Internet para poucos
Pesquisa encomendada pelo Idec revela que brasileiros das classes C, D e E têm acesso precário à internet, pois são reféns de planos de dados com franquias que esgotam rápido e limitam o uso a poucos aplicativos
Em meados de dezembro passado, a dona de casa Benedita Martins, 58, estava acompanhando o marido que se recuperava de uma cirurgia e dependia do Wi-Fi do hospital para trocar mensagens com a família, ler notícias e se distrair um pouco, pois sua franquia de dados tinha acabado. Em casa, ficava desconectada, pois não tem internet fixa. Ela está acostumada com essa situação, porque frequentemente a franquia de dados de seu plano controle, que custa R$ 25, acaba antes do mês.
Ficar sem internet também é comum a milhões de outros brasileiros: pesquisa encomendada pelo Idec ao Instituto Locomotiva mostra que, para os usuários das classes C, D e E, o pacote de internet do celular só dura, em média, 23 dias. Ou seja, essas pessoas - que juntas representam mais de 80% da população brasileira - ficam pelo menos uma semana offline, já que o acesso ocorre primordialmente pelo telefone móvel (para 9 em cada 10 participantes da pesquisa).
A pesquisa, que ouviu 1.000 pessoas que vivem nas regiões metropolitanas do País, constatou que mais da metade dos usuários (58%) tem plano pré-pago. "Esse tipo de plano é proporcionalmente mais caro, já que o preço por gigabyte aumenta quanto menor a franquia contratada, prejudicando os mais pobres", explica Camila Leite, advogada e pesquisadora do programa de Telecom e Direitos Digitais do Idec.
INTERNET OU ILUSÃO?
A internet móvel se baseia em um modelo de franquia de dados. Ou seja, quando a quantidade de dados – que é limitada – é atingida, o acesso à internet é bloqueado. Em muitos casos, porém, o bloqueio não é total: muitos planos liberam o uso de certos aplicativos "parceiros", sobretudo WhatsApp e Facebook (ambos do grupo Meta, que inclui ainda o Instagram), sem descontar da franquia ou mesmo após esta ter se esgotado. Essa prática é chamada de zero rating ou acesso patrocinado, já que as empresas donas dos apps patrocinam o tráfego de dados "gratuito" para o usuário.
QUEM É CLASSE C, D E E?
De acordo com a definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as classes sociais envolvidas na pesquisa são aquelas cuja renda familiar corresponde a:
- Classe C: de 4 a 10 salários mínimos (de R$ 4.769,61 a R$ 11.924,00);
- Classe D: de 2 a 4 salários mínimos (de R$ 2.384,81 a R$ 4.769,60);
- Classe E: até 2 salários mínimos (até R$ 2.384,80).
Juntas, as três faixas representam mais de 80% da população brasileira. A classe C, sozinha, corresponde a 55,3% dos brasileiros, enquanto a D e a E somam 30,3%, segundo dados de 2018 da FGV Social.
O que pode parecer "melhor que nada", à primeira vista, se traduz em um acesso ainda mais precário, na prática. A pesquisa mostra que o bloqueio da internet impacta o exercício de diversos direitos, como acesso à informação, a serviços financeiros e à assistência médica; e o recebimento de benefícios sociais. E os usuários com planos zero rating sofrem ainda mais com as consequências da falta de internet. O levantamento mostra que entre aqueles que têm esse tipo de plano, 52% deixaram de acessar serviços ou políticas públicas, como o Auxílio Emergencial, por falta de internet.
Para Leite, esse modelo também é prejudicial porque, ao restringir o acesso a alguns aplicativos, contribui para que as pessoas tenham a falsa percepção de que a internet se limita a eles. De acordo com uma pesquisa da empresa Quartz, de 2017, 55% dos brasileiros acreditavam que o Facebook é a própria internet. "Isso inviabiliza o surgimento e o crescimento de alternativas mais favoráveis aos consumidores, como aplicativos que possuem políticas de privacidade mais fortes [do que os do grupo Facebook]", aponta a advogada do Idec. "Também favorece que os internautas não confiram a veracidade das informações recebidas, já que não podem acessar outras páginas, o que pode contribuir para a disseminação de fake news", complementa.COMO FOI FEITA A PESQUISA
A pesquisa foi realizada pelo Instituto Locomotiva, a pedido do Idec, entre os dias 26 de julho e 12 de agosto de 2021. Foram ouvidas 1.000 pessoas, homens e mulheres acima de 16 anos, usuários de internet das classes C, D e E. Os entrevistados foram proporcionalmente distribuídos de acordo com os parâmetros da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNAD/IBGE).
Os dados foram coletados por telefone, nas regiões metropolitanas de todo o País. A margem de erro é de 3,1%.
A advogada Flávia Lefèvre, especialista em telecom e direitos digitais e membro do coletivo Intervozes, lembra que o acesso patrocinado como modelo de negócios começou em 2014 no Brasil, capitaneado pelo Facebook, e se consolidou a despeito de desrespeitar o Marco Civil da Internet, lei aprovada naquele mesmo ano e que preconiza a neutralidade da rede, princípio segundo o qual não pode haver discriminação no tráfego por aplicativos. "Mas é justamente o que ocorre quando acaba a franquia e o consumidor só acessa determinadas aplicações. É um desrespeito claro [ao Marco Civil]" com aval da Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações]", ela afirma. "O resultado é que temos, hoje, uma internet para os ricos e outra precária para os cidadãos de baixa renda, que sequer conseguem acessar serviços públicos básicos disponíveis apenas online, como o Auxílio Emergencial", critica Lefèvre.
INFRAESTRUTURA E PRECARIEDADE
A pesquisa aponta que, em média, os brasileiros das classes C, D e E gastam R$ 43 mensais com internet. Para Lefèvre, o preço do serviço é um empecilho para o acesso adequado à rede, mas não é a única explicação para esse cenário de profundas restrições identificadas no levantamento. A precarização é, também, resultado direto da falta de investimento em infraestrutura pelas empresas do setor. "A distribuição de infraestrutura [pelo país], tanto de banda larga fixa quanto do acesso pela rede móvel, é perversamente antidemocrática", declara a especialista.
Ela cita uma pesquisa da Rede Nossa São Paulo, de 2020, que mostra que no bairro do Itaim Bibi, na capital paulista, há 48,3 antenas por quilômetro quadrado, enquanto em Marsilac, bairro periférico no extremo sul da mesma cidade, são 0,02 antenas por Km2. Isso significa que as empresas do setor não têm, hoje, como possibilitar o acesso de forma ilimitada para os milhões de brasileiros que utilizam a internet pelo celular. "Portanto, o serviço só funciona com limite de dados, pois se liberar o acesso, o serviço não funcionaria por falta de infraestrutura. Por isso, os cidadãos de baixa renda estão sujeitos a um serviço prestado em condições precárias", explica.
Assim, para a advogada do Intervozes, um passo fundamental para garantir o acesso adequado à internet no País é o Ministério das Comunicações e a Anatel exigirem obrigações de investimento em infraestrutura de suporte ao 4G nos bairros mais pobres das cidades. Esse investimento pode ser feito com recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) - que é pago por todos os consumidores, ricos e pobres, com contribuição embutida na conta de telefone desde 2001.
Para Leite, do Idec, outras medidas regulatórias fundamentais são: alterar o modelo de negócios da internet móvel, para que as pessoas deixem de ter o acesso bloqueado; repensar a prática de zero rating, para que os usuários não fiquem presos a determinados aplicativos; e garantir concorrência no setor, para que os preços cobrados se tornem competitivos.
SEM INTERNET, SEM OUTROS DIREITOS
39% dos entrevistados já deixaram de acessar políticas públicas por falta de internet, sendo que:
- 33% deixaram de acessar serviços públicos;
- 28% tiveram dificuldade para acessar benefícios sociais, como o Auxílio Emergencial.
52% dos usuários de planos com zero rating já foram privados de acesso a políticas públicas
- 47% já deixaram de fazer alguma transação financeira;
- 38% deixaram de acessar serviços de saúde;
- 43% deixaram de ver notícias;
- 30% não puderam pesquisar se uma informação recebida por WhatsApp era falsa.