Desafios em 2022
Começamos 2022 com uma entrevista diferente. Nesta edição, temos dois entrevistados: Carlota Aquino, diretora executiva do Idec, e Igor Britto, diretor de relações institucionais do Idec. Juntos, eles falam do atual cenário da defesa do consumidor no Brasil; das ameaças que os instrumentos de proteção aos nossos direitos vêm sofrendo; dos desafios que temos pela frente e dos planos para este novo ano, que deve ser marcado pela polarização nas eleições. Além disso, eles fizeram um pequeno resumo de 2021, um ano complicado, porém, cheio de conquistas.
CARLOTA AQUINO é graduada em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da Universidade de São Paulo (USP) e tem especialização em Saúde Ambiental pela Faculdade de Saúde Pública da USP e em administração de organizações sociais pela Fundação Instituto de Administração (FIA). Também possui certificação PMI-RMP em gestão de projetos. Trabalhou no Idec de 1997 a 2014, e voltou ao Instituto em 2017. Hoje, é diretora executiva do Instituto.
IGOR BRITTO é Mestre em Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória; pós-graduado em Direito do Consumo pela Universidade de Coimbra, em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e pós-graduado em Direitos Fundamentais e Transformação do Estado pela Universidad Carlos III de Madri. É professor de Direito do Consumidor e de Direito Empresarial no Centro Universitário IESB, em Brasília (DF). É diretor de relações institucionais no Idec.
Qual é o atual cenário da defesa do consumidor no Brasil?
Carlota Aquino e Igor Britto: As pessoas estão mais atentas e é nítido que elas conhecem cada vez mais seus direitos, não aceitam ser enganadas e buscam formas de reclamar e protestar. Apesar de muitas pesquisas indicarem que a maioria das pessoas evita procurar o Judiciário e órgãos de defesa do consumidor, preferindo resolver suas reclamações pelos canais de atendimento dos fornecedores, o número de ações judiciais e denúncias aos Procons aumenta a cada ano. Isso é um sinal de que elas estão cada vez mais conscientes de seu importante papel no mercado de consumo e se empoderam na busca por seus direitos e por formas de defendê-los. Mas isso não basta. É fundamental que o ambiente também seja protetor. E é nesse ponto que as maiores dificuldades aparecem atualmente.
O Projeto de Lei nº 2.766/2021, que tramita na Câmara dos Deputados, pretende modificar os artigos 55, 56 e 57 do Código de Defesa do Consumidor. O que está em risco?
CA e IB: Esse projeto de lei faz parte de um movimento de alguns setores do mercado, como os supermercadistas, que querem enfraquecer os órgãos de defesa do consumidor. O curioso é que após a propositura desse PL, um decreto presidencial foi aprovado com conteúdo muito semelhante, mostrando que não se trata de um movimento isolado de parlamentares.
Essas propostas diminuem a autonomia e os poderes dos Procons de aplicarem multas às empresas que descumprem o CDC. E, dessa forma, tiram a autoridade de 900 órgãos públicos espalhados pelo País para penalizar empresas infratoras, coibir abusos e, por consequência, solucionar conflitos. É importante ressaltar que entre as funções dos Procons estão fiscalizar e aplicar as penalidades cabíveis. É com base nessa autoridade que conseguem convencer empresas a atender às reclamações de seus consumidores.
Quando regras novas são criadas para "embaraçar" o trabalho dos Procons, dificultando que calculem multas proporcionais à lesão ou ao tamanho das empresas, estas acabam estimuladas a continuar desrespeitando a lei e os direitos dos cidadãos.
Os Procons ainda são conhecidos por suas tentativas de conciliação e negociação de problemas de consumidores, e grande parte desses resultados são alcançados em razão do poder coercitivo desses órgãos. No sistema brasileiro, não temos órgãos, nem em quantidade nem com poderes suficientes para substituir os Procons caso eles percam sua autoridade.
Além desse projeto de lei, há outras ameaças aos instrumentos de defesa do consumidor?
CA e IB: Há várias. Além de vivenciarmos tentativas muito concretas de enfraquecimento dos poderes dos órgãos públicos de defesa do consumidor, como Procons e Ministério Público, os meios de acesso à Justiça dos consumidores, como as ações individuais e as ações coletivas, estão sob constante ameaça de retrocesso.
Seja pelo Judiciário ou pelo Legislativo, as grandes empresas, que são as maiores responsáveis pelo alto número dessas demandas judiciais, estão sempre buscando formas de interferir nas políticas de Justiça, usando seu forte lobby para influenciar mudanças na jurisprudência ou mesmo na legislação, tudo para criar obstáculos para as pessoas e associações promoverem novas ações em defesa de seus direitos. Por exemplo, enquanto cresce no Judiciário decisões que exigem que os consumidores provem que tentaram evitar a demanda procurando antes os canais de atendimento dos fornecedores, vários projetos de lei vêm sendo apresentados para alterar a lei processual brasileira a fim de impor esse tipo de obrigação aos consumidores.
Quem propõe esse tipo de coisa no Brasil esconde o fato de que a grande maioria das pessoas evita ao máximo ir ao Judiciário, procurando várias vezes a empresa para solucionar o problema. E ignora também que muitas dessas empresas criam barreiras para o consumidor conseguir provar que tentou amigavelmente resolver o problema, seja negando atendimento em seus canais ou até mesmo negando registro de protocolo desses atendimentos.
E ainda tivemos as propostas de alteração da Lei da Ação Civil Pública, visando a impedir que associações como o Idec promovam ações coletivas.
E como ocorre essa interferência do mercado produtivo (indústria/empresas) nas políticas públicas relacionadas aos consumidores?
CA e IB: Sabemos que essa interferência acontece e está cada vez mais forte. Mas ela é muito complexa de ser combatida, porque, na maioria das vezes, ocorre nos bastidores. Nosso trabalho está sempre focado em defender o consumidor e, por isso, faz parte da nossa função identificar e lutar contra essas ações empresariais que ocorrem nas mais diversas esferas públicas, para beneficiar apenas os agentes do mercado, em detrimento do consumidor. Uma das nossas ações foi o lançamento, no ano passado, do documentário Big Food, que expõe como nosso direito à alimentação adequada está sendo colocado na mesa de negociação por grandes corporações. E neste ano virão mais ações nesse sentido. Jogar luz sobre essa situação e expor o problema é uma forte arma para alertar a sociedade.
E quais são os desafios futuros para a defesa do consumidor e para a efetivação dos direitos?
CA e IB: Assim como em outros campos, o avanço tecnológico, que trouxe muitas facilidades, também nos colocou enormes desafios. Como trabalhar com dados pessoais sem que haja riscos de vazamentos e exclusão de setores da sociedade? Qual o impacto ao meio ambiente das nossas escolhas ao consumir produtos e serviços? Essas e outras perguntas nos levam a reavaliar a crença de que a tecnologia e a modernidade nos levariam a um cenário de mais inclusão, coletividade, liberdade e conectividade. Hoje, estamos falando de reconhecimento facial ao mesmo tempo em que vemos uma pesquisa que revela que a maior parte da população brasileira tem acesso limitado à internet e, por isso, deixa de acessar serviços básicos de educação, saúde, mobilidade, assistenciais, entre outros.
Estamos usufruindo de serviços "gratuitos", mas pelos quais pagamos com nossos dados, e muita gente não sabe que faz parte de um modelo massivo de coleta, que depois vai virar mecanismos de indução do comportamento dos usuários e influenciar seu próprio consumo.
Em outro campo, precisamos aprofundar também os impactos socioambientais do nosso consumo. O estilo de vida contemporâneo, baseado no excesso de consumo para alguns e na escassez para muitos outros, tem gerado um esgotamento de recursos naturais e graves consequências nas mudanças climáticas. Tal vinculação entre dados, consumo e clima vem ganhando espaço, e é urgente que tenhamos instrumentos efetivos para fazer escolhas conscientes e justas, sendo fundamental aprofundar o papel e a responsabilidade das grandes corporações, dos governos e da sociedade.
Hoje, temos consumidores cada vez mais empoderados. Como eles podem ajudar, de casa, a fazer leis consumeristas mais fortes?
CA e IB: Atualmente, é possível acompanhar muitas discussões sobre projetos de lei e regulamentos de interesse dos consumidores. As páginas da Câmara dos Deputados, do Senado e das agências reguladoras, por exemplo, estão sempre com conteúdos e notícias sobre isso.
O Idec acompanha um enorme número de projetos de lei e de regulamentos e está sempre se posicionado sobre esses temas e participando dos debates como representante da sociedade de consumidores. Mas precisamos muito do apoio e engajamento de cada cidadão nas campanhas que realizamos, compartilhando conteúdos e aderindo aos nossos abaixo-assinados. Se associar ao Idec amplia a representatividade. Todo esse apoio contribui muito para efetivarmos a participação social da população consumidora nesses processos políticos e decisórios.
Este ano temos eleições para escolha do presidente, dos governadores, de senadores e deputados federais e estaduais. O que podemos esperar?
CA e IB: Em todas as eleições, o Idec organiza um conjunto de propostas em prol dos interesses dos consumidores. Dessa forma, buscamos convencer candidatas e candidatos a incluí-las em seu plano de governo e em sua plataforma ou então a aderir ao nosso conjunto de propostas, assumindo o compromisso de atendê-las se vencer as eleições. Essa é a forma que encontramos para mostrar a toda a sociedade quem está comprometido com os direitos dos consumidores. E, neste ano, vamos manter esse costume e divulgar amplamente as propostas dos consumidores e as candidaturas que se comprometeram com elas.
Olhando para a atuação do Idec em 2021, como poderiam resumir o ano que passou?
CA e IB: Foi um ano novamente marcado pelo esforço de manter direitos mesmo em períodos de exceção. Dizemos isso porque a pandemia exige muito esforço para que os direitos sejam preservados. E, para todo mundo, 2021 foi mais um ano desafiador, com um contexto de crises econômica, política e sanitária que só se agravou. Mas fato é que, apesar de todos os imprevistos, dificuldades e mudanças, conseguimos conquistas importantes para os consumidores, como pode ser visto na matéria de capa desta edição. Medidas como os reajustes negativos de planos de saúde pela primeira vez na história, sanção da Lei do Superendividamento, vitórias importantes para a tutela coletiva no Judiciário, entre outras, não podem deixar de ser celebradas. Já como instituição, podemos dizer que estamos cada vez mais fortalecidos, nos estruturando para atuarmos em pontos estratégicos e que resultem em mais proteção aos consumidores brasileiros.
E quais são os planos do Idec para 2022? O que os consumidores podem esperar?
CA e IB: Num ano que continuará marcado pela polarização e divisão do País, o Idec estará focado em lembrar que somos todos consumidores e que a defesa dos nossos direitos é um dever do Estado. Continuaremos trabalhando nos temas prioritários para a sociedade e nos mais problemáticos, como serviços financeiros mais justos, universalização do acesso à energia elétrica, transição energética, crise hídrica, acesso à internet, saúde suplementar acessível e defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), ao mesmo tempo em que continuaremos promovendo direitos urgentes, como ao transporte público de qualidade e a preços módicos, à proteção de dados pessoais e à alimentação saudável e sustentável. Também estamos muito focados na consolidação dos direitos das futuras gerações de consumidores por meio de um programa dedicado exclusivamente ao consumo consciente. Por fim, diante de todas as ameaças mencionadas anteriormente, nosso time estará dedicado a garantir a preservação dos meios de defesa do consumidor e dos instrumentos de acesso à Justiça. Não aceitaremos nenhum retrocesso e continuaremos lutando pela ampliação de direitos.