houve um levante contra o absolutismo e, historicamente, isso deu ensejo aos ideais iluministas carregados da ideia de liberdade. A democracia propriamente dita começa a ganhar corpo a partir daí. Mas já nas revoluções iluministas do século XVIII, a imprensa aparece como uma instituição não estatal, com raízes na sociedade civil, e que se encarrega de uma função pública sem a qual não existe o debate aberto e livre nem a democracia. Ao longo dos séculos XIX e XX, a imprensa se desenvolve, ganha uma ética própria e passa a exercer com muita consciência o papel de fiscalizar o exercício do poder – levando à sociedade todas as informações de interesse público –, mas também de mediar o debate público. Sem a imprensa, nós estaríamos reféns das verdades que o poder quer disseminar. Assim, não existe democracia sem imprensa nem imprensa sem democracia.
Mas no momento presente nós vivemos uma série de ameaças contra a imprensa, principalmente a partir de lideranças autocráticas, também chamadas de populistas. Trata-se de um populismo de extrema direita que engambela o público com batatadas patrióticas, religiosas e militares e faz de tudo para sabotar a imprensa. O modelo de poder do atual presidente não consegue conviver com questionamentos, diálogo e fiscalização do poder. É um modelo que só prospera quando obtém do público a obediência e quando difunde o fanatismo e o culto da personalidade. Por isso, quer acabar com a imprensa.
Essas lideranças autocráticas conseguiram um apoio muito importante de uma certa tecnologia. Hoje, temos a combinação do uso maciço financiado com muito dinheiro das mídias digitais com um ideário autoritário, ignorante e preconceituoso. Isso limita o lugar da imprensa e sitia o jornalismo. Nós tendemos a ter uma sociedade menos informada, mais assediada por estratégias de desinformação, como as fake news, uma imprensa muitas vezes de mãos atadas. As mídias sociais, hoje, têm alcance maior do que os veículos profissionais e isso também prejudica a democracia. Precisamos restabelecer regras públicas que assegurem a diversidade no debate público e um lugar protegido para a imprensa.
Além dos já citados, que outros desafios a imprensa terá na cobertura das eleições?
EB: Um dos grandes desafios será fazer uma cobertura crítica do uso malicioso e perverso de tecnologias digitais pelos grupos de extrema direita, de inspiração fascista, que ponha adiante uma superindústria da desinformação, pois por aí vai se tentar enganar mais uma vez o eleitor brasileiro.
A expansão do uso das redes sociais ao redor do mundo tem afetado a dinâmica das eleições em países democráticos. Como avalia o impacto da tecnologia e das redes sociais na democracia?
EB: Sem dúvidas, temos um problema com as plataformas que abrigam as redes sociais nas democracias em várias partes do mundo. É um problema indiscutível. Ninguém pode dizer, a não ser por má fé, que está tudo bem, pois não está. Temos um problema, seja pelo volume da desinformação que trafega pelas plataformas sociais; seja pelos aspectos viciantes dessas mídias sociais, que já merecem ter uma legislação específica; seja pela altíssima concentração de poder e de capital que os conglomerados alcançaram e que inviabiliza a existência democrática dessas tecnologias, porque elas são operadas por monopóplios globais, sem que haja concorrência; seja ainda porque não temos informações sobre os algoritmos, e eles têm todas as informações sobre nós. Há um desequilibrio nessa configuração.
Mas nós temos de separar a tecnologia propriamente dita da relação de propriedade que amarra a tecnologia. A tecnologia é ótima (ou pode ser) e uma sociedade pode ter muitas vantagens ao usá-la para melhorar a comunicação, o monitoramento do trânsito, o acesso à cultura e à educação, os serviços de saúde. O problema são os algorítmos. Por serem de propriedade dos grandes conglomerados, são totalmente opacos. Não sabemos como funcionam.
Em janeiro, o senhor publicou no O Estado de S. Paulo o artigo O capitalismo da ausência. O senhor pode nos explicar esse termo?
EB: É muito simples. O capitalismo se erigiu como um modo de exploração do trabalho, que exigia a presença física do trabalhador na linha de montagem. Com o advento das tecnologias digitais a partir do final do século XX, a presença física do trabalhador se tornou dispensável. O capitalismo conseguiu explorar o trabalho remotamente. O trabalhador comparece à relação de produção por meio da sua ausência e não da presença. Nesse sentido, temos um capitalismo da ausência, já que o corpo humano se tornou descartável. É uma perversidade à terceira potência, pois houve uma higienização do capitalismo, com exploração do trabalho sem suor, sem refeitórios, sem corpos humanos. É um capitalismo que aprendeu a lucrar com a nossa ausência.
No livro A superindústria do imaginário, o senhor faz um alerta sobre a indústria criada pela Internet, que controla os dados dos consumidores. O que é a superindústria do imaginário?
EB: Essa é uma pergunta que me acompanha há 25 anos, desde que comecei a pesquisa da minha tese de doutorado. E a única maneira que eu encontrei de dar uma resposta a ela foi escrevendo um livro de quase 500 páginas. Então, ao explicá-lo de forma sucinta, talvez eu não seja bem-sucedido. Eu posso dizer o seguinte: nós estamos vivendo uma era em que o capital se dirige não mais às necessidades do consumidor, mas aos seus desejos. Ao mesmo tempo, o centro de valor da mercadoria não está mais em seu corpo, mas na sua imagem, em sua marca. Por essas razões, o capitalismo se tornou um modo de produção da imagem governado pelo desejo. Nesse plano, as relações não são mais propriamente relações de consumo de bens. O que nós olhávamos como mercado, ou seja, pessoas comprando, é na verdade uma extensão da indústria e por ser muito maior do que a indústria original, ela é uma superindustria. E ela fabrica imaginário. Consumir na superindustria é fabricar. Um cidadão defilando com uma motocicleta, com um boné etc. está fabricando imagens. Essa é a síntese da superindústria do imaginário.
E o que o poder acumulado por essa superindústria pode causar à humanidade?
EB: Ela transformou o olhar em trabalho e ele é explorado o tempo todo. É o olhar que sintetiza a marca da mercadoria ou que identifica na linguagem o que é o produto. Por exemplo, existe um banco que faz propaganda com a cor alaranjada. Ele quer se apropriar dessa cor a tal ponto que quando uma pessoa olhar para ela vai se lembrar do banco. Como se constrói essa associação entre uma marca de banco e uma cor? Com o olhar. É preciso que multidões olhem muitas e muitas vezes para a marca, para o logotipo, para a cor, até que haja essa associação.
E não é por acaso que os conglomerados monopolistas globais das tecnologias digitais chegaram aonde chegaram, com o valor de mercado na casa dos trilhões de dólares. Porque elas exploram o olhar e extraiem dele dados íntimos para construir estratégias de assédio. É assim que se captura o desejo de uma pessoa. Nós estamos numa era de extrativismo de dados pessoais, que não são apenas RG, CPF e telefone. São dados que permitem o desenho do circuito secreto do desejo das pessoas. Com isso, o poder vai no íntimo de cada um. E é óbvio que há um descompasso. Não é possível que entes privados controlem a malha da comunicação a esse ponto. As questões cruciais deixam de ser decididas pela livre vontade do cidadão e passam a ser decididas previamente por quem controla o desejo das pessoas. É aí que temos um problema gerado pela superindústria do imaginário contra o livre curso da democracia.
As grandes empresas de internet coletam dados sobre tudo o que o usuário faz. Esse processo de violação cotidiana da privacidade tem volta?
EB: Tem de ter volta, porque se não tiver, o ideal de democracia, de soberania popular e de liberdade individual acaba. E aí entraremos numa outra era de massacre das subjetividades.
Como o senhor vê o fato de todos os nossos passos serem seguidos e monetizados?
EB: Eu vejo como uma nova forma de totalitarismo. No totalitarismo o poder enxerga a intimidade das pessoas, e elas não conseguem saber o que se passa dentro do círculo de poder. Foi isso o que aconteceu no Nazismo e no Stalinismo. O poder tinha tentáculos que iam até a intimidade mais recôndita de cada cidadão. Na democracia, ao contrário, a privacidade das pessoas é garantida por lei, e o poder tem a obrigação de ser transparente e de prestar informações. Ou seja, na democracia o poder não é opaco, e a privacidade individual é protegida.
Os conglomerados monopolistas globais das tecnologias digitais enxergam a intimidade de cada indivíduo, inclusive das crianças: dados médicos, religiosos, econômicos, sexuais. Todos são acessíveis por meio dos algoritmos. Por outro lado, o cidadão não enxerga como estes trabalham. Essa é uma nova forma de totalitarismo.
Também no livro A superindústria do imaginário, o senhor fala em existência vazia do consumidor. Como o senhor vê o consumidor brasileiro hoje?
EB: O consumidor deveria exigir ser tratado de maneira leal pelos conglomerados monopolistas globais, porque quando alguém acessa sites de buscas ou plataformas digitais está sendo espionado de alto a baixo, e as informações que fazem dessa pessoa o que ela é estão sendo extraídas, para que depois ela seja assediada por discursos políticos ou publicitários. O sujeito acredita estar consumindo um serviço, mas na verdade está sendo consumido por algo que esta atrás desse serviço. Quem são os operários de um facebook da vida? Os usuários. Qual é a matéria-prima? As coisas que o usuário posta. Tudo isso vai de graça para os conglomerados. E o que vai ser vendido no fim da linha? Os dados dessas pessoas. Esse é o modelo de negócio mais lucrativo da história da humanidade, porque a mão de obra e a matéria-prima são gratuitas, e o que se vende é a alma do aparente consumidor. A superindústria do imaginário inverteu o negócio. A mercadoria final é o consumidor, mas é ele do jeito mais perverso, porque é no que ele acredita, o que ele deseja e valoriza. E isso precisa ser visto com mais atenção por quem se ocupa de entender as relações de consumo.