Sistemas alimentares em cinco dimensões
Relatório produzido pelo Idec faz revisão da literatura sobre o tema no Brasil e indica caminhos para um modelo mais saudável e sustentável
Sindemia – junção das palavras sinergia e pandemia – é um termo criado para descrever cenários em que duas ou mais doenças coexistem, interagem e compartilham fatores sociais comuns, de forma a potencializar seus danos. A expressão vem ganhando popularidade por oferecer um quadro conceitual mais amplo para analisar crises sanitárias e, com isso, abrir caminhos para soluções mais adequadas.
Quer um exemplo? Não precisa ir muito longe, basta fazer uma visita ao supermercado. Ali, certamente você irá encontrar produtos que estão na ponta da cadeia produtiva que, para alguns pesquisadores, é um fator determinante para a sindemia global. A maneira como produzimos, comercializamos e consumimos alimentos hoje está diretamente ligada à coexistência, em nível mundial, de problemas como a desnutrição, a obesidade e as mudanças climáticas.
Esse conceito serve de pilar para o relatório As cinco dimensões dos sistemas alimentares no Brasil: uma revisão de literatura, produzido pelo Idec e que será divulgado até o final do ano. O documento, que tem como referência o relatório internacional The global syndemic of obesity, undernutrition and climate change (A sindemia global de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas, em Português), publicado no periódico científico The Lancet em 2019, faz uma revisão da literatura já publicada sobre os sistemas alimentares brasileiros, buscando identificar elementos essenciais para uma transição para processos mais saudáveis e sustentáveis.
O material integra a pesquisa "Uma agenda para ação – transição para um sistema alimentar saudável e sustentável na América Latina", que reúne, além do Idec, no Brasil, o Centro de Estudios de Estado y Sociedad (Cedes), na Argentina, e a Universidad Adolfo Ibáñez (UAI), no Chile, com recursos do International Development Research Centre (IDRC), instituição canadense de apoio à pesquisa.
"O Idec trabalha na incidência política com base em evidências, e esse relatório é uma primeira etapa para essa construção. A gente tem muitos desafios em função dos interesses políticos e econômicos que reforçam esse sistema alimentar hegemônico", explica Janine Coutinho, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec. Segundo ela, o relatório retrata, entre outras coisas, como esses sistemas se baseiam na produção de commodities em larga escala para exportação, com uso intensivo de agrotóxicos e sementes transgênicas, e são dominados por grandes corporações do ramo alimentício. "Construir sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis passa por questões como a agroecologia, sem uso de agrotóxicos, com agricultura familiar, com defesa da biodiversidade", pontua.VOLTA DA FOME
O contexto brasileiro é oportuno para uma publicação com essa temática. O inquérito "Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil", divulgado recentemente pela Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) apontou que quase 117 milhões de brasileiros estão em situação de insegurança alimentar, sendo 19 milhões em estágio considerado grave. Isso significa que cerca de um em cada 11 brasileiros está passando fome.
Na Amazônia, uma das principais fronteiras de expansão do agronegócio, o desmatamento, em setembro deste ano, atingiu o maior nível da última década, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Em um mês, a floresta perdeu uma área do tamanho da cidade do Rio de Janeiro.
E tudo isso em meio a graves retrocessos nas políticas de segurança alimentar e nutricional, com a redução orçamentária, precarização de serviços e extinção de instâncias de participação e controle social, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que deixou de existir por força de um decreto emitido logo nos primeiros dias do governo de Jair Bolsonaro, em 2019. "A gente está vivendo um aumento profundo da pobreza e da fome, que certamente foram acelerados pela pandemia, mas que não foram ocasionados exclusivamente por ela", alerta a ex-presidente do Consea e professora do Departamento de Nutrição da Universidade de Brasília (UnB) Elisabetta Recine. Ela tem experiência de sobra para falar de uma das cinco dimensões dos sistemas alimentares, a Governança, na qual o Brasil é considerado referência internacional, por conta de um arcabouço normativo e institucional construído ao longo dos últimos 15 anos, a exemplo do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), do Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, e de um conjunto de políticas públicas relacionadas à redução da pobreza e da insegurança alimentar.
Apesar disso, para Recine, o cenário é de retrocesso. Segundo ela, um dos pilares do Sisan é a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), que dialogava com o Consea e articulava os diferentes setores do governo relacionados a essa agenda. Desde 2019, quando o Consea foi extinto, a Caisan não se reuniu mais. "Como o Consea não existe, e a Caisan não funciona, não temos mais Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, já que eles eram responsáveis por estabelecer diálogo e negociação entre diferentes setores do governo para definição de prioridades, orçamento e metas para os principais programas públicos responsáveis por melhorar as condições de vida da nossa população e, em particular, a segurança alimentar e nutricional", aponta Recine. O resultado foi a desarticulação e a perda de eficiência dos programas que continuaram existindo. "Um número importantíssimo de programas simplesmente minguou, seja porque tiveram cortes drásticos no orçamento, seja porque suas equipes foram desmanteladas, ou tiveram sua institucionalidade desarticulada", completa a professora da UnB, que considera a piora nos indicadores de segurança alimentar, em parte, resultado desse desmonte.
UM PROBLEMA MULTIDIMENSIONAL
O relatório do Idec aborda quatro outras dimensões dos sistemas alimentares, identificando evidências e entraves, e apontando recomendações para uma transição a um sistema mais saudável e sustentável.
A segunda dimensão é a dos Negócios. "Temos clareza do papel do Brasil como um importante produtor de alimentos. No entanto, as políticas públicas estão orientadas para a produção de commodities comercializadas no mercado internacional, por meio de cadeias longas de abastecimento, com agrotóxicos, sementes transgênicas e mecanização de alta tecnologia, à qual os pequenos agricultores não têm acesso. Isso é muito desigual", declara Coutinho. Segundo ela, o relatório aponta a necessidade de o sistema alimentar contemplar as necessidades sociais do mercado interno, com maior regulação dos mercados alimentares pelo Estado, incentivo à diversificação produtiva e promoção de cadeias curtas de abastecimento vinculadas à agricultura familiar e à agroecologia. Essa última recomendação perpassa a terceira dimensão: Abastecimento e Demanda. A promoção de cadeias curtas é defendida como um caminho para enfrentar o problema da desigualdade no acesso aos alimentos. "O Brasil não tem problema de produção de alimentos. Nosso problema é a desigualdade socioeconômica. Produzimos muitos alimentos, mas boa parte da população não tem como adquiri-los", diz Coutinho. O papel do Estado, novamente, é visto como essencial na garantia do abastecimento de populações vulneráveis, assim como um olhar diferenciado às mulheres, que segundo a literatura têm papel de destaque para a segurança alimentar das famílias.
IDEC EM AÇÃO
A regulação dos alimentos ultraprocessados tem sido uma frente importante de atuação do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável. Em junho, o Idec divulgou os resultados da pesquisa "Tem veneno nesse pacote", que identificou a presença de agrotóxicos em vários dos produtos ultraprocessados mais consumidos pelos brasileiros, como biscoitos, bisnaguinhas e bebidas açucaradas.
Outra iniciativa é o Mapa das Feiras Orgânicas, criado em 2012 para aproximar consumidores e produtores de alimentos orgânicos ou agroecológicos. Em outubro, ele foi premiado pelo Laboratório de Inovação da Organização Panamericana da Saúde (Opas) por seu papel no incentivo à produção, à disponibilidade, ao acesso e ao consumo de frutas, verduras e legumes.
Diversificação produtiva, incentivo à agroecologia, adoção de medidas de controle e redução do uso de agrotóxicos, ampliação das áreas de proteção ambiental e cumprimento da Política Nacional de Mudança do Clima, são algumas das recomendações para enfrentar os inúmeros problemas ambientais ocasionados pelos sistemas alimentares hegemônicos. Essa é a quarta dimensão, a Ecológica. As evidências se acumulam sobre os impactos no meio ambiente da produção de alimentos em larga escala baseada na monocultura, no uso intensivo de agrotóxicos e aditivos químicos e na pecuária extensiva, entre eles emissão de gases de efeito estufa, poluição de recursos naturais, perda de biodiversidade e degradação do solo.
Por fim, a última dimensão é a da Saúde, que discute os danos causados pelo consumo de agrotóxicos e de produtos ultraprocessados produzidos a partir de commodities como a soja, o milho e o açúcar. "Um ponto importante é a restrição do consumo de ultraprocessados, com a implementação de medidas regulatórias", afirma Coutinho, lembrando que no ano passado a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou uma nova norma para a rotulagem frontal, que deverá indicar se o alimento contém muito açúcar adicionado, sódio e gorduras saturadas. O consumo de ultraprocessados está relacionado à obesidade, a doenças crônicas não transmissíveis como diabetes e hipertensão, além de câncer e até depressão. "É importante lembrar do Guia Alimentar para a População Brasileira, que apoia e incentiva práticas alimentares saudáveis e desestimula o consumo de ultraprocessados", informa a coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec.
Saiba mais
Mapa das Feiras Orgânicas: https://feirasorganicas.org.br/
Pesquisa "Tem veneno nesse pacote": https://idec.org.br/veneno-no-pacote
Relatório A sindemia global de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas: https://bit.ly/3CHFYBo